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Odisséia de Homero - Livro XIV

O herói, por serros e áspera azinhaga,
Segue do porto, à selva, o divo busca
Leal pastor, que lhe afirmou Tritônia
Ser dos escravos dele o mais zeloso.
5 Achava-se ao portal, num sítio alegre
Onde, n’ausência do amo, edificara,
Sem da senhora auxílio ou de Laertes,
Vistoso amplo curral de pedra ensossa;
De espinho sebe em roda, e cerca de achas
10 Do cerne de carvalho externa havia.
Na área em chiqueiros doze conchegados,
Em cada qual cinqüenta, se espojavam
Prenhes porcas; dormiam fora os machos,
Poucos, pois de contínuo aos pretendentes
15 O mais nédio cevado remetia:
Trezentos e sessenta eram por todos.
Ao pé jaziam quatro cães de fila,
Pelo porqueiro maioral mantidos.
Este a seus pés talhava umas sandálias
20 De táureo tinto coiro; três ajudas
As varas pastorar, mandara o quarto
Conduzir constrangido um bom capado,
Que na régia a gulosos recheasse.
Ladrando os brabos cães a Ulisses correm,
25 Que assenta-se manhoso e o bordão larga;
Mas vítima seria, se o porqueiro,
Cair deixando o coiro, à pressa e em gritos
Não viesse a pedradas enchotá-los.
E a ele se virou: “Meus cães, ó velho,
30 Quase, por meu labéu, que te espedaçam,
E os deuses de outras penas me acabrunham:
Choro a engordar os cerdos para estranhos,
E o meu divo senhor quiçá faminto
Vaga de povo em povo, se é que vive
35 E goza a luz do Sol. Comida e vinho
Terás naquela choça, e tu repleto,
Me refiras teus males e aventuras.”
     Na choça introduzido, em ramas densas,
De agreste cabra com velosa pele,
40 Do porqueiro acamadas, pousa Ulisses,
E lho agradece: “Abençoado amigo,
Compensem-te os Supremos o agasalho.”
     Tu respondeste, Eumeu: “Ninguém desprezo,
Qualquer acolherei de ti somenos;
45 Jove os mendigos e hóspedes protege,
Aprova os tênues dons que a medo faço,
Pobre servo, a mancebo submetido!
O Céu de meu senhor veda o regresso,
Que tanto me queria, e, como é de uso
50 Para com bons escravos laboriosos,
A envelhecer aqui, me enriquecera
Com mulher e pecúlio, pois os deuses
Têm prosperado meu serviço. Ai dele!
Pereça toda a geração de Helena,
55 Dano e exício de heróis! Para essa Tróia
Também foi meu senhor vingar o Atrida.”
     E ataca mal o cinto, e dous farroupos
Trazendo, os mata e lhes chamusca pêlo,
Corta, espeta, e no espeto o assado quente
60 Oferece e apolvilha de farinha;
Vinho melífluo em copo de sobreiro
Mistura, à face do hóspede se assenta:
“Anda, ora come do que aos servos cabe;
Os cevados aos procos se reservam,
65 Que do castigo olvidam-se impiedosos.
Néscios! os numes a violência odeiam
E a virtude honram só. De alheias plagas
Invasores hostis, que em naus de espólios
Onustas partem pôr favor de Jove,
70 Temem-se do castigo; os procos, julgo,
Voz divina informou da triste morte.
Nenhum de núpcias trata ou de ir-se embora,
Todos em voraz ócio os bens estragam:
Uma nem duas vítimas lhes bastam;
75 Noites e dias, quantos Jove alterna,
Consomem carnes, ânforas esgotam.
Em Ítaca e no escuro continente,
Não há magnata que possua tanto,
Nem vinte juntos; a resenha escuta:
80 Pastam-lhe em terra firme doze armentos,
E há porcadas iguais, iguais rebanhos,
Vastos cabruns encerros, com pastores
De fora ou do país; nesta ilha mesma,
Guardam fiéis cabreiros onze fatos,
85 E eu rejo estas pocilgas. Nós forçados,
Pensão quotidiana, remetemos
A mais nédia cabeça a tais senhores.”
     Tácito Ulisses come e ávido bebe,
Ideando a vingança; e, confortado,
90 A copa do porqueiro aceita plena,
Jubiloso e veloz: “Rico era e forte
Quem te comprou, qual, hóspede, o apregoas?
Morto o crês pela causa de Agamemnon:
Talvez o conhecesse eu vagamundo;
95 Sabe a etérea mansão, quando o nomeies,
Se ocultar testemunho em mim depares.”
     “Velho, constesta Eumeu, não mais se apoiam
Em peregrino algum a esposa e o filho:
Quanto são mentirosos os mendigos!
100 A senhora os socorre e asila e inquire;
Mas incrédula geme, qual viúva
Que lamenta o marido ao longe extinto.
Urdir hoje uma fábula pretendes,
Para de capa e túnica mudares?
105 As entranhas cães e aves lhe tragaram,
Ou, dos peixes roído, a vaga os ossos
Lançou-lhe à praia e os cobre densa areia.
Morreu, morreu, deixando em luto amigos,
Mormente a mim, que o não terei tão brando,
110 Nem que de pai e mãe voltasse à casa,
Onde a luz vi primeiro e me criaram:
Tão saudoso os não choro e a pátria amada,
Como Ulisses me lembra. Até receio,
Pois tanto me estimava e destinguia,
115 N’ausência nomeá-lo, irmão n’ausência
Mais velho o chamo, a suspirar por ele.”
     E o divo herói: “Bem que emperrado o negues,
Não temerário to assevero e juro,
Ulisses vem; de alvíçaras me aprontas
120 Capa e túnica, inteira vestidura;
Mas, inda que indigente, o prêmio enjeito,
Antes que ele se mostre em seu palácio:
Como do inferno as portas, abomino
Falácias da pobreza. Atesto Jove,
125 De teu amo o lar puro a que me encosto
E a mesa hospitaleira, o anúncio é vero:
Neste ano e lua mesma, ou na vindoura,
Cá de retorno, punirá severo
Os ultrajes da esposa e de seu filho.”
130  Não ganharás alvíçaras, meu velho,
Ajunta Eumeu; não conto mais com ele.
Bebe tranqüilo; outras lembranças volve,
Que este assunto angustia-me e contrista.
Juramentos a parte, oh! se viesse,
135 Qual o anelo, Penélope e Laertes,
E o deiforme Telêmaco. Esta agora
Única planta choro, que ao celeste
Bafo eu supunha igual de rei medrasse
Em garbo, esforço e mente; mas, iluso
140 Por imortal ou por humano, a Pilos
Do pai foi-se em procura, e à volta os procos
O incidiam cruéis, para que arranquem
Da ilha a estirpe do divino Arcésio.
Basta; se escape ou não, toca ao destino,
145 E o Satúrnio o proteja. Ora me explanes
Quem és, de que família, de que terra,
Os infortúnios teus; que exímios nautas
E em que navio aqui te conduziram?
A Ítaca não creio a pé viesses.”
150 Começa Ulisses: “Narrarei sincero.
Se de espaço a lograr teu vinho e pasto,
Incumbido o serviço a outros sendo,
Fôssemos nesta choça, inda que um giro
Decorresse anual, não me era fácil
155 Expor as penas que infligiu-me a sorte.
     “O Hilácides Castor, na extensa Creta.
Gerou-me numa pelice comprada,
E a par de seus legítimos criou-me
E honrava em seu palácio; é glória minha
160 De um pai vir dos Cretenses endeusado,
Por opulência e muita clara prole.
No Orco o sumiu fatal necessidade:
Meus irmãos tudo em lotes partilharam,
Escassos bens e um teto me cederam.
165 Casei por meu valor com rica herdeira,
Pois fugaz, nunca fui nem vil e inerte:
Posto porém que as forças me falecem,
De tamanha miséria quebrantadas,
Pela palha avalia o que era a messe.
170 De Mavorte e Minerva obtive audácia:
Hostes rompi; se, infenso e belicoso
Da emboscada elegia os camaradas,
Nunca da morte o horror se me antolhava;
Sempre avante, os contrários punha em fuga,
175 De lança indo alcançando os mais ronceiros:
Tal em combates fui. Nunca me aprouve
Na família cuidar, cuidar nos filhos;
Sonhava em remos, naus, zargunchos, frechas,
Em petrechos de guerra sanguinosos:
180 Dos homens são diversos os prazeres;
Um deus nesse meu ânimo cevava.
Antes de irmos a Tróia, vezes nove
Regi corsários: da escolhida presa,
Aos matalotes sorteado o resto,
185 Locupletou-se a casa, e entre os Cretenses
Tive grande renome e autoridade.
Mas, decretando Jove aquela empresa
Tão matadoura, os povos me expediram
Adido a Idomeneu; sem resistirmos,
190 Que o público rumor nos obrigava,
Velejamos. Nove anos pelejou-se:
Ao décimo, assolada Ílio Priaméia,
Dispersa no regresso a frota Aquiva,
Ai! guardou-me o Satúrnio outros pesares!
195 “Um mês único estando em meus haveres
Com filhos e a mulher que esposei virgem,
A vogar para o Egito inclino a idéia,
E nove embarcações tripulo em breve,
Reses degolo e sagro; os divos sócios
200 De solenes festins seis dias gozam.
De Creta largo ao sétimo, e do puro
Bóreas ao fresco alento, qual se fosse
Veia abaixo, aportamos sem perigo,
Aos pilotos e ao vento encomendados.
205 À quinta singradura o Egito enxergo,
No rio surjo caudaloso e belo;
Exorto a se manter a bordo a gente,
E encalho as naus flutívagas, mandando
À terra exploradores. Estes loucos,
210 A impulsos do apetite, agros depredam,
Matam, mulheres e crianças roubam:
Mas, ao rumor, de madrugada acorrem
Éqüites e peões erifulgentes
Que enchem toda a campina e o Fulminante
215 Medo incutindo aos meus, nenhum resiste;
Cercados, parte a bronze agudo acaba,
É reduzido o resto a cativeiro.
