Pesquise no Google

Mostrando postagens com marcador Pindemonte. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Pindemonte. Mostrar todas as postagens

Odisséia de Homero - Livro XVI

O herói de madrugada e Eumeu divino
Fogo acendem na choça e almoço aprestam,
Indo os serventes pastorar os porcos.
Sem latir, a Telêmaco aventando,
5 O festejavam cães; sentindo Ulisses
As caudas a mover-se: “Eumeu, gritou-lhe,
Ou sócio ou conhecido se aproxima;
Tropel me soa, e os ledos cães não ladram.”
     Mal acabava, à porta o jovem pára;
10 E, pulando o porqueiro atabalhoado,
Caem-lhes os vasos e o licor transfuso;
A encontro, as mãos lhe beija e a testa e os olhos.
Qual pai, ao décimo ano, ameiga a prole
De longes terras vinda, a só que em velho
15 Teve e lhe suscitou mil pesadumes;
Tal o pastor seu amo acaricia,
Como um ressuscitado, e exclama e chora:
“Eis-te, meu doce lume! dês que a Pilos
Navegaste, rever-te não contava.
20 Entra, meu coração deleita, ó filho,
A nós restituído: raro o campo
Visitas e os pastores; na cidade,
Contino observas os funestos procos.”
     “Velho irmão, diz Telêmaco, obedeço;
25 Ver-te e ouvir-te aqui venho; tu me informes
Se inda está minha mãe no seu palácio,
Ou se casou: talvez aranhas torpes
Jazam de Ulisses no vazio leito.”
“Ela, o informa o pastor, no teu palácio
30 Constante sofre; a suspirar consome
A noite aflita e o lagrimoso dia.”
     A lança então recebe, e o amo salva
A lapídea soleira. O assento Ulisses
Quer ceder, mas Telêmaco o proíbe:
35 “Não te incomodes, hóspede; um assento
Me ajeitarão.” Seu posto Ulisses toma;
Ele abanca-se em ramos que de peles
Eumeu forra. O pastor pães em cestinhos,
De assados põe de véspera escudelas,
40 Num canjirão mistura o doce vinho,
Do grã Laércio em frente se coloca;
Os comensais atiram-se às viandas.
     Fartos enfim, Telêmaco interroga:
“Velho irmão, como este hóspede aqui veio?
45 Que nautas o trouxeram? de que terra?
A Ítaca não creio a pé viesse.”
Assim falaste, Eumeu: “Digo a verdade.
Ser de Creta blasona, e haver corrido
Muitas cidades por divino influxo.
50 De nau Tesprócia escapo, aqui chegou-se.
Dispõe dele a prazer, eu to encomendo;
Súplice teu se ufane.” — “Amigo, o jovem
Lhe bradou precavido, que proferes?
Comigo ter um hóspede! Não posso,
55 Tão moço, defendê-lo de uma afronta:
Minha mãe ora no ânimo cogita
Se, dedicada ao filho, a seu marido
E ao público respeite, ou se dos Gregos
Se una ao melhor que à larga a presenteia.
60 Já que nesta choupana o recolheste,
Capa e túnica, ancípite uma espada
E sandálias terá, terá passagem
Para onde se lhe antoje. Hei de mandar-lhe,
Se o cá deténs, a roupa e o mantimento,
65 Para não te comer e aos sócios tudo.
É perigo na régia apresentá-lo;
Os soberbões cruéis o insultariam,
Agra dor para mim: do herói mais forte
Contra muitos e tais é baldo o empenho.”
70 O pai se entremeteu: “Se opinar devo,
O que, amigo, te ouvi rói-me as entranhas:
Sendo quem és, tiranos tais protervos
A teu olhos conspiram! Não resistes,
Ou por celeste voz te odeia o povo?
75 Acusas tu a irmãos, em cujo esforço
Nas maiores discórdias confiamos?
Por que a idade ao valor não corresponde!
Por que não sou seu filho, ou mesmo Ulisses,
Em quem inda se espera! Esta cabeça
80 Me cerceassem, do Laércio aos paços
Despejo tal se castigar não fosse.
Antes morrer, da vil caterva opresso
Nos lares meus, que vê-los sem decoro,
Violadas servas, hóspedes vexados,
85 Sem fruto as produções e o vinho exausto.”
     Respondeu-lhe Telêmaco: “Em verdade,
Nem povo hostil, nem meus irmãos acuso,
Em quem mais nas discórdias confiamos.
Fez Jove solitária a nossa estirpe:
90 De Arcésio foi gerado o só Laertes;
Só foi deste meu pai; só fui de Ulisses,
Que não fruiu das filiais carícias.
Tem ora inçada a casa de inimigos:
De Ítaca bronca, de Zacinto umbrosa,
95 E de Same e Dulíquio, os optimates
Requestam minha mãe, seus bens consomem
Ela as núpcias odiosas nem rejeita,
Nem as conclui; entanto, os pretendentes
Hão de em breve de todo arruinar-me:
100 Jaz porém minha sorte aos pés dos numes.
Eumeu, sus, à rainha me anuncies
Incólume de Pilos: cá não tardes;
Nenhum te sinta que meu dano teça.”
     “Percebo, diz Eumeu; terei cautela.
105 De uma via posso eu participá-lo
A teu mesquinho avô? Com mágoa embora
Do ausente filho, aos servos presidindo,
Se nutria à vontade; mas, a Pilos
Dês que te foste, o vinho enteja e o pasto,
110 Esquece-lhe o trabalho, e geme e chora,
Tábida a cútis se lhe apega aos ossos.”