Mesmo o deus (mais valera que eu no Egito
Falecesse e os trabalhos atalhasse)
220 Isto inspirou-me: o elmo da cabeça,
Do ombro tiro o broquel, deponho a lança;
Do rei boto-me ao coche e as plantas beijo.
Com mágoa do meu pranto, ele consigo
Dirigiu-me a seu paço; e, bem que de hastas
225 O sanhoso tropel me acometia,
Contê-los soube, atento ao Padre sumo,
Às injúrias dos hóspedes avesso.
     “Sete anos lá no Egito enriquei muito,
Pois muito me brindavam; mas, no oitavo,
230 Cadimo comilão, vezeiro e useiro,
Induziu-me à Fenícia pátria sua,
E me reteve. As estações volveram;
Para ajudá-lo na descarga, à Líbia
Fingido o avaro me arrastou, vender-me
235 Tencionando: embarco suspeitoso.
Creta avistamos com sereno Bóreas;
Mas, alagada a ilha, os céus e o ponto
Sós nos rodeiam; Júpiter cerúlea
Grossa nuvem desfecha, ofusca os mares,
240 Fuzila, toa; um raio a nau revira
E enxofra toda; a gente cai nas ondas,
Como alcatrazes de redor flutuam,
Da volta os priva um deus; que, em tanta afronta,
No mastro me salvou. Nele abracei-me
245 Dias nove, e à dezena escura noite,
Quase a morrer de frio e de fadiga,
Arrojou-me à Tesprócia um rolo d’água.
Do régio herói Fídon o amado filho,
Levantando-me, ao pai guiou-me afável,
250 Que me proveu de túnica e vestidos.
     “Lá foi que ao bom monarca ouvi de Ulisses,
Hóspede seu; mostrou-me os dons em cópia,
De ouro, de bronze ou trabalhado ferro,
Para dez gerações talvez sobejos:
255 Em depósito achavam-se no erário,
Dês que ao Dodônio falador carvalho
Foi-se o Laércio demandar a Jove
Se, após tão largo tempo, aqui regresse
Oculta ou claramente. O rei jurou-me,
260 Com libações, que a nau já tinha prestes
E a companha que à pátria o conduzissem.
     “Fídon, sendo teu amo inda em consulta,
Num Tesprócio navio, que a Dulíquio
Frumentária partia, remeteu-me
265 À real proteção do ilustre Acasto;
Mas, com malvado arbítrio, ao largo a gente,
Maquinando afundir-me em servil dia,
Despojam-me, e o que vês grosseiro trapo
Vestem-me e este gabão. Na tarde abordam,
270 Prendem-me à toste com torcida corda,
Saltam para cear na praia amena:
Fácil os mesmos deuses me desatam;
À cabeça o capuz, do leme ao fio
N’água deslizo, a braços remo e nado;
275 Inadvertido escapo, terra tomo,
De flório carvalhal me estiro à copa.
A suspirar procuram-me, e cansados
Vogam de novo: o Céu, pois meu destino
Inda é viver, manteve-me escondido,
280 E a benfazejo teto encaminhou-me.”
     E Eumeu: “Tal vaguear, tanto infortúnio,
Me abalou. Só de Ulisses nada creio:
Homem cordato, como assim mentiste?
Balda esperança! Em Tróia o Céu vedou-lhe
285 Morte egrégia ou nos braços dos amigos:
Honrara ao filho o túmulo exalçado,
E as harpias inglório o têm roído!
Solitário entre os porcos, só me movo
Da prudente Penélope ao chamado,
290 Quando há qualquer notícia. Os que a ladeiam,
Ou chorem meu senhor ou se comprazam
De gastar-lhe a fazenda, me interrogam:
Nada investigo, dês que um vago Etólio,
Neste alvergue hospedado por homizio,
295 Jurou que o viu na régia, estando em Creta
As naus a reparar de uma tormenta:
Que no estio ou no outono aqui seria
Com imensa fortuna e os divos sócios.
E tu, velho infeliz, que o deus me envia,
300 Não penses me agradar com tais embustes:
Não te honrarei nem te amarei por eles,
Sim porque temo a Jove e hei de ti mágoa.”
     Ulisses replicou: “Nem juramentos
Vencem-te a pertinácia! Ante os Supremos,
305 Sacro ajuste se firme: a vir teu amo,
Segundo os meus desejos, me transportes,
Com manto novo e túnica, a Dulíquio;
Senão, de alto os ajudas me despenhem,
Para que outro mendigo não te engane.”
310 Logo o pastor: “Minha virtude e fama
Agora e no porvir se manchariam.
Como! a vida arrancar-te, neste asilo
Depois de te acolher! Ao grã Tonante
Nunca mais suplicar me atreveria.
315 Hora é de ceia, e os sócios cá não tardam,
Para mais abundante a prepararmos.”
     Chegam nisto os serventes, e as manadas
A pernoitar encerram nos chiqueiros,
Que ressoam de roncos e grunhidos.
320 Insta-os o maioral: “Trazei-me um porco
Ótimo, que, imolado ao peregrino,
Regale-nos também, já que albidentes
Animais com fadiga pastoramos
E outros sem trabalhar impune os comem.”
325 Eis racha a bronze a lenha, e ao lar presentam
Um quinquene cevado. Não se esquece
Dos imortais; raspa da nuca o pêlo,
Queima em primícias, do amo a volta implora.
Um troço de carvalho não fendido
330 Na rês descarga; sangram-na, chamuscam,
Desentranham, dividem; na gordura
Eumeu porções do corpo todo envolve
E ao fogo os põe de farro apolvilhadas;
As postas a preceito assam de espeto;
335 E, do brasido à mesa vindo as carnes,
Alçado o justo Eumeu, conforme ao rito,
Forma sete quinhões: um vota às ninfas
E ao que nasceu de Maia, e os mais reparte
A cada comensal; o dorso inteiro
340 Do albidente por honra a Ulisses coube,
Que em júbilo exclamou: “Dileto a Jove
Tanto fosses, Eumeu, quanto me és caro.
Tu que nesta miséria assim me tratas!”
     “Do que há, disse o pastor, come a teu gosto
345 O deus, hóspede egrégio, os bens outorga,
Ou tira a seu prazer, pois tudo pode.”
E as primícias oferta aos Sempiternos,
Liba, o copo ao turrífrago sentado
Junto ao quinhão transmite. Os pães Melausio
350 Distribui, que o pastor, ausente Ulisses,
Sem sabê-lo Penélope ou Laertes,
Do seu comprara aos Táfios. Satisfeitas
Sede e fome, levanta o escravo a mesa,
E os convivas contentes vão deitar-se.
355 Brusca a noite, chovia sempre Jove,
Mádido sempre o Zéfiro espirava;
Por tentar se o capote lhe conceda
Solícito o pastor, ou qualquer outro,
Um conto Ulisses tece: “Eumeu, vós todos,
360 Escutai-me a vanglória; pois com vinho
Doudeja o sábio, cantarola e dança,
Ri solto, parla o que era bom calasse:
Ora desato a língua, e nada encubro.
Oh! saúde eu tivesse e o vigor d’antes,
365 Ao pormo-nos em Tróia de emboscada!
Ulisses comandava e o louro Atrida,
Sendo eu terceiro por escolha de ambos.
Ante o muro jazíamos armados,
Entre urzes e morraças pantanosas;
370 Bóreas esfria o tempo, geia e neva,
Encaramela o arnez; de escudo aos ombros,
Dormindo os mais embrulham-se em capotes;
O meu tinha esquecido, não cuidoso
De que gelasse, e de broquel e banda
375 Nítida vim somente. Um terço a noite
Já decorria, os astros resvalavam;
O cotovelo do vizinho Ulisses,
Que prestes me sentiu, belisco e falo:
— Solerte herói, domado pelo inverno
380 Vai-se-me a vida: falta-me o capote;
Que a túnica bastava persuadiu-me
Algum demônio, e agora é sem remédio. —
     “Ele, exímio no prélio e no conselho,
Com pronto aviso em baixa voz responde:
385 Cal-te não te ouça a escolta. — E ao braço e punho
Apoiando a cabeça: — Amigos, disse,
Visão divina o sono interrompeu-me;
Longe estamos da frota; alguém se apresse
A pedir a Agamemnon um reforço. —
390 Lesto levanta-se o Andremônio Toas,
Larga o purpúreo manto e à frota corre;
Seu manto enfio, e durmo até que fulge
A aurora em trono de ouro. Ah! se eu tivesse
Aquela idade e força, um dos pastores
395 Me daria um capote, em reverência
Ao homem de valor; mas, roto e velho,
Pouco socorro espero e poucas honras.”
Acode Eumeu: “Foi guapa a tua história
Nem discorreste em vão, cordato amigo.
400 Não te faleça roupa, ou cousa alguma
Que há mister suplicante peregrino;
Mas teus andrajos de manhã retoma;
De muda nada temos, uma andaina
De roupa há cada qual. Em vindo o filho
405 De Ulisses, te dará túnica e manto,
E os meios de partir para onde queiras.”
     Nisto, ao fogão lhe achega e alastra a cama,
Que de espólios cabruns e ovelhuns cobre;
Deita-lhe em cima o gabinardo espesso
410 Que em temporais tremendos envergava.
O herói se estira, muito perto os moços;
Porém não pôde Eumeu longe dos porcos
Pegar no sono, e, com prazer de Ulisses
De que houvesses tal zelo em sua ausência,
415 Para sair cortante espada ombreia,
Veste albornoz ao vento impenetrável,
Mais uma pele de crescida cabra;
Contra os mastins e os malfazejos dardo
Rijo empunha, e dormir foi com seus porcos
420 Em caverna de Bóreas abrigada.

NOTAS AO LIVRO XIV
21-57 - Vara de porcos, não vem em Constâncio, posto que venha em Morais, e que Lobo, na Corte na Aldeia, diga ser o mais próprio para significar a reunião destes animais. — Eumeu, com a pressa de ir buscar sustento para o hóspede, aperta mal o cinto. M. Giguet diz: “Eumée relève sa tunique, qu’il passe dans sa ceinture.” Diz Pindemonte: “La tunica si strinse col cinto, et alle spalle in freta mosse.” Nem um nem outro, parece-me, exprimiu o pensamento: o essencial e o belo é ter o pastor, com o afogo de servir o seu hóspede, atacado mal o cinto, para não perder tempo. Esta passagem assim entendida, como é forçoso que o seja à vista do texto, foi louvada por Chateaubriand.
182-186 - É antiquíssimo o costume de não se atender ao modo por que se ganhou a fortuna: fosse por furtos, vexações, pirataria, pouco importa; há dinheiro, e basta. Não raramente, as condecorações e os títulos vêm dourar o baixo metal de que se compõem certas riquezas; e no futuro os descendentes honrar-se-ão do negro tronco donde procedem.
237 - Alagar-se a terra é frase marítima, assim como arrasar-se, para exprimir que ela com o andar do navio tem desaparecido: falta nos dicionários.
409-416 - Gabinarda, ou gabinardo como dizem Filinto e outros, é um grande capote de mangas; vem em Morais e não em Constâncio. Quanto a albornoz, capa aguadeira de capuz, eu assim o pronuncio pelas razões do mesmo Constâncio, e não albernoz, como escrevem com Filinto alguns autores. Ir para o índice do livro

Odisséia de Homero Livro VII

Do éter assoma a dedirrósea filha;
Ergue-se o rei, presenta o egrégio Ulisses
Ante as naus ao congresso convocado,
E a par assentam-se em polidas pedras.
5 Cuidadosa do urbífrago Laércio,
Palas, de Alcino o arauto semelhando
Na cidade apregoa: “Ao foro, ao foro;
Um de vulto imortal ide ouvir, chefes,
Que hóspede Alcino recolheu das vagas.”
10 Incitados, a praça e os bancos enchem.
Mirando aquele em cuja fronte e espáduas
Graça divina despejou Minerva;
Mais guapo o fez e esbelto e majestoso,
Para que, a todos formidando e grato,
15 Nos certames de si desse alta prova.
Conciona grave na assembleia Alcino:
“O que hei no peito, príncipes, declaro.
Veio-me à casa este hóspede errabundo,
Se do Oriente ignoro ou do Ocidente,
20 Mas passagem me pede e que a fixemos.
A ida se lhe apresse; um forasteiro
Nunca em meu lar se lastimou retido:
Novo negro baixel ao mar divino,
Cinquenta e dous receba exímios nautas.
25 Ligados presto os remos aos toletes,
Eia, a lauto festejo compareçam.
No me falheis, cetrados: convidai-me
Demôdoco imortal, que em estro aceso
Por Jove, entoa cânticos melífluos.”
30 Ei-lo, avança; os cetrígeros o escoltam,
O arauto corre ao músico sublime.
Cinqüenta e dous se elegem, que submissos
Vão-se à praia e o navio deitam n’água,
Alçam mastro, içam velas, prendem remos
35 Com atilhos de coiro, e tudo prestes,
Abrindo o pano, o lenho põem de largo;
Passam depois ao régio nobre alcáçar,
Salões, átrios, vestíbulos se atulham
De mancebos, de velhos, turba imensa.
40 Alcino doze ovelhas e oito porcos
De alvos dentes imola e dous refeitos
E flexípedes bois, que os mais esfolam,
Deleitoso banquete aparelhando.
Conduz Pontono o vate aceito à Musa,
45 Que o cegou, mas lhe deu canto suave
E do bem e do mal o entendimento;
Num trono o põe de prata cravejado,
Numa coluna o encosta, e lhe pendura
Sobre a cabeça em prego a doce lira
50 E de a tomar indica-lhe a maneira;
Pousa-lhe um canistrel em mesa ornada,
Com cheia copa que à vontade empine.
Atiram-se aos manjares os convivas.
     Expulsa a fome e a sede, a Musa instiga
55 O poeta a cantar guerreiro canto,
Cuja fama às estrelas se exaltava;
A rixa era de Ulisses e de Aquiles,
Com ditos agros num festim sagrado;
E o rei dos reis folgava, porque entrando,
60 No estrear Jove a lide Grega e Teucra,
Do Pítio Apolo no marmóreo templo,
O oráculo a vitória prometeu-lhe,
Dês que os melhores Dânaos contendessem.
Prossegue o vate, a Ulisses à cabeça
65 Com força deita o purpurino manto,
Para encobrir nas morenadas faces
As lágrimas que a pares borbulavam.
No intervalo da música, as enxuga
E desce o manto, liba às divindades
70 Na bicôncava taça; quando, a rogos
Dos que a toada e a letra enamorava,
O bom cego as repete, o herói suspira
E, tornando a embuçar-se, esconde o choro.
     Junto, o percebe o rei: “Feaces, basta.
75 Nós, de iguarias cheios e de acorde,
Glória e adorno da mesa, ao foro andemos:
Narre o estrangeiro aos seus quanto hábeis somos
Em luta e pugilato, em salto e curso.”
     Marcha, e os grandes com ele; ao prego a lira
80 Suspende o arauto, e à cola guia o cego
Dos que iam divertir-se nos certames,
De infinita caterva acompanhados.
Jovens de pulso, Anquíalo, Acrônio,
Nautes, Elatreu, Ocíalo, se ergueram,
85 Pronteu, Proreu, Toon, Prines, Eretemes,
Anabesinco, Anfíalo progênie
De Polineu Tectômides; nem faltam
O igual de Marte Euríalo, o formoso
E esbelto Naubólides mais que todos,
90 Fora o guapo Laodamas; este alçou-se
Também com seus irmãos, de Alcino ramos,
Hálio gentil e Clitoneu galhardo.
     Começam pelo curso, e da barreira
Entre nuvens de pó rápidos voam:
95 Quanto um pousio arando excedem mulas
A bois tardonhos, Clitoneu bizarro
Pretere os outros e regressa ao povo.
Anfíalo em saltar, no disco Elatreu,
Vence Euríalo os mais na acerba luta,
100 Na punhada Laodamas, que no meio
Do regozijo brada: “Amigos, vinde,
Perguntemos se o hóspede é nos jogos
Exercitado: o corpo tem fornido,
Pernas, coxas, pescoço, espáduas, punhos;
105 Inda é verde, sofresse embora há pouco
O trabalho do mar, que tanto custa
E do varão mais rijo as forças quebra.”
     Euríalo aprovou: “Pois bem, Laodamas,
Vai tu mesmo incitá-lo.” Eis ante Ulisses
110 Tem-se o filho de Alcino: “Hóspede padre,
Entra, se os aprendeste, em nossos ludos;
Quadram-te à maravilha: é do homem timbre
De pés e mãos valer-se denodado.
Bane a tristeza, partirás em breve;
115 Em nado é teu baixel e os vogas prontos.”
     Mas o astuto: “Laodamas, tu provocas
A que zombem de mim? Não penso em ludos,
Penso na dores que passei tamanhas;
A volta mendigando, ao rei depreco
120 E ao popular congresso.” Em face o ataca
Súbito Euríalo: “Hóspede, não cuido
Que nos certames dos varões te exerças;
Menos atleta válido pareces
Que de marujos traficante mestre,
125 A especular na carga e mercancia
Da remeira galé, de roubos arca.”
     Torvo Ulisses o mede: “E tu pareces
Doudo varrido a proferir dislates.
Nem tudo Jove dá; beleza nega,
130 Ou loqüela, ou juízo: um não formoso
Com suave eloqüência orna o semblante,
E olhado com prazer, modesto e firme,
No parlamento se insinua e reina,
E na rua e na praça um deus o aclamam;
135 Outro, gentil como íncolas celestes,
Insulso é no exprimir-se. Tu, mancebo,
Nobre és de aspecto, mas no tino falhas;
Com teu parlar minha alma exacerbaste.
Não me creias ignaro dos certames;
140 Da idade no vigor fui dos primeiros:
Hoje o pesar me oprime, e o que hei passado
Na guerra e em salsas vagas; mas embora,
Meu coração mordeste, os jogos tento.”
     Aqui, de manto mesmo, um grosso aferra
145 Disco muito maior que os dos Feaces
O peso a revoltões zunindo expede:
Bem que pujante a chusma a remo e vela,
Se agacha ao tiro, e sobrevoa a pedra
Salvando as marcas todas. — Palas uma
150 Logo fixando, em vulto humano fala:
“Pode, hóspede, apalpando qualquer cego
Teu sinal discernir, que é nímio avante
Sem confusão dos mais; nenhum Feace
Tirar-te-á do lanço, eu to aseguro.”
155 O herói folga de tal benignidade,
E brando ajunta: “À liça agora, moços;
De novo jogarei, talvez mais longe.
Vós me irritastes, a ninguém recuso;
Ao cesto, à luta, ao curso, desafio
160 Todos, menos Laodamas, que hospedou-me:
Pelejar com o amigo, é de um vil néscio;
Quem quer que o tente num país estranho,
O jus perde ao respeito e a benefícios.
Nenhum temo ou desprezo; às claras venha
165 O que me julgue imbele experimentar-me.
No arco mormente primo; sei na turba
De hostis frecheiros num dos seus a farpa
À vontade empregar: nos campos Tróicos
Só me vencia o archeiro Filoctetes;
170 Entre os mortais que o pão da terra, comem,
Gabo-me e prezo de lhe ser segundo.