     “Triste aflição! Telêmaco pondera;
Mas deixá-lo na dor convém por ora:
A nosso arbítrio se estivesse tudo,
115 Era aqui já meu pai. Tu anda e volta,
Para o avisar no campo não divagues;
Minha mãe que despache a despenseira,
E esta em segredo o comunique ao velho.”
As sandálias Eumeu calçado, parte.
120 A partida a Minerva não se esconde
Que tem-se à entrada, na gentil figura
De moça airosa e no lavor perita.
A Telêmaco invisa (um nume a todos
Não se apresenta), Ulisses a descobre,
125 E os cães também, que sem ladrar fugiam
Pelo pátio a ganir. Das sobrancelhas
Ao sinal, entendido sai da choça
E extramuros o herói; fronteira Palas:
“Divo Laércio, diz, abre-te agora
130 Com teu filho; à cidade encaminhai-vos
O extermínio a tramar dos pretendentes:
Sem mora a combater serei convosco.”
Eis de áurea vara o toca; da alva capa
E da túnica dantes o reveste,
135 O engrandece e vigora o nédio rosto,
Morena a cor de novo, azula a barba.
Isto completo, retirou-se Palas.
     Volve Ulisses; pasmado o filho caro
Vira os olhos, temendo que um deus fosse,
140 Veloz fala: “Diverso me apareces,
Tens, hóspede, outras vestes e outra cútis;
Certo és um dos celícolas. Benigno
Tu nos perdoa, e gratos sacrifícios
E áureos dons haverás.” Súbito Ulisses:
145 “Não sou deus, a imortais não me equipares;
Sou teu pai, sou quem choras, quem suspiras,
Por quem padeces vitupérios tantos.”
     Nisto a seu filho beija, e à terra a pares,
Não mais contidas, lágrimas borbulham.
150 Mas Telêmaco incerto: “Eu não te creio;
Não és meu pai, és deus que assim me enganas
E aumentas minha dor. Um simples homem
Por si não se transforma em velho ou moço:
Tu, decrépito há pouco e mal trajado,
155 Um íncola do Olimpo ora semelhas.”
     Contesta o sábio herói: “Não te é decente
Filho, surpresa tal, nem outro Ulisses
Verás; sou eu, que, após tremendas provas,
Chego ao vigéssimo ano à pátria amada.
160 A predadora Palas me converte
Num apôsto mancebo ou num pediente:
A prazer, aos celícolas é fácil
Tornar qualquer mortal formoso ou torpe.”
     Aqui, sentou-se; o príncipe entre os braços
165 O estreita a soluçar: incita o amplexo
O desejo de lágrimas em ambos:
Seus gemidos estrugem, quanto os grasnos
De abutres e águias de recurvas unhas,
A quem pilhou pastor ninhada implume.
170 E o Sol cadente em prantos o deixara,
Se Telêmaco ao pai não perguntasse:
“Que nautas cá, meu pai, te conduziram?
A Ítaca a pé de certo não vieste.”
     O paciente Ulisses respondeu-lhe:
175 Transportaram-me os ínclitos Feaces,
Que usam fazê-lo aos mais que lá naufragam.
No ligeiro baixel dormindo sempre,
Fui deposto na praia, de ouro e cobre
E belas teias rico; dons que em antro
180 Por divino favor se arrecadaram.
Palas mandou-me aqui tratar contigo
Do estrago desses procos: quais e quantos
Numera-os tu; pois no ânimo valente
Pesarei se podemos debelá-los,
185 Ou se nos é mister auxílio estranho.”
Mas Telêmaco: “Eu sei, pregoa a fama,
Quão prudente és, meu pai, guerreiro e forte;
Nímio porém me assombra o teu discurso:
Dous sós, tantos valentes combatermos!
190 Nem dez são, nem o dobro: enviou Dulíquio
Cinqüenta e dous galhardos, com seis pajens;
Oitenta e quatro, Same; tem Zacinto
Vinte Gregos de prol; Ítaca mesma,
Ótimos doze, com Médon arauto
195 E o cantor, mais dous hábeis cozinheiros.
Temo, se a todos atacarmos dentro,
Que proves ao regresso amargos transes:
Olha se ativo auxiliar careias.”
     Ulisses retorquiu-lhe: “Ouve-me; atenta
200 Se nos bastam Minerva e o pai Satúrnio,
Ou se outro ajudador nos é preciso.”
Logo o filho: “Esses podem lá das nuvens,
Mais que homens e outros numes, socorrer-nos.”
     De novo Ulisses: “Longo tempo fora
205 Não serão da peleja, ao decidi-la
Em meu palácio o marcial denodo.
Vai n’alva reunir-te aos arrogantes;
Serei, na forma de um mendigo anoso,
Guiado por Eumeu. Sofre no peito
210 Que da nossa morada eles me enxotem,
Rojem-me a pontapés e golpes vibrem;
Com doçura os modera, a dor sopeia:
Nenhum te escutará, que os cerra o fado.
N’alma isto agora imprime: quando Palas
215 Mo influir, ao meu nuto as armas leves,
Que estão na sala, para o andar cimeiro;
E caso alguém o estranhe, assim te escuses:
— Quais as deixou meu pai, já não luziam,
Do vapor do fogão fui preservá-las;
220 E outro medo o Satúrnio suscitou-me:
Entre os copos, ferir-vos poderíeis,
Nosso convívio e os esponsais manchando;
Pois a força do ferro atrai o homem.
Reserva para nós só dous alfanjes,
225 Dous maneiros broquéis e lanças duas,
Para a divina empresa: hão de Minerva
E o providente Jove conturbá-los.
E se és meu sangue, filho, em ti sepultes
Este arcano; de Ulisses ninguém saiba.