Com prístinos varões não me comparo,
Com Hércules e Êurito Ecaliense,
Que na sua arte aos numes se atreviam:
175 O grande Êurito foi de curta vida,
ímpio desafiando o iroso Apolo.
Meu dardo alcança como de outro a seta.
Só receio os Feaces na carreira,
Das ondas nimiamente quebrantado:
180 Nem sempre era o navio bem provido,
E frouxos tenho os trabalhados membros.”
     Ao silêncio geral sucede Alcino:
“Tens hóspede, razão de te agastares
Contra esse audaz, e a peito o provar tomas
185 De constante valor munido seres.
Que homem sisudo nunca mais te argua.
Ouve-me, outra impressão de nós conserves,
Para, ao festim com tua esposa e filhos,
Contares aos heróis quais prendas Jove
190 Desde avós nos transmite: em luta e cesto
Não somos extremados, sim ligeiros
E na marinha exímios; o banquete
Nos praz, coréia e música, a mudança
De vestidos, bom leito e quentes banhos.
195 Bailai vós, peritíssimos Feaces;
O hóspede narre aos seus quanto excelemos
Em navegar, em pés, em dança, em canto.
Corra alguém, e a Demôdoco da régia
Depressa traga a cítara sonora.”
200 Pontono corre. Os públicios do circo
Nove eleitos juizes, levantados,
O lugar aplanando, o espaço alargam.
O arauto volta; a cítara o poeta
Recebe, a quem na arena adolescentes
205 Cercam destros e airosos, em cadência
Pulsando o chão divino: absorto Ulisses
O enredo, o passo, a rapidez contempla.
     Demôdoco depois dedilha e canta
Como furtiva a coroada Vênus
210 Uniu-se a Marte, que o Vulcânio toro
Maculou com mil dons peitando a esposa.
Pelo Sol advertido, o grão ferreiro
Parte, vingança a meditar profundo;
No cepo encava a incude, laços forja
215 Que desdar-se não podem nem romper-se.
Mal os conclui, à câmara caminha
Do seu leito amoroso; uns aos pés liga,
Outros ao sobrecéu, com tanta insídia,
Que de aranha sutil quais teias eram,
220 Mas a qualquer celícola invisíveis.
Armada a fraude, simulou viagem
De Lemos à caríssima cidade.
Marte, cujos frisões têm freios de ouro,
Não obcecado, o fabro viu partindo;
225 Veio-lhe presto à casa, cobiçoso
De gozar Vênus bela: esta pousava
De visitar o genitor Satúrnio;
Pega-lhe o amante na mimosa destra:
“Vazia a cama está; Vulcano é fora,
230 Aos Síntios foi-se de linguagem bronca.”
     Ei-los ao leito jubilando ascendem,
E nas malhas do artista se emaranham;
Nem desatar-se nem mover-se podem,
Sem ter efúgio algum. Torna Vulcano,
235 Antes que a Lemos chegue; o Sol o avisa.
Ao seu pórtico pára angustiado,
Urro esforça raivoso, que no Olimpo
Retumba horrendo: “Ó Padre, ó vós deidades,
Vinde rir e indignar-vos desta infâmia.
240 Por coxo a Dial Vênus me desonra,
Amando ao sevo Marte, que é perfeito:
Se esta iesão me afeia, é toda a culpa
De meus pais, que gerar-me não deviam.
Vêde-os, oh! triste aspecto como dormem
245 No meu leito enleados; mas duvido
Que em seu ardor jazer assim desejem.
Meu laço os reterá, té que haja o dote
E os dons feitos ao pai, que deu-me a filha
De formosura exemplo e de inconstância.”
250 No éreo paço Vulcânio já Netuno,
Mais o frecheiro Febo e o deus do ganho,
As deusas de pudor não comparecem;
Do pórtico os demais, às gargalhadas,
O dolo observam do prudente mestre,
255 Olham-se e clamam: “Da virtude o vício,
Do inferno o lesto e forte é suplantado;
O manco aos mais veloz prendeu com arte,
Pague o adúlterio a multa.” Apolo ao núncio
De bens dador voltou-se: “Quererias,
260 Filho de Jove, assim dormir nos braços
Da áurea Ciprina?” Respondeu Mercúrio:
“Oxalá, Febo Apolo, ao pé de Vênus
Vós me vísseis dormir, e as próprias deusas,
No tresdôbro dos fios envolvido.”
265 Renovou-se a risada; mas Netuno
Sério ao mestre pediu que solte a Marte:
“Solta-o; prometo que a teu grado e à risca
Hajas a multa aos imortais devida.”
“Rei, contesta o aleijado, não mo ordenes;
270 A caução para o fraco é fraca sempre:
Como eu te obrigaria, se ele escapo
Se recusasse?” Então Netuno: “Marte
Se renuir, pagar-te-ei, Vulcano.”
     Rende-se o ínclito coxo: “Não me é dado
275 Negar-to.” E os laços desliou de um toque.
Os réus fugiram: para a Trácia, Marte;
Para Pafos Ciprina, a mãe dos risos,
Que ali tem bosque e recendentes aras.
Banhada em óleo divinal ungida,
280 As Graças do mais fino a paramentam.
     Ulisses da harmonia se recreia,
E a gente em roda. Alcino bailar manda
Laodamas e Hálios sós, que a palma levam:
Um, curvo atrás, às nuvens roxa pela,
285 Que fez Pólibo, alteia, e outro, a pulo,
Antes que aos pés lhe caia, a encontra e joga;
A alma terra ao depois, tripudiando,
Alternos batem, com geral aplauso.
O estrépito sossega, e Ulisses fala:
290 “Bem gabaste na dança os teus Feaces;
Estou, potente rei, maravilhado.”
     Alegre Alcino: “Príncipes, decerto
É sábio e dons merece. Há cabos doze,
E eu treze: cada qual brinde-lhe um manto
295 Rico e túnica nova e áureo talento,
E junto obtenha tudo e à ceia folgue;
A injúria apague Euríalo e o congrace
Com palavras e dádivas” — De grado
Seu próprio arauto unânimes despacham,
300 E Euríalo obedece: “De vontade
Quero aplacá-lo, ó maioral dos povos;
Haja esta brônzea espada com bainha
De recente marfim e argênteos punhos,
Digna dele.” E ao passá-la: “Ó venerável,
305 Espalhe o vento irrefletidas vozes.
Longo há fora dos teus, hóspede, os numes
Restituam-te à pátria e à mulher cara.”
     “Salve, Ulisses responde, e sê ditoso.
Nunca, jovem amigo, a falta sintas
310 Do presente que afável me concedes.”
Aceita e cinge a espada claviargêntea.
     O Sol transmonta, e as dádivas afluem
Que ao real paço arautos conduziam;
De Alcino os filhos as recebem logo
315 E à mãe vão reverentes presentá-las;
O pai à casa os principais convida,
Senta-os em tronos, volve-se à rainha:
“Traze, mulher, tua arca a mais luzente,
Boa túnica e um manto; ao lume aqueçam
320 Caldeira para banho. Ele gozoso
Os dons remire dos heróis Feaces,
Divirta-se ao banquete e os hinos logre.
Dou-lhe em memória uma áurea fina taça,
Por onde libe à Jove e à corte sua.”
325 Ela ordena; uma trípode as escravas
Põem ao fogo e por baixo lenha acendem;
A água, lambendo a labareda o bojo,
Ferve em caixões... N’arca louçã, que trouxe,
Dos Feaces a roupa e o ouro mete,
330 Mais a túnica e o manto: “A tampa, adverte,
Hóspede, esguarda; em nó seguro a feches,
Para ninguém lesar-te na viagem,
Quando em ferrado sono a bordo pegues.”
     Na tampa o cauto herói passa um nó firme,
335 Invenção da engenhosa augusta Circe.
Da caseira a banhar-se convidado,
Entra a prazer em tina de água morna;
Pois tamanha delícia não gozava,
Dês que a ilha deixara de Calipso,
340 Onde ele como um nume era tratado.
Lavam-no, ungido vestem-lhe as escravas
Túnica e manto, e sai para entre os cabos
Vinhos saborear. Então Nausica,
Beleza divinal, chega à soleira
345 Da magnífica sala; atenta Ulisses,
Admira-o, diz veloz: “Hóspede, salve;
Lá mesmo em teu país de mim te lembres,
De mim primeira em te guardar a vida.”
     Respondeu-lhe: “De Alcino ínclita filha.
350 Assim de Juno o altíssono consorte
A luz ver da partida me conceda,
Como hei de lá qual déia honrar-te sempre,
A ti que me salvaste, ó nobre virgem.”
E junto ao rei sentou-se, quando as peças
355 Partiam já e o vinho misturavam.
     Com o amável cantor o arauto vindo,
No meio o encosta à sólita coluna.
A porção mais sucosa rasga Ulisses
Do pingue dorso de albidente porco:
360 “Toma, a Demôdoco isto leva, arauto;
Quero na minha dor mostrar que o prezo.
Os poetas venera e afaga a terra,
Caros à Musa, que os doutrina e inflama.”
Jubilando o cantor a oferta aceita,
365 E começa o banquete aparatoso.
     E a Demôdoco Ulisses, finda a ceia:
“Eu te respeito sobre os homens todos;
A Dial Musa ou Febo é quem te inspira.
Cantaste os casos e aflições dos Dânaos,
370 Como se própria testemunha fosses,
Ou de uma o ouvisses. Canta-me o cavalo
Que da madeira Epeu fez com Minerva,
Do Laércio ardiloso introduzido,
Prenhe de heróis que Pérgamo assolaram:
375 Exato sejas, e aos mortais proclamo
Que um deus influi e te modula os hinos.”
     Ei-lo, em fúria sonora; entoa o como.
As tendas abrasando, uns Gregos vogam,
E outros, sujeitos ao facundo Ulisses,
380 Ficam no amplo cavalo, que puxaram
Da fortaleza a dentro os mesmos Teucros.
Estes confusos em redor concebem
Três projetos, brocar a bronze o lenho,
Ou do castelo abaixo despenhá-lo,
385 Ou santo voto oferecê-lo aos numes:
O último infausto parecer adotam;
Fado era que a ruína em lígneo bojo
A escolha dos Aqueus levasse a Tróia.
Canta o como, vazio o cavo engano,
390 Ílio os esparsos Dânaos depredaram;
Como, enquanto a cidade vai acesa,
Outro Mavorte, o Ítaco, à Deifobéia
Estância foi com Menelau divino,
E ali, travada aspérrima contenda,
395 Coroou-lhe a vitória a Protetora.
     Ao cântico do vate, as maçãs rega
Debulhando-se em lágrimas Ulisses:
Qual em braços o esposo a mulher chora
Que o viu cair em vascas moribundo
400 Ante a muralha, os cidadãos e os filhos
Ao sevo dia subtrair tentando,
E em ais e em gritos sobre o seu cadáver,
Dos soldados, que o tergo lhe escalavram,
Na amargura e na dor é constrangida
405 A cruel cativeiro; tal carpia
O Laércio infeliz. Somente Alcino,
Sentado ao pé, seu suspirar percebe:
“Cale o poeta, ó chefes, o instrumento,
Pois nem todos se alegram do seu canto:
410 Findo o repasto, à musica atendendo,
Mesto sempre nosso hóspede soluça;
Poupar seu luto cumpre e distrai-lo
Por ele é que esta festa preparamos,
Com generosos dons, segura escolta:
415 É vero irmão para as sensíveis almas
Um súplice estrangeiro. Agora, amigo,
Toda a franqueza: como dos vizinhos
Eras chamado? o bom e o mau têm nome
Que seus pais à nascença lhe impuseram.
420 Qual é tua terra e gente me declares.
A fim que a nau medite na viagem:
De mestre e leme as nossas não precisam,
Pensam, calculam, como a raça humana,
Quaisquer povoações e campos sabem,
425 Por entre o nevoeiro as vagas tranam,
Sem temor de soçôbro ou de avaria.
Previu porém meu pai que, da passagem
E do socorro aos náufragos Netuno
Azedo, um nosso galeão de volta
430 Sumiria no pélago, à cidade
Um monte empinadíssimo afrontando.
Se há de ou não preencher-se o vaticínio
Pertence ao deus. Mas sem refôlho narra
Que praias tens corrido, que paragens
435 E regiões trilhado; quais das tribos
Agrestes eram, bárbaras e injustas;
Quais, tementes á Jove e hospitaleiras.
Porque em segredo gemes, as desgraças
Dos Gregos e dos Teucros escutando?
440 O Céu quis sucumbissem tais guerreiros,
Para matéria a pósteros poemas.
Junto a Ílion morreu-te algum parente?
Morreu-te um genro, um sogro, os mais diletos
Após os consanguíneos? ou pranteias
445 Um camarada? o sócio íntimo e sério
Não é menos que irmão no amor e estima.

NOTAS AO LIVRO VIII
71-78 - Homero não diz, como alguns tradutores, que só a toada agradava aos ouvintes; a letra sobretudo é que entristecia a Ulisses. O verbo enamorar, Constâncio o dá por antiquado e Gonzaga, autor que nunca sai da linguagem do tempo de Garção e Denis, traz enamorar, no translato, em que é comumente empregado de preferência a namorar. E este último tem menos nobreza no sentido próprio; diz-se, por exemplo, a moça namora a todos, e não enamora a todos; além de que, a primeira oração mostra sempre que é a moça que procura agradar, quando a segunda pode mostrar que ela é a todos agradável sem buscar sê-lo. — Homero, parece-me, distingue o saltar do dançar: nos jogos públicos, houve exercício de luta, carreira, pugilato e salto; a dança propriamente dita foi ao depois que mandaram vir a lira de Demôdoco, e mereceu louvor especial de Ulisses.
106-115 - O verso 106 é de Camões, canto VI, na fala de Veloso. O meu verso 115 diz que o navio estava em nado, ou que tinha sido lançado ao mar: não sei por que Pindemonte usa de varar, que é o contrário do texto.
121-126 - A insolència de Euríalo tem dobrado merecimento: primeiro, serve para preparar a quase declaração de Ulisses e mover o desejo de lhe ouvirem as aventuras; segundo, faz aparecer a disposição da chusma não favorável aos estrangeiros. Ainda que Euríalo pertencia aos grandes, o que representa a preocupação popular contra os vindiços; porque esta preocupação, quando geral, até penetra nas classes elevadas; e em todos os tempos houve na aristocracia quem, ao menos na aparência, adotasse a opinião da maior parte.
359 - Albidente é de óbvio sentido: Pindemonte, para o italiano, compôs o adjetivo dentibianco neste mesmo lugar.
392-395 - Dá Homero a primazia a Ulisses, pondo Menelau como seu ajudante, para assim realçar a valentia do seu herói, e para que a este mais comovesse Demôdoco. M. Giguet, aliás fiel em quase tudo, verteu: la vitoire que leur assura Pallas. Mas Homero como que de propósito mete Menelau na sombra, deixando brilhar a figura de Ulisses, e usando sempre do singular; o plural leur diminui a delicadeza do poeta. Ir para o índice do livro.

Odisséia de Homero - Livro IV

Já no vale da grão Lacedemônia,
Em casa o Atrida glorioso encontram
Com pompa a celebrar do filho as núpcias
E as da filha sem pecha. Em leves carros
5 Ia enviá-la à Mirmidônia corte,
Ao do Rompe-esquadrões herdeiro Pirro,
De Ílio cumprindo o juramento sacro.
Do Espartano Aléctor une uma virgem
Ao forte Megapentes, que uma escrava
10 N’ausência lhe pariu: de Helena prole
O Céu não lhe outorgou, depois da amável
Hermíone, rival da loura Vênus.
     No amplo alcáçar opíparo convívio
Deleita a cidadãos e a forasteiros,
15 À lira canta um músico divino,
Dous bailadores a compasso pulam;
Mas o coche ao vestíbulo e o Nestório
E Telêmaco estão. Pajem do Atrida,
O bravo Eteoneu, que os observava,
20 De povos ao pastor a informar veio:
“Dous hóspedes, quiçá de Jove garfos,
Temos: desatar cumpre a veloz biga,
Ou mandá-los, senhor, para outro asilo?”
     “Dantes eras, Boétidas, sisudo,
25 O flavo rei troou; mas louquejaste,
Compassível discurso. Ah! quantas vezes
O pão comi da mesa do estrangeiro!
De novas aflições me afaste Jove!
Solta a parelha, os hóspedes convida.”
30 Eteoneu chama os fâmulos, que o seguem:
Aos suados corcéis, do jugo livres,
Meiam cevada e espelta a manjedoura;
À parede luzente o carro apoiam;
Introduzem na régia os peregrinos,
35 Régia brilhante como o Sol e a Lua.
     Já farta a vista, em limpa cuba os lavam
E ungem de óleo as escravas, que, em felpudos
Albornozes, e túnicas macias,
Do soberano a par os apoltronam.
40 De gomil de ouro às mãos verte uma delas
Água em bacia argêntea, a mesa lustra,
Que enche a modesta afável despenseira
De pães e das presentes iguarias;
Escudelas de várias novas carnes
45 O trinchante apresenta e copos de ouro.
Dá-lhes a destra e fala Menelau:
“Comei, saboreais; depois da ceia,
Saberemos quem sois. De escura estirpe
Certo não vindes, mas de heróis cetrados:
50 Gérmen vil não rebenta em plantas nobres”
     Aqui, tergo bovino assado e gordo.
Seu quinhão de honra, aos hóspedes oferta,
Que ao regalado prato as mãos estendem.
Refeitos já, Telêmaco ao Nestório
55 Inclinou-se em voz baixa: “Considera,
Amigo da minha alma, como ecoa
E esplende a sala, em bronze, em prata, em ouro,
Em electro e marfim! Do interno Olimpo
É tal o adorno imenso: espanta olhá-lo.”
60  Menelau, que o percebe, acode: “Filhos,
Ninguém se iguala a Jove na opulência;
Eterno é seu palácio. Uns nos haveres
Superam-me, outros eu: mas que infortúnios
Oito anos carreguei, vagando os mares!
65 Vi Chipre, vi Fenícia, vi o Egito,
A Etiópia, a Sidônia, Erembos, Líbios;
Onde aos cordeiros nascem presto os cornos,
E há três partez a ovelha anualmente:
Lá senhor nem zagal tem míngua nunca
70 De queijo e carnes e mungido leite.
Enquanto eu cumulava tais riquezas,
Por dolo da consorte o irmão foi morto,
E elas na amarga dor não me consolam.
Ter-vos-ão vossos pais, quem quer que sejam,
75 Contado os meus pesares: de Ílio em cinzas
O precioso espólio os não compensa.
Com pouco no meu lar me contentava,
Se incólumes vivesse os que remotos
Da Argólida ubertosa lá caíram.