230 Laertes, o pastor, qualquer dos servos,
Nem Penélope mesma. Só tentemos
O pensar das mulheres; qual dos nossos
Nos respeita e aprecia; de seus amos
Qual ingrato se esquece e te honra pouco.”
235 E o filho: “Ó pai, conhecerás, espero,
Que nem cobarde sou, nem leviano:
Mas julgo, e tu reflitas, que a nós ambos
É dúbio o lance. Ao passo que examines
Os servos um por um, de prédio em prédio,
240 Os tais sem dó nem pejo a casa esbanjam.
Das mulheres, concordo, é bom que indagues,
Das ruins que teus lares enxovalham:
Quanto aos homens, difere até que acene,
Se teu acenar, o egípero Satúrnio”
245 Entretanto, abordava a nau remeira
Que trouxera a Telêmaco de Pilos;
Em seco e desarmada, os da equipagem
De Clito em casa os ricos dons puseram.
À prudente rainha arauto expedem
250 A anunciar que o filho, já no campo,
Os mandava vogar para a cidade;
E a mãe suspenda os prantos e os temores:
O arauto e Eumeu se encontram no caminho.
Do rei divino ao pórtico chegados,
255 O arauto grita em público: “Senhora
Veio o caro Telêmaco.” Em voz baixa
Expondo Eumeu do príncipe o recado,
Sai do recinto e a seus currais se torna.
     Mestos os pretendentes, ante as portas
260 Sentam-se externas. De Pólibo o nado
Eurímaco encetou: “Cumpriu-se, amigos,
Plano audaz que julgávamos falhasse,
E regressou Telêmaco: esquipemos
Outro lesto baixel que advirta os sócios.”
265 E vôlto ao mar Anfínomo, um navio
Entrando a remos no profundo porto
Viu, já dobrado o pano, e a rir começa:
“É supérfluo um aviso, ei-los que arribam.
Ou lho disse algum deus, ou deram caça
270 E lhes fugiu Telêmaco.” Eles presto
Vão-se à praia; a maruja, a nau varada,
A despia de enxárcias e aparelhos.
     Ali junto um conselho, sem que ou moço
Ou velho se abancasse, Antino enceta:
275 “Os Céus a ponto, amigos, o salvaram!
De dia assíduas em ventosos cumes
Sentinelas havia; ao Sol ocaso.
Rumo do mar, à noite navegando,
Nunca em terra dormíamos, à espera
280 Que ao rosicler da aurora aparecesse
E insidiado vítima nos fosse:
Um nume o protegeu. Deliberemos:
Se viver, malogrado é nosso intento.
Ele é firme e discreto, e já não somos
285 Como dantes benquistos: crede, ao povo
Excitado arengando em parlamento,
A nossa trama explicará baldia;
E o povo em sanha, desta ação bramindo
Pode exilar-nos para estranha terra.
290 Ou no campo ou na estrada combinemos
Dar cabo dele: haveres e tesouros
Partilhando igualmente, à mãe cedemos,
E ao marido que eleja, este palácio.
Vivo se inda o quereis, e em plena posse
295 Dos bens paternos, é melhor cessarmos
De lhos comer; e cada qual, dotando-a,
A resqueste de casa: ela que espose
Quem mais a prende ou favoneie a sorte.”
     Emudeceram; mas ergueu-se Anfínomo,
300 Do Axetíades Niso real prole,
Chefe dos procos de Dulíquio herbosa
E pingue em cereais, por bom e afável
Mais à rainha grato, e orou sisudo:
“Amigos, eu me oponho. A régio garfo
305 Árduo é matar; os deuses consultemos:
Se o reto Jove o aprova, eu mesmo os golpes
Hei de vibrar afouto e compelir-vos;
Do contrário, nos cumpre aquietarmos.”
Prevalece este aviso, e levantados,
310 Vão-se ao palácio em tronos se recostam.
     A sensata Penélope, instruída
Pelo arauto Médon do atroz conluio,
Presentar-se resolve aos afrontosos;
Entre mulheres, véu luzido ao rosto,
315 Majestosa ao limiar da ornada sala,
Increpa Antino: “Em vão, cruel, te aclamam
Dos coevos primeiro em siso e falas;
Néscio, ante Jove aos súplices atento,
Urdes ao meu Telêmaco a ruína!
320 É ímpio de outrem cogitar a morte,
Esqueces que teu pai teve este asilo,
Fugindo à multidão, pós ele acesa
Porque aos Táfios ladrões se unira em dano
Dos aliados nossos os Tesprotes?
325 Rasgar-lhe o peito e os bens queria o povo
Destruir-lhe; o furor susteve Ulisses:
Desonras deste a casa, a esposa tentas,
Matas-lhe o filho, minha dor cumulas.
Cessa, Antino, e teus cúmplices que cessem.”
330 Eurímaco arengou: “De Icário, ó prole,
Bane d’alma o temor; nem há, nem houve,
Nem haverá quem mãos ponha em teu filho,
Enquanto eu vir o Sol. Digo e executo:
Nesse traidor ensoparia a lança.
335 O turrífrago Ulisses amiúde
Aos joelhos me serviu de vinho e carnes:
A Telêmaco eu amo sobre todos.
Não receies que a morte lhe inflijamos:
A que vem do Supremo não se evita.”
340 Ele a conforta, e o crime ruminava.
Ela sobe, e na câmara estupenda
Geme o querido esposo, até que os lumes
A olhi-cerúlea em sono lhe abebera.
     Vindo o pastor à tarde, para a ceia
345 Um bácoro feriu. Da vara ao toque,
Logo, ao Laércio avelhantou Minerva,
Em trapos o envolveu: se o conhecesse,
Poderia a Penélope ir contá-lo,
E um nem outro conter-se. — “Eumeu divino,
350 Adiantou-se o mancebo, que há de novo?
Estão já dentro os arrogantes procos,
Ou de espera no estreito me insidiam?”
Respondeste, ó pastor: “Vagar não tive
De o saber; apressado as ruas corto,
355 Noticio e regresso. Mas um núncio
Topou-me, que teus sócios expediram;
Ele é que a tua mãe falou primeiro.
Ouve agora o que vi: já fora estava
De Mercúrio no monte, quando o porto
360 Navio entrou veloz, de gente cheio,
De éreos broquéis e bipontudas lanças:
Que eles eram suspeito, eu não to afirmo.”
     Olhos volvendo ao pai, sorri-se o moço
E esquiva os do pastor. Já pronto o assado,
365 Logram-se do convívio, sem queixume
De porções desiguais. Depois, refeitos,
Na cama em sono doce adormeceram.

NOTAS AO LIVRO XVI
33-65 — Diz Pindemonte ser de mármore a soleira da choupana de Eumeu; é sobeja riqueza para a casa de um porqueiro: Homero só diz que era de pedra. — A passagem vertida no meu verso 65 faz conjeturar que certos escravos em Ítaca tinham alguma cousa de seu, que nem tudo pertencia exclusivamente aos senhores; pois, a ser tudo dos senhores, Telêmaco não dissera que ia mandar a Eumeu com que sustentar o mendigo, para este não lhe ser pesado. Nas fazendas do Brasil, os senhores permitem aos escravos cultivar para si um pequeno terreno, ou também criar seus porcos e galinhas etc, e tais produtos são inteiramente dos escravos; para o que há um dia da semana em que eles trabalham no dito terreno, e se lhes dá o tempo necessário ao trato dos seus animais: os econômicos e ativos não raramente adquirem dinheiro e com ele conseguem a sua alforria. Parecia que havia quer que seja de semelhante, ao menos em alguns lugares da Grécia.
85 — Anêmustõ epi ergõ, M. Giguet traduz assim: pour une entreprise qui ne s’accomplira pas. Este modo de falar indicaria em Ulisses uma confiança no futuro, não própria da sua habitual cautela. Sou com Pindemonte, que interpreta: indarno e senza fine o frutto.
89-91 — Rochefort, louvando este lugar, afirma que a repetição de mounon, que significa só, ne saurait guère passer dans une traduction. E não se limita à sua língua, decide logo de todas, como se ele as tivesse examinado: é defeito de não poucos tradutores franceses, quando não acertam com frase que bem traslade o original afirmar que nenhuma outra língua o pode conseguir. Ora, se Homero não oferecesse outras dificuldades, a que nota Rochefort não embaraçara nem embaçaria a tradutor nenhum: Pindemonte verteu a repetição do mounon, eu também o fiz; e qualquer francês, querendo, o pode fazer, pois que a sua língua a isto se presta otimamente.
136 — Desta passagem vê-se que Ulisses era trigueiro e de barba negra: o adjetivo melagchroiês refere-se à tez; kuaneai refere-se à barba, que, se é negra e feita, azul parece. Em um dos livros antecedentes, se diz que Ulisses tinha os cabelos da cabeça louros, o que não é contradição, pois há muitos homens de barba negra e de coma alourada ou mesmo loura. Combinado porém tudo que vem neste poema, antes se deve pensar que Ulisses tinha os cabelos da cabeça da cor dos que dizemos castanhos.
167-169 — Belíssima comparação: os dous heróis a chorar, principalmente Ulisses, a quem o poeta chama tantas vezes o destruidor de cidades, eram como águias ou abutres a grasnar pelos filhos perdidos. Por esta ocasião, Rochefort lembra a imitação de Virgílio na Geórgica, principiada por aquele verso nunca excedido: “Qualis populea moerens Philomela sub umbra.” Acrescenta porém: “Je ne pense pas, comme Pope, que Virgile ait judicieusement substitué le rossignol à 1’aigle. Le rossignol, que chante toujours au commencement du printemps, ne forme pas de sons plus touchants lorqu’on 1ui a enlevé ses petits, que lorqu’on a respecté son nid; au lieu que 1’aigle, ou 1’autour, passait, réellement, chez les Anciens, pour déplorer amèrement la perte de ses petits lorsqu’on les lui enlevait; et c’etait peut-être pour cette raison que dans les hiéroglyphes Eypiens, l’autour representait la douleur. Ainsi, il y a ici dans Virgile une faute contre l’imitation exacte de la Nature, et en voulant embellir Homère, il s’est écarté de la verité”. Antes de combater essa opinião, direi que Rochefort sem dúvida era habilíssimo em distinguir os diferentes sons das aves, e que, a ter vivido na antiguidade, fora talvez um excelente adivinho. Donde tirou ele que o rouxinol, cujo canto é variadíssimo, não tenha sons mais ternos e maviosos para carpir os filhinhos perdidos? em que observações funda a sua sentença? Não há naturalista que tal assevere: ao contrário, não é de crer-se que o rouxinol seja uma exceção, quando os animais, ao menos os que têm sido observados, usam de sons diversos em diversas ocasiões. Já Lucrécio o havia notado a respeito dos cães; e é indubitável que o naturalista Virgílio com pleno conhecimento da matéria adotou a mudança. Homero com razão compara o prantear dos heróis aos gemidos da águia e do abutre; mas o Latino judiciosamente, como o notou o poeta inglês, serviu-se do rouxinol. E por quê? porque Orfeu, que era um suave cantor e não um guerreiro, com mais propriedade é comparável em seus queixumes à ave mais conhecida pela doçura da sua voz. Podia Virgílio, sem incorrer em censura servir-se de outra ave canora, mas escolheu o rouxinol para exaltar a música de Orfeu e a ternura dos seus gemidos. — Fora melhor que Rochefort se contentasse de ser um dos péssimos tradutores de Homero, e fugisse de criticar miúdas vezes, do que ele mesmo se gaba, as imitações em que o poeta do bom gosto, por consenso dos imparciais, não raramente excede a seu grande mestre.