80 Amiúde, sentado a lamentá-los
Saudoso verto lágrimas que enxugo,
Pois viver não podemos de tristezas;
Porém choro um mormente, e o recordá-lo
O sono tira-me e o sabor, dos Gregos
85 O mais acérrimo e constante, Ulisses.
Quantas penas o fado reservou-lhe,
Quantas a mim também na ausência longa
Se respira ignoramos; e o pranteiam
O decrépito pai, a honesta esposa,
90 Tenro o filho Telêmaco deixado.”
     À lembrança de Ulisses, água chove
Dos olhos do mancebo, que às mãos ambas
Esconde-os n’aba do purpúreo manto:
Menelau o descobre; em si reflete
95 Se o deixa declarar-se, ou prosseguindo
Lho pergunte e se explique. Entanto, Helena
Do alto assoma camarim fragrante,
Qual Febe de arco de ouro: Adestra logo
Chega-lhe uma poltrona, traz-lhe Alcipe
100 De lã mole tapete, e Filo o argênteo
Rico açafate dádiva de Alcandra,
Mulher de Pólibo, o da Egípcia Tebas,
Em maravilhas célebre. Houve dele
O flavo rei de prata duas tinas,
105 Duas trípodes e áureos dez talentos;
Houve de Alcandra Helena roca de ouro,
De ouro com orlas e redondo embaixo
O açafate que Filo apresentou-lhe
De preparado fio, a roca em cima
110 E roxa lã. No assento e de escabelo
Aos pés Helena, a Menelau inquire:
“De Jove aluno, que hóspedes nos honram?
Quer acerte, quer não, falar desejo:
Tanto não vi, de vê-lo estou pasmada,
115 Mulher nem homem semelhar-se a outrem!
Aposto haver Telêmaco ante os olhos,
De Ulisses ramo, que o deixou de berço,
Quando magnânimo entre os nobres Graios
Foi debelar, por minha culpa, Tróia.”
120 E o marido: “Consorte, o mesmo cuido.
As mãos tem dele e pés, cabelo e testa,
O penetrante olhar; do herói me lembra,
Do que por mim sofreu, do que inda sofre:
Há pouco o moço, em lágrimas desfeito,
125 No purpurino manto as escondia.”
Pisístrato ajuntou: “Pastor de povos,
Ele é sim, que modesto aqui primeiro
De interpelar se peja a um rei tamanho,
Cuja encantada voz nos regozija.
130 O ancião Nestor mandou-me acompanhá-lo;
Vem pedir-te ou socorros ou conselho;
Sendo ausente seu pai, na própria casa
Ah! padece, e lhe faltam protetores,
Falta-lhe povo que remova o dano.”
135 E o rei: “Que! no meu teto o filho tenho
De quem por mim correu perigos tantos!
Sobre os outros heróis o amava eu sempre,
Se feliz travessia às naus veleiras
Nos concedesse o próvido Satúrnio.
140 Cidade evacuando a mim sujeita,
Paços lhe erguera, e de Ítaca ele a gente,
Família e bens à Argólida passava.
Em contínua aprazível convivência,
Nada nos separava, antes que a morte
145 Nos cobrisse de trevas. Mas o Olímpio
Tal dita inveja, nega-lhe a tornada.”
Gera-se um vivo pranto: Helena chora,
Chora o esposo e Telêmaco; o Nestório,
Não enxuto, recorda-se de Antíloco,
150 Morto às mãos de Mênon da Aurora filho,
E bradou: “Prudentíssimo aclamar-te
Nestor em nossas práticas saía;
Digna-te ouvir meu parecer, Atrida:
À mesa nunca choros me recreiam,
155 Mas na alvorada removê-los cabe;
Só consagram-se aos míseros defuntos
Cortada a coma e lágrimas sentidas.
O irmão perdi também, que reconheces
Não era o mais imbele: ouvi que a muitos,
160 Pois lá não fui, se avantajou garboso
Velocíssimo Antíloco e bizarro.”
     Atalha o Atrida: “Em obras e palavras
Prudência inculcas de maduros anos;
Saíste ao celso pai, querido jovem.
165 Fácil o sangue de um mortal se estrema
A quem ditoso berço e casto leito
O Satúrnio fadou; como o Nelide,
Que em velhice pacífica desliza
Entre guapos herdeiros valorosos.
170 Mas suspenda-se o luto; as mãos se lavem,
Toca a cear. Telêmaco à vontade,
Raie a manhã, conversará comigo.”
     Água ministra Asfálio, atento servo;
Deitam-se os convidados às viandas.
175 Helena al excogita: anexa ao vinho
De nepentes porção, que aplaque as iras
E as tristezas desterre; o que a bebesse
Não brotava uma lágrima no dia,
Por mãe nem genitor, irmão nem filho,
180 Que visse degolar. De Jove à prole
Dera bálsamos e ervas Polidana,
De Fono Egípcia esposa, cuja terra
Os reproduz saudáveis ou nocivos,
E onde o médico excede os homens todos
185 E de Péon descende. Helena exclama,
Preparada a poção: “De heróis procedem,
Sim, divo Menelau; mas poderoso
Dispensa o Eterno as mágoas e os prazeres.
Discursando o festim saboreemos;
190 De gratas narrações vou deleitar-vos.
Todas não posso referir proezas
Do sofrido varão durante o assédio;
Onde os Aqueus mil transes aturastes;
Mas uma contarei. De chagas torpes
195 E andrajos desfeado, qual mendigo,
Em Ílio introduziu-se, e em pobre escravo
Da mesma frota Argiva disfarçou-se.
Por mim só conhecido, ele às perguntas
Me quis tergiversar; mas, quando ao banho
200 O ungi, vesti-o. e lhe jurei segredo
Até que aos pavilhões e às naus voltasse,
Me revelou dos Gregos os projetos.
Alguns matando à espada, cheio foi-se
De informações. As Teucras ululavam;
205 Eu me alegrei, pois já de novo o peito
Patrizar me pedia, arrependida
Sentindo o haver, a impulsos da Cipônia,
Largado a casa, a filha, o toro, o esposo,
Que em talento e beleza a ninguém cede.”
210 O marido aplaudiu-a: “Sim, consorte,
Muito hei peregrinado, heróis vi muitos;
O coração de Ulisses nenhum tinha:
Paciente, engenhoso, e forte e sábio,
Quanto ideou, quanta mostrou constância,
215 No cavalo artefato, em que os melhores
Clade e exício aos Trojúgenas levamos!
Com Deífobo divino ali vieste,
E em seu favor um nume te inspirava;
Em três giros, palpaste a cava insídia,
220 E com voz da mulher de cada chefe
Os nomeavas todos. Eu no centro
E Tidides e Ulisses te escutamos:
Surdir os dous ou responder quisemos;
No ímpeto e fogo Ulisses nos conteve.
225 Calam-se os mais, ia falar Anticlo;
Com mãos robustas pertinaz Ulisses
Lhe aperta a boca, o exército preserva,
Até que enfim reconduziu-te Palas.”
     Eis Telêmaco: “É duro que as virtudes,
230 Sublime rei, da Parca o não livrassem,
Qual se tivesse um coração de ferro.
Mandai-nos ora aonde ambos logremos
As delícias do sono.” — Presto Helena
Desdobrar faz ao pórtico umas camas
235 De almofadas e espessos cobertores
E purpúreos tapetes: logo as servas
Aparecem de facho, e tudo aviam;
Conduz arauto os hóspedes; lá dormem
O herói Telêmaco e o Nestório egrégio.
240 Pernoita Menelau na interna alcova,
E a mais gentil mulher nos braços dele.
     Do éter gênita, surde a roxa aurora:
Desperta, veste-se o belaz Atrida;
Cingindo a espada, as nítidas sandálias
245 Calça, e ao pé do Ulisseida vem sentar-se:
“Que precisão, Telêmaco, rasgado
O equóreo dorso, te conduz a Esparta?
É pública ou privada? eia, franqueza.”
     Prudente o moço: “A ti, senhor, pujante,
250 Vim para de meu pai colher notícias.
Enchem-me a casa, arruínam-me a fazenda,
Matam-me negros bois, e ovelhas pingues
Os procos de Penélope, vorazes,
Arrogantes, violentos e importunos.
255 Conta-me, eu te suplico, a morte sua,
Se a viste ou referiu-te um forasteiro.
Foi no ventre materno à dor votado!
A minha tu não poupes, nada ocultes;
E, o caro genitor se em tudo e sempre
260 Te era fiel na desastrosa guerra,
Isso lembre-te agora e não me iludas.”
     O Espartano suspira: “Oh Céus! cobardes
Ao tálamo aspirar de herói tamanho!
Se, em covil de leão depondo acaso
265 Os filhinhos de mama, o vale e monte
Lustra a corça a pastar, entrando a fera
Os esgana cruel: destarte Ulisses
Lhes dará morte certa. Ele se ostente,
Ó Jove, Palas, Febo, como em Lestos
270 Quando com Filomelides em luta,
O prostrou com prazer dos bravos Gregos:
A boda em breve acerba lhe seria.
Satisfazer-te vou no que me imploras;
Dir-te-ei sem rebuço quanto arcano
275 Aclarou-me o veraz marinho velho.”
     “Os deuses, que nos punem, de olvidá-los,
Impaciente no Egito me retinham,
Porque faltei com justas hecatombes.
Lá Faro surge à flor da azul campina,
280 De foz em fora, quanto em singradura
Marcha popa a que vente aura sonora;
Tem um porto seguro e boa aguarda,
E ao pélago os baixéis dali descendem.
Uns vinte dias, não soprando Eolo,
285 Que pelo undoso ponto os nautas leva
E a planície lhe encrespa, eu demorado,
Com poucas provisões, lassa a companha,
Desesperava já, quando Idotéia,
Do potente Proteu marinha prole,
290 Ocorreu compassiva a mim sozinho;
Que os mais de curvo anzol, do ventre urgidos,
De toda a ilha em derredor pescavam.
Acometeu-me a deusa: — “Estulto ou fátuo,
Ficas-te, hóspede, em mágoas te apascentas,
295 E enquanto aqui sem termo estás detido,
Langue e definha o coração dos sócios.”
     “Ó deusa, contestei, seja qual fores,
Por meu gosto o não faço, mas suponho
A celícola algum ter ofendido.