211 — Pensam, muitos que Ulisses diz que Telêmaco dissimule, ainda que seu pai seja arrastado pelos pés fora da sala; isto supõe que, para o enxotarem, o derribariam e o puxariam pelos pés; o natural porém, quando se quer fazer outrem sair de uma casa, é levá-lo a empurrões, ou a pontapés, se a violência é maior. Eu não me contentava com o sentido que se tem dado às palavras de Homero; e havendo em Pisa, na mesma casa que habitei, um estudante Grego instruído na sua língua tanto moderna como antiga, pedi-lhe que me traduzisse literalmente a passagem do poeta, sem declarar qual fosse a minha opinião: com prazer o ouvi traduzir que Telêmaco dissimulasse, ainda que Ulisses fosse levado a pontapés; e o moço acrescentou que parecia-lhe impossível outra interpretação. Ora, não obstante ser eu contrário aos que opinam que a pronúncia do grego moderno seja em tudo conforme à do antigo, estou convencido de que bem conhecer o moderno é grande vantagem para conhecer o antigo; sendo, como é certo, que as modificações e alterações são muito menos consideráveis que as dos idiomas de origem latina em confrontação com a língua mãe.
224-225 — A meu ver, diz Ulisses ao filho que deixe dois escudos maneiros; porque uma sala, por maior que fosse, era estreita para um combate, e nela mais convinham escudos não muito grandes, para melhor se manejarem. As espadas eram também curtas, phasgana; sós as lanças eram das ordinárias, dourê.
277 — Ocaso adjetivo, por cadente, se é latinismo, já o foi de Francisco Manuel nos Mártires, na descrição do Paraíso. Ir para o índice do livro

Odisséia de Homero Livro VII

Do éter assoma a dedirrósea filha;
Ergue-se o rei, presenta o egrégio Ulisses
Ante as naus ao congresso convocado,
E a par assentam-se em polidas pedras.
5 Cuidadosa do urbífrago Laércio,
Palas, de Alcino o arauto semelhando
Na cidade apregoa: “Ao foro, ao foro;
Um de vulto imortal ide ouvir, chefes,
Que hóspede Alcino recolheu das vagas.”
10 Incitados, a praça e os bancos enchem.
Mirando aquele em cuja fronte e espáduas
Graça divina despejou Minerva;
Mais guapo o fez e esbelto e majestoso,
Para que, a todos formidando e grato,
15 Nos certames de si desse alta prova.
Conciona grave na assembleia Alcino:
“O que hei no peito, príncipes, declaro.
Veio-me à casa este hóspede errabundo,
Se do Oriente ignoro ou do Ocidente,
20 Mas passagem me pede e que a fixemos.
A ida se lhe apresse; um forasteiro
Nunca em meu lar se lastimou retido:
Novo negro baixel ao mar divino,
Cinquenta e dous receba exímios nautas.
25 Ligados presto os remos aos toletes,
Eia, a lauto festejo compareçam.
No me falheis, cetrados: convidai-me
Demôdoco imortal, que em estro aceso
Por Jove, entoa cânticos melífluos.”
30 Ei-lo, avança; os cetrígeros o escoltam,
O arauto corre ao músico sublime.
Cinqüenta e dous se elegem, que submissos
Vão-se à praia e o navio deitam n’água,
Alçam mastro, içam velas, prendem remos
35 Com atilhos de coiro, e tudo prestes,
Abrindo o pano, o lenho põem de largo;
Passam depois ao régio nobre alcáçar,
Salões, átrios, vestíbulos se atulham
De mancebos, de velhos, turba imensa.
40 Alcino doze ovelhas e oito porcos
De alvos dentes imola e dous refeitos
E flexípedes bois, que os mais esfolam,
Deleitoso banquete aparelhando.
Conduz Pontono o vate aceito à Musa,
45 Que o cegou, mas lhe deu canto suave
E do bem e do mal o entendimento;
Num trono o põe de prata cravejado,
Numa coluna o encosta, e lhe pendura
Sobre a cabeça em prego a doce lira
50 E de a tomar indica-lhe a maneira;
Pousa-lhe um canistrel em mesa ornada,
Com cheia copa que à vontade empine.
Atiram-se aos manjares os convivas.
     Expulsa a fome e a sede, a Musa instiga
55 O poeta a cantar guerreiro canto,
Cuja fama às estrelas se exaltava;
A rixa era de Ulisses e de Aquiles,
Com ditos agros num festim sagrado;
E o rei dos reis folgava, porque entrando,
60 No estrear Jove a lide Grega e Teucra,
Do Pítio Apolo no marmóreo templo,
O oráculo a vitória prometeu-lhe,
Dês que os melhores Dânaos contendessem.
Prossegue o vate, a Ulisses à cabeça
65 Com força deita o purpurino manto,
Para encobrir nas morenadas faces
As lágrimas que a pares borbulavam.
No intervalo da música, as enxuga
E desce o manto, liba às divindades
70 Na bicôncava taça; quando, a rogos
Dos que a toada e a letra enamorava,
O bom cego as repete, o herói suspira
E, tornando a embuçar-se, esconde o choro.
     Junto, o percebe o rei: “Feaces, basta.
75 Nós, de iguarias cheios e de acorde,
Glória e adorno da mesa, ao foro andemos:
Narre o estrangeiro aos seus quanto hábeis somos
Em luta e pugilato, em salto e curso.”
     Marcha, e os grandes com ele; ao prego a lira
80 Suspende o arauto, e à cola guia o cego
Dos que iam divertir-se nos certames,
De infinita caterva acompanhados.
Jovens de pulso, Anquíalo, Acrônio,
Nautes, Elatreu, Ocíalo, se ergueram,
85 Pronteu, Proreu, Toon, Prines, Eretemes,
Anabesinco, Anfíalo progênie
De Polineu Tectômides; nem faltam
O igual de Marte Euríalo, o formoso
E esbelto Naubólides mais que todos,
90 Fora o guapo Laodamas; este alçou-se
Também com seus irmãos, de Alcino ramos,
Hálio gentil e Clitoneu galhardo.
     Começam pelo curso, e da barreira
Entre nuvens de pó rápidos voam:
95 Quanto um pousio arando excedem mulas
A bois tardonhos, Clitoneu bizarro
Pretere os outros e regressa ao povo.
Anfíalo em saltar, no disco Elatreu,
Vence Euríalo os mais na acerba luta,
100 Na punhada Laodamas, que no meio
Do regozijo brada: “Amigos, vinde,
Perguntemos se o hóspede é nos jogos
Exercitado: o corpo tem fornido,
Pernas, coxas, pescoço, espáduas, punhos;
105 Inda é verde, sofresse embora há pouco
O trabalho do mar, que tanto custa
E do varão mais rijo as forças quebra.”
     Euríalo aprovou: “Pois bem, Laodamas,
Vai tu mesmo incitá-lo.” Eis ante Ulisses
110 Tem-se o filho de Alcino: “Hóspede padre,
Entra, se os aprendeste, em nossos ludos;
Quadram-te à maravilha: é do homem timbre
De pés e mãos valer-se denodado.
Bane a tristeza, partirás em breve;
115 Em nado é teu baixel e os vogas prontos.”
     Mas o astuto: “Laodamas, tu provocas
A que zombem de mim? Não penso em ludos,
Penso na dores que passei tamanhas;
A volta mendigando, ao rei depreco
120 E ao popular congresso.” Em face o ataca
Súbito Euríalo: “Hóspede, não cuido
Que nos certames dos varões te exerças;
Menos atleta válido pareces
Que de marujos traficante mestre,
125 A especular na carga e mercancia
Da remeira galé, de roubos arca.”
     Torvo Ulisses o mede: “E tu pareces
Doudo varrido a proferir dislates.
Nem tudo Jove dá; beleza nega,
130 Ou loqüela, ou juízo: um não formoso
Com suave eloqüência orna o semblante,
E olhado com prazer, modesto e firme,
No parlamento se insinua e reina,
E na rua e na praça um deus o aclamam;
135 Outro, gentil como íncolas celestes,
Insulso é no exprimir-se. Tu, mancebo,
Nobre és de aspecto, mas no tino falhas;
Com teu parlar minha alma exacerbaste.
Não me creias ignaro dos certames;
140 Da idade no vigor fui dos primeiros:
Hoje o pesar me oprime, e o que hei passado
Na guerra e em salsas vagas; mas embora,
Meu coração mordeste, os jogos tento.”
     Aqui, de manto mesmo, um grosso aferra
145 Disco muito maior que os dos Feaces
O peso a revoltões zunindo expede:
Bem que pujante a chusma a remo e vela,
Se agacha ao tiro, e sobrevoa a pedra
Salvando as marcas todas. — Palas uma
150 Logo fixando, em vulto humano fala:
“Pode, hóspede, apalpando qualquer cego
Teu sinal discernir, que é nímio avante
Sem confusão dos mais; nenhum Feace
Tirar-te-á do lanço, eu to aseguro.”
155 O herói folga de tal benignidade,
E brando ajunta: “À liça agora, moços;
De novo jogarei, talvez mais longe.
Vós me irritastes, a ninguém recuso;
Ao cesto, à luta, ao curso, desafio
160 Todos, menos Laodamas, que hospedou-me:
Pelejar com o amigo, é de um vil néscio;
Quem quer que o tente num país estranho,
O jus perde ao respeito e a benefícios.
Nenhum temo ou desprezo; às claras venha
165 O que me julgue imbele experimentar-me.
No arco mormente primo; sei na turba
De hostis frecheiros num dos seus a farpa
À vontade empregar: nos campos Tróicos
Só me vencia o archeiro Filoctetes;
170 Entre os mortais que o pão da terra, comem,
Gabo-me e prezo de lhe ser segundo.
Com prístinos varões não me comparo,
Com Hércules e Êurito Ecaliense,
Que na sua arte aos numes se atreviam:
175 O grande Êurito foi de curta vida,
ímpio desafiando o iroso Apolo.
Meu dardo alcança como de outro a seta.
Só receio os Feaces na carreira,
Das ondas nimiamente quebrantado:
180 Nem sempre era o navio bem provido,
E frouxos tenho os trabalhados membros.”
     Ao silêncio geral sucede Alcino:
“Tens hóspede, razão de te agastares
Contra esse audaz, e a peito o provar tomas
185 De constante valor munido seres.
Que homem sisudo nunca mais te argua.
Ouve-me, outra impressão de nós conserves,
Para, ao festim com tua esposa e filhos,
Contares aos heróis quais prendas Jove
190 Desde avós nos transmite: em luta e cesto
Não somos extremados, sim ligeiros
E na marinha exímios; o banquete
Nos praz, coréia e música, a mudança
De vestidos, bom leito e quentes banhos.