300 Ora dize, a imortais é claro tudo,
Quem assim me proibe o mar piscoso. —
     “Ela ingênua me foi: — Do Egito o velho,
De Netuno ministro, aqui se aloja,
Proteu meu pai, que as úmidas entranhas
305 Tem sondado e conhece. Há de ensinar-te,
Se obténs prendê-lo, como a rota sigas,
E se o queres também, de Jove aluno,
Os maus ou bons domésticos sucessos
Durante errores teus no instável pego —
310 Eu porém: — Com que insídias surpreendê-lo
Poderei, sem que fuja ao pressentir-me?
Não é para mortais vencer a numes. —
     “A guapa ninfa continua: Atende.
Ao meridiano Sol, do salso abismo,
315 Hirtas sobre a cabeça as fuscas ondas,
Surde o ancião de Zéfiro aos sonidos;
Numa espelunca dorme, e em torno juntos
Ápodes focas de Halosidna bela,
A exalarem ascosa maresia.
320 N’alva, hei de colocarte em sítio azado,
Com três que elejas da valente frota.
Seus ardis eu te expendo. Cinco a cinco,
Ronda e enumera as focas, e no meio
Deita-se qual pastor com seu rebanho;
325 Sopita-se depois. De jeito e força
Os agarreis, bem que anele escapulir-se;
E em serpe ao converte-se, em água, em fogo
Tende-o mais duro e firme, até que o velho,
Já volto à prima forma, a interpelar-te
330 Comece. Inquire então que nume avesso
Te fecha o mar piscoso. — Ei-la mergulha;
N’alma comoto, às naus varadas corro.
Depois da ceia, inteira a noite amena
Pela praia arenosa adormecemos.
335 “Já vermelha a manhã, do imenso lago
À borda chego a suplicar os deuses,
Mais três seguros destemidos sócios.
Para enganar o pai, do fundo a ninfa
De focas sai com frescas peles quatro;
340 Camas na areia escava, à espera tem-se;
Vê-nos enfim, nas camas nos concerta,
A cada qual em sua pele enfronha.
Tetra cilada! os focas trescalavam
Nutridos na salsugem: de um cetáceo
345 Quem pode ao pé jazer? útil a deusa,
Neutralizando o cheiro, doce ambrosia
Nos unta às ventas: A manhã passamos,
Com paciência os quatro; acima os focas
Surgindo, junto a nós se enfileiraram.
350 “Merídio vem Proteu; conta, examina,
Por nós principiando, o gado obeso,
E sem dar pelo engano ali se estende.
A vozearmos súbito o agarramos:
Sem lhe esquecer o ardil, muda-se o velho
355 Em jubado leão, drago, pantera,
Cerdo, riacho, ou tronco de alta copa;
Mas, com tenacidade urgido, o astuto
Lasso vociferou: — Que deus, Atrida,
A forçar-me instruiu-te? que pretendes? —
360 Mas eu: — porque me enganas, tu que sabes
Que ansioso estou sem termo aqui detido?
Ora dize, a imortais é claro tudo,
Quem assim me proíbe o mar piscoso? —
     “Devias, respondeu-me, antes do embarque
365 Sacrificar ao Padre e à corte sua,
Para alcançares próspera viagem.
Amigos não verás, nem pátrio alvergue,
Sem que ao Dial Egito rio volvas
E às divindades hecatombes sagres:
370 O teu desejo então será cumprido. —
     “Magoado por de novo irmos ao rio,
Longa árdua rota em borrascoso pego,
Inda insisti: “Proteu, quanto me ordenas
Preencherei; mas dize-me sincero
375 Se os Arquivos que em Tróia se apartaram
De Nestor e de mim respiram todos,
Se algum morte imprevista, após a guerra,
Teve a bordo ou nos braços dos amigos.
     Ele: — Indagas, Atrida, os meus segredos?
380 Olha que d’água os olhos não te banhem.
Dos livres da matança em que te achaste,
Só morreram dous chefes arnezados,
E um vivo está no meio do Oceano.
Ante as remeiras naus, bebendo as ondas,
385 Ajax de Oileu da Parca foi preado:
Primeiro às pedras o lançou de Giras
Favorável Netuno, onde escapara
Mal grado a Palas, se ímpio não bramasse
Que era salvo apesar dos mesmos deuses;
390 Eis, da blasmêmia azedo, o rei dos
Pega do seu tridente e fere a penha
Aos pés de Ajax, que se abismou no fundo
Com porção do rochedo. Em cavo bojo
Foi por Juno Agamemnon preservado;
395 Mas, ao dobrar o Maléia, uma tormenta
O arrojou pesaroso ao campo extremo,
De Fiestes morada, ora de Egisto:
Seguro cria-se, e mudado o vento,
Recolhidos os deuses, o chão pátrio
400 Beija alegre e o ensopa em quente choro.
Um vigia o avistou, que o ano inteiro,
De dous áureos talentos com promessa.
Pôs de atalaia Egisto, e que era atento,
Por temer que, aportando inopinado,
405 O herói do seu valor se recordasse;
Denunciá-lo foi. Súbito Egisto,
Insidioso, valentões da plebe
Vinte escolheu, que estavam de alcatéia,
Aprestado um banquete em outra sala.
410 O traidor, meditando, em coches parte
O Atrida a convidar, que à ceia incauto,
Como a rês no presepe, é trucidado;
Nem sócio deste, nem de Egisto mesmo
Poupam na régia os brutos matadores. —
415 “Cai na areia em pranto, e compungido
Viver nem ver queria ao Sol a face.
De prantear cansei-me e rebolcar-me,
E então Proteu: — O luto é sem remédio,
Basta; a Micenas corre; ou vivo ou morto
420 Ou de Orestes punido, ao menos chegues
Para os seus funerais. — Isto me acalma
O generoso peito, e veloz falo:
— Pois bem, doa-me embora, esse outro ou preso
Ou morto no Oceano me declares. —
425 “Prossegue o vate: — É o Ítaco Laércio.
Na ilha o vi desfeito em grossas lágrimas.
Por Calipso retido, e sem navio
Para vogar no páramo salgado.
Genro de Jove, tu de Helena esposo,
430 Morrer em campo Argólico não deves,
Mas, junto ao flavo Radamanto, o Elísio
Deleitoso habitar, confins da terra;
Onde os humanos docemente vivem,
De temporais, de neves, de invernadas
435 Sempre isentos, e de auras do Oceano
Fresco bafejo e respirar suave. —
Então sumiu-se no espumoso ponto.
     “Com meus divinos sócios, no embarcarmos,
Ia deliberando, e espessa a noite,
440 Finda a ceia, no seco repousamos.
No matutino albor, em nado os lenhos
De amuradas iguais, mastros eretos
E tendidas as velas, de seus bancos
Batem remeiros o espumoso pego.
445 De novo ao rio Egito navegamos,
E apaziguado o Céu com sacrifícios,
Do irmão levanto em honra um cenotáfio.
Prosperamente os ventos assoprando,
Mandam-me os deuses à querida pátria.
450 Agora, fica tu comigo uns dias,
Dez ou doze; haverás válido coche,
Três corcéis, linda copa, que, em sagradas
Libações, deste amigo te recorde.”
     “Não me detenhas replicou Telêmaco.
455 Um ano, deslembrado o lar paterno.
Dessa boca eloqüente aqui pendera;
Mas, já com tédio, na divina Pilos
Meus sócios, Menelau, por mim suspiram.
Dás-me um tesouro; eu deixo-te os cavalos
460 Nas mimosas campinas em que imperas,
Onde à larga germinam loto, junça,
Trigo, cevada e espelta; lá nem tenho
Vastos circos nem prados: só de cabras,
Não de poldros nutriz, me é cara a terra;
465 Pois, Ítaca mormente, em roda as ilhas
Do nosso mar em pastos não verdejam.”
     Ri-se o pugnaz Atrida, e a mão lhe cerra:
“És de bom sangue, acertas. Posso, filho,
Pela mais bela a dádiva trocar-te
470 Por argêntea cratera de áureas bordas,
Lavor exímio de Vulcano mesmo:
Foi do rei dos Sidônios glorioso
Prenda, ao nos despedirmos; de hoje é tua.”
E entanto em sala interna resplendente
475 Concorrem: quem ovelhas, quem trazia
O vigoroso vinho; o pão, de fitas
Ornadas moças. Lauta a ceia aprestam.
     Mas de Ulisses na régia, ao disco e dardo
Os procos num calçado se exerciam
480 Pátio, que da protérvia era o teatro;
E, ao pé de Antino e Euríniaco deiformes,
Indagou Noémon, de Frônio garfo:
“Sabe-se, Antino, da arenosa Pilos
Se Telêmaco é vindo? Em meu navio
485 Foi-se, e a Élide vasta ir necessito;
Éguas doze lá tenho e mus bravios,
E alguns desejo acostumar ao jugo”.
     Atônitos calaram, que o supunham
Em Pilos não, mas a velar nos prédios,
490 No pastor e na grei. De golpe Antino:
“Quando, como partiu? seletos jovens
De Ítaca tem consigo, ou tão somente
Mercenários e escravos? Que ardileza!
Fala a verdade; a nau, por força a deste,
495 Ou cedendo a seus rogos voluntário?”
     Súbito Noémon: “Fi-lo espontâneo.
A preces de homem tal quem não cedera,
E em tanta angústia? A gente mais luzida
E a Mentor vi no embarque, ou certo um nume,
500 Que em tudo o parecia. Mas, oh! pasmo,
O divino Mentor bem que embarcasse,
Na manhã de ontem me encontrei com ele.”
Disse, e à casa paterna recolheu-se.