195 Bailai vós, peritíssimos Feaces;
O hóspede narre aos seus quanto excelemos
Em navegar, em pés, em dança, em canto.
Corra alguém, e a Demôdoco da régia
Depressa traga a cítara sonora.”
200 Pontono corre. Os públicios do circo
Nove eleitos juizes, levantados,
O lugar aplanando, o espaço alargam.
O arauto volta; a cítara o poeta
Recebe, a quem na arena adolescentes
205 Cercam destros e airosos, em cadência
Pulsando o chão divino: absorto Ulisses
O enredo, o passo, a rapidez contempla.
     Demôdoco depois dedilha e canta
Como furtiva a coroada Vênus
210 Uniu-se a Marte, que o Vulcânio toro
Maculou com mil dons peitando a esposa.
Pelo Sol advertido, o grão ferreiro
Parte, vingança a meditar profundo;
No cepo encava a incude, laços forja
215 Que desdar-se não podem nem romper-se.
Mal os conclui, à câmara caminha
Do seu leito amoroso; uns aos pés liga,
Outros ao sobrecéu, com tanta insídia,
Que de aranha sutil quais teias eram,
220 Mas a qualquer celícola invisíveis.
Armada a fraude, simulou viagem
De Lemos à caríssima cidade.
Marte, cujos frisões têm freios de ouro,
Não obcecado, o fabro viu partindo;
225 Veio-lhe presto à casa, cobiçoso
De gozar Vênus bela: esta pousava
De visitar o genitor Satúrnio;
Pega-lhe o amante na mimosa destra:
“Vazia a cama está; Vulcano é fora,
230 Aos Síntios foi-se de linguagem bronca.”
     Ei-los ao leito jubilando ascendem,
E nas malhas do artista se emaranham;
Nem desatar-se nem mover-se podem,
Sem ter efúgio algum. Torna Vulcano,
235 Antes que a Lemos chegue; o Sol o avisa.
Ao seu pórtico pára angustiado,
Urro esforça raivoso, que no Olimpo
Retumba horrendo: “Ó Padre, ó vós deidades,
Vinde rir e indignar-vos desta infâmia.
240 Por coxo a Dial Vênus me desonra,
Amando ao sevo Marte, que é perfeito:
Se esta iesão me afeia, é toda a culpa
De meus pais, que gerar-me não deviam.
Vêde-os, oh! triste aspecto como dormem
245 No meu leito enleados; mas duvido
Que em seu ardor jazer assim desejem.
Meu laço os reterá, té que haja o dote
E os dons feitos ao pai, que deu-me a filha
De formosura exemplo e de inconstância.”
250 No éreo paço Vulcânio já Netuno,
Mais o frecheiro Febo e o deus do ganho,
As deusas de pudor não comparecem;
Do pórtico os demais, às gargalhadas,
O dolo observam do prudente mestre,
255 Olham-se e clamam: “Da virtude o vício,
Do inferno o lesto e forte é suplantado;
O manco aos mais veloz prendeu com arte,
Pague o adúlterio a multa.” Apolo ao núncio
De bens dador voltou-se: “Quererias,
260 Filho de Jove, assim dormir nos braços
Da áurea Ciprina?” Respondeu Mercúrio:
“Oxalá, Febo Apolo, ao pé de Vênus
Vós me vísseis dormir, e as próprias deusas,
No tresdôbro dos fios envolvido.”
265 Renovou-se a risada; mas Netuno
Sério ao mestre pediu que solte a Marte:
“Solta-o; prometo que a teu grado e à risca
Hajas a multa aos imortais devida.”
“Rei, contesta o aleijado, não mo ordenes;
270 A caução para o fraco é fraca sempre:
Como eu te obrigaria, se ele escapo
Se recusasse?” Então Netuno: “Marte
Se renuir, pagar-te-ei, Vulcano.”
     Rende-se o ínclito coxo: “Não me é dado
275 Negar-to.” E os laços desliou de um toque.
Os réus fugiram: para a Trácia, Marte;
Para Pafos Ciprina, a mãe dos risos,
Que ali tem bosque e recendentes aras.
Banhada em óleo divinal ungida,
280 As Graças do mais fino a paramentam.
     Ulisses da harmonia se recreia,
E a gente em roda. Alcino bailar manda
Laodamas e Hálios sós, que a palma levam:
Um, curvo atrás, às nuvens roxa pela,
285 Que fez Pólibo, alteia, e outro, a pulo,
Antes que aos pés lhe caia, a encontra e joga;
A alma terra ao depois, tripudiando,
Alternos batem, com geral aplauso.
O estrépito sossega, e Ulisses fala:
290 “Bem gabaste na dança os teus Feaces;
Estou, potente rei, maravilhado.”
     Alegre Alcino: “Príncipes, decerto
É sábio e dons merece. Há cabos doze,
E eu treze: cada qual brinde-lhe um manto
295 Rico e túnica nova e áureo talento,
E junto obtenha tudo e à ceia folgue;
A injúria apague Euríalo e o congrace
Com palavras e dádivas” — De grado
Seu próprio arauto unânimes despacham,
300 E Euríalo obedece: “De vontade
Quero aplacá-lo, ó maioral dos povos;
Haja esta brônzea espada com bainha
De recente marfim e argênteos punhos,
Digna dele.” E ao passá-la: “Ó venerável,
305 Espalhe o vento irrefletidas vozes.
Longo há fora dos teus, hóspede, os numes
Restituam-te à pátria e à mulher cara.”
     “Salve, Ulisses responde, e sê ditoso.
Nunca, jovem amigo, a falta sintas
310 Do presente que afável me concedes.”
Aceita e cinge a espada claviargêntea.
     O Sol transmonta, e as dádivas afluem
Que ao real paço arautos conduziam;
De Alcino os filhos as recebem logo
315 E à mãe vão reverentes presentá-las;
O pai à casa os principais convida,
Senta-os em tronos, volve-se à rainha:
“Traze, mulher, tua arca a mais luzente,
Boa túnica e um manto; ao lume aqueçam
320 Caldeira para banho. Ele gozoso
Os dons remire dos heróis Feaces,
Divirta-se ao banquete e os hinos logre.
Dou-lhe em memória uma áurea fina taça,
Por onde libe à Jove e à corte sua.”
325 Ela ordena; uma trípode as escravas
Põem ao fogo e por baixo lenha acendem;
A água, lambendo a labareda o bojo,
Ferve em caixões... N’arca louçã, que trouxe,
Dos Feaces a roupa e o ouro mete,
330 Mais a túnica e o manto: “A tampa, adverte,
Hóspede, esguarda; em nó seguro a feches,
Para ninguém lesar-te na viagem,
Quando em ferrado sono a bordo pegues.”
     Na tampa o cauto herói passa um nó firme,
335 Invenção da engenhosa augusta Circe.
Da caseira a banhar-se convidado,
Entra a prazer em tina de água morna;
Pois tamanha delícia não gozava,
Dês que a ilha deixara de Calipso,
340 Onde ele como um nume era tratado.
Lavam-no, ungido vestem-lhe as escravas
Túnica e manto, e sai para entre os cabos
Vinhos saborear. Então Nausica,
Beleza divinal, chega à soleira
345 Da magnífica sala; atenta Ulisses,
Admira-o, diz veloz: “Hóspede, salve;
Lá mesmo em teu país de mim te lembres,
De mim primeira em te guardar a vida.”
     Respondeu-lhe: “De Alcino ínclita filha.
350 Assim de Juno o altíssono consorte
A luz ver da partida me conceda,
Como hei de lá qual déia honrar-te sempre,
A ti que me salvaste, ó nobre virgem.”
E junto ao rei sentou-se, quando as peças
355 Partiam já e o vinho misturavam.
     Com o amável cantor o arauto vindo,
No meio o encosta à sólita coluna.
A porção mais sucosa rasga Ulisses
Do pingue dorso de albidente porco:
360 “Toma, a Demôdoco isto leva, arauto;
Quero na minha dor mostrar que o prezo.
Os poetas venera e afaga a terra,
Caros à Musa, que os doutrina e inflama.”
Jubilando o cantor a oferta aceita,
365 E começa o banquete aparatoso.
     E a Demôdoco Ulisses, finda a ceia:
“Eu te respeito sobre os homens todos;
A Dial Musa ou Febo é quem te inspira.
Cantaste os casos e aflições dos Dânaos,
370 Como se própria testemunha fosses,
Ou de uma o ouvisses. Canta-me o cavalo
Que da madeira Epeu fez com Minerva,
Do Laércio ardiloso introduzido,
Prenhe de heróis que Pérgamo assolaram:
375 Exato sejas, e aos mortais proclamo
Que um deus influi e te modula os hinos.”
     Ei-lo, em fúria sonora; entoa o como.
As tendas abrasando, uns Gregos vogam,
E outros, sujeitos ao facundo Ulisses,
380 Ficam no amplo cavalo, que puxaram
Da fortaleza a dentro os mesmos Teucros.
Estes confusos em redor concebem
Três projetos, brocar a bronze o lenho,
Ou do castelo abaixo despenhá-lo,
385 Ou santo voto oferecê-lo aos numes:
O último infausto parecer adotam;
Fado era que a ruína em lígneo bojo
A escolha dos Aqueus levasse a Tróia.
Canta o como, vazio o cavo engano,
390 Ílio os esparsos Dânaos depredaram;
Como, enquanto a cidade vai acesa,
Outro Mavorte, o Ítaco, à Deifobéia
Estância foi com Menelau divino,
E ali, travada aspérrima contenda,
395 Coroou-lhe a vitória a Protetora.
     Ao cântico do vate, as maçãs rega
Debulhando-se em lágrimas Ulisses:
Qual em braços o esposo a mulher chora
Que o viu cair em vascas moribundo
400 Ante a muralha, os cidadãos e os filhos
Ao sevo dia subtrair tentando,
E em ais e em gritos sobre o seu cadáver,
Dos soldados, que o tergo lhe escalavram,
Na amargura e na dor é constrangida
405 A cruel cativeiro; tal carpia
O Laércio infeliz. Somente Alcino,
Sentado ao pé, seu suspirar percebe:
“Cale o poeta, ó chefes, o instrumento,
Pois nem todos se alegram do seu canto:
410 Findo o repasto, à musica atendendo,
Mesto sempre nosso hóspede soluça;
Poupar seu luto cumpre e distrai-lo
Por ele é que esta festa preparamos,
Com generosos dons, segura escolta:
415 É vero irmão para as sensíveis almas
Um súplice estrangeiro. Agora, amigo,
Toda a franqueza: como dos vizinhos
Eras chamado? o bom e o mau têm nome
Que seus pais à nascença lhe impuseram.
420 Qual é tua terra e gente me declares.
A fim que a nau medite na viagem:
De mestre e leme as nossas não precisam,
Pensam, calculam, como a raça humana,
Quaisquer povoações e campos sabem,
425 Por entre o nevoeiro as vagas tranam,
Sem temor de soçôbro ou de avaria.
Previu porém meu pai que, da passagem
E do socorro aos náufragos Netuno
Azedo, um nosso galeão de volta
430 Sumiria no pélago, à cidade