     Os audazes, comotos e aterrados,
505 Se abstêm dos jogos. O Eupiteio ruge,
De rábido furor, olhos em brasa:
“Oh! que atrevida empresa! de acabá-la
Julgado era incapaz: mocinho, às ondas,
A despeito de nós, deitou navio,
510 E com gente escolhida foi-se impune.
Este começo nos agoura danos,
Se o não tolhe o Satúrnio. Já, ligeiro
Baixel de vinte remos; que, à passagem
De Ítaca e Samos numa espera, conto
515 Que a viagem por seu pai lhe seja amarga.”
Aprovam todos e ao palácio montam.
     Médon, que ouviu de fora o atroz conluio,
Pelo pátio açodou-se a anunciá-lo,
E Penélope indaga: “Eles te enviam,
520 Para que as servas do divino Ulisses
Terminem seu trabalho e a mesa ponham?
Basta de importunar-me e a quaisquer outros.
Esta lhes fosse a derradeira ceia!
Ó vós que ao meu Telêmaco amiúde
525 A substância esbanjais, nunca em meninos
Quem seu pai era aos vossos escutastes?
Brando ao povo, em palavras comedido,
Justo e humano, alguns reis não semelhava
Que ódio e favor dispensam caprichosos.
530 Ah! vós lho agradeceis com torpes feitos.”
     E o sensato Médon: “Fosse, ó rainha,
Esse o mal todo! os bárbaros meditam,
Jove o remova, assassinar teu filho
Ao regresso de Pilos e de Esparta,
535 Aonde foi colher de Ulisses novas.”
     Do abalo sufocada, esmorecida,
Joelhos frouxos, lágrimas nos olhos,
Estúpida soluça e balbucia:
“Que! nada urgindo, cavalgou meu filho
540 Num dos corcéis do mar que a salsa imensa
Via atravessam! Nem pretende ao menos
Renome entre os humanos!” — “Eu ignoro,
Torna Médon, se um deus, se impulso próprio
Fê-lo ir do pai no alcance, ou vivo ou morto.”
545 Nisto, o arauto a seu posto recolheu-se.
     Bem que a sala em cadeiras abundasse,
Atormentada ao limiar sentou-se
Da câmara custosa, a lastimar-se;
Em ais cercam-nas as servas quantas eram,
550 Velhas e moças, a quem diz chorando:
“O Céu me aflige, ó caras, mais que a todas
Que nasceram comigo e se criaram:
Meu marido perdi, leão no esforço
De virtudes complexo, espelho aos Dânaos,
555 De Hélade e Argos espanto; ora o só filho
Preia inglório será das tempestades.
Cruéis, vós que o sabíeis, à partida
Acordar-me do leito não viestes:
Se eu da sua intenção fosse inteirada,
560 Ele ou não ia ou morta me deixara.
Uma aqui chame a Dólio, o velho escravo.
Paterno dom, cultor dos meus pomares;
Corra, informe a Laertes, e este ao povo
Deplore a trama que extinguir a estirpe
565 Dele e de Ulisses divinal promove.”
     A ama Euricléia então: “Querida ninfa,
Mates-me a duro bronze, ou bem me poupes,
Não te oculto, ciente o pão e o vinho
Eu mesma forneci; jurei sagrado
570 Por doze dias, salvo ou pressentires
Ou vê-lo desejares: tinha medo
Que te ofendesse o pranto as faces belas.
Tu purifica-te e alvas roupas cinge,
No alto com tuas fâmulas implora
575 A Tritônia que o filho te conserve;
Não contristes o velho. Eu não presumo
Que o Céu deteste a geração de Arcésio:
Sequer nos restará quem nesta régia
Mande em longínquos ubertosos campos.”
580 Com isto aliviada, enxuga os olhos;
Sobe, e se purifica e se reveste,
Ora com suas fâmulas, esparso
De açafates o farro: “Ouve-me, ó gérmen
Do aluno e Amaltéia; se o prudente
585 Ulisses te queimou de ovelha ou touro
Gordas pernas, conserva-lhe o só ramo,
Daqui me afasta os arrogantes procos.”
Geme e ulula; aceitou-lhe os votos Palas.
     Pelos escuros átrios em tumulto,
590 Sem suspeita, os protervos se diziam:
“Certo, ignara do risco de seu filho,
Cobiçada a rainha apresta as bodas.”
Mas Antino os atalha: “Endiabrados,
Calai-vos, pode alguém denunciar-nos;
595 Tácitos nosso plano executemos.”
     Vinte escolhendo, lesto à praia os guia;
Eis, o baixel em nado, o mastro erigem,
Remos aos bordos em correias atam,
Armas carregam valorosos pajens,
600 E dos envergues fora as brancas velas,
Comem de largo, esperam que anoiteça.
     Penélope, em jejum, no andar cimeiro,
Só no inocente cuida, se ele escape,
Ou se aos golpes sucumba dos traidores:
605 Como temendo, em círculo doloso
De montanheses, o leão cogita,
Ela pensa e repensa, e recostada
Lhe amolenta as junturas meigo sono.
Palas, que isto aguardava, uma aparência
610 Da Icária Iftima, em Feres com Eumelo
Casada, aos paços de Laércio expede,
Porque o pranto a Penélope refreie;
Na câmara a visão, por entre o loro
Da fechadura entrando, à cabeceira:
615 “Adormeces, Penélope, lhe brada,
Aflita e mesta? Os numes não permitem
Essa tristeza; reverás teu filho,
Que nunca os ofendeu nem levemente.”
     Às portas já Penélope dos sonhos
620 Adormentada, fala: “A que vieste,
Irmã, que, ao longe moradora, nunca
Me visitavas? queres que eu deponha
As dores e aflições que n’alma sinto?
Perdi meu bom marido, exemplo aos Dânaos,
625 Honra da Grécia: agora o só renovo,
Inexperto em negócios e em trabalhos,
Meteu-se em cava nau. Mais choro a este;
Que se afunde, ou padeça em clima alheio,
Temo e tremo: inimigos o insidiam,
630 E antes que volte aqui matá-lo anseiam.”
     “Ânimo, ajunta, o fusco simulacro;
Não te assustes que o segue uma de todos
Aparecida: a consolar-te as penas
A potente Minerva a ti mandou-me.”
635 “Se és deusa, diz Penélope, ou da deusa
Ouviste a voz, do outro infeliz me informes:
À luz do Sol acaso inda respira,
Ou jaz defunto na Plutônia estância?”
     A sombra contestou: “Se é morto ou vivo
640 Omito, é vão discurso.” E como vento
Por entre a fechadura esvaeceu-se.
Desperta a Icária, exulta ao ver o sonho
Da noite na calada sobrevir-lhe.
     A úmida via os pérfidos sulcavam,
645 De Telêmaco o exício ruminando.
Fica entre Samos e Ítaca fragosas
Ásteris, ilha exígua, de pastagens,
De abras, de uma e outra banda, ao crime azadas,
Para a traição, de espreita, ali se escondem.


NOTAS AO LIVRO IV
9-21 - Diz Homero que uma serva, na ausência de Menelau, a este pariu um filho. Pretende M. Giguet que Megapentes nascera na velhice do pai; o que era impossível. Partido vinte anos antes e de fresco recolhido, ou Megapentes era gerado antes da expedição ou depois da vinda de Menelau: no primeiro caso, este era moço; no segundo caso, era Megapentes uma criança e não tinha idade para casar. Télugetos, segundo Hederico e os seus continuadores, significa: 1.º) e é o sentido próprio, nascido ao longe na ausência do pai; 2°) nascido na velhice; 3°) de mui tenra idade; 4.°) querido de seus pais. Pelo acima exposto, é evidente que o adotável é o primeiro. — Se, no verso 21, em vez de quiçá usasse eu de talvez, desagradável seria e duro: muito mau serviço fizeram os que afastaram da língua uma infinidade de palavras sonoras e expressivas.
32 - Espelta, de que já me servi em outras obras, spelta ou zea em latim, é uma espécie de trigo, e tem o mesmo nome em italiano, em castelhano e em português, posto que não venha em dicionário nosso: em francês, épeautre.
176 - Nepentes, adjetivo que significa sem dor ou que dissipa a dor, é tomado substantivamente por certa erva ou remédio que produzia o mesmo efeito.
219-221 - Cava insidia, significando o bojo do cavalo, é uma arrojada expressão, que eu não quis apoucar. - Acho razão em Rochefort quando opina que há interpolação nesta passagem, por ser indigno de Homero que Helena fosse contrafazer a voz das mulheres dos que estavam dentro do cavalo; e é tanto mais ridículo quanto é certo que essas mulheres não estavam em Tróia, nem os maridos podiam acreditar que elas, de um dia para outro, chegassem todas para os excitar. Conservo a passagem, não querendo ser tachado de omisso; mas não creio que tal qual fosse escrita pelo poeta.
299 - Algum, posto que venha posposto a celícola, não é em sentido negativo. Constâncio categoricamente afirma que homem algum significa homem nenhum; mas este erro grosseiro é um dos seus frequentes caprichos; nem ele cita, nem se podem citar exemplos, de autor que faça fé, em justificação do seu parecer: o único de Barros, onde houve a omissão de um non, está longe de contrabalançar os inumeráveis de Camões, Ferreira, Sá de Miranda, Côrte-Real Bernardes, Leão, Mausinho, Ordenações do Reino, e outros que alega Morais.
368-448 — O rio Egito que deu nome à região, ainda não se chamava Nilo no tempo de Homero; e esta é uma das razões que provam ter sido o poeta anterior a Hesíodo, que já usa do nome Nilo. — O verso 448 é um de Camões no seu episódio de Adamastor.
600-601 — Alguns vertem que os pretendentes amararam-se logo, soltaram as velas e esperaram pela noite: ora, eles esperavam que anoitecesse para partirem; não soltaram as velas, somente as desenvergaram e as tiveram prestes para à noite saírem imprevistamente; nem se amararam, somente se puseram de largo, o que é diferente: os navios, antes de largarem, costumam colocar-se um tanto afastados do porto. Ir para índice do livro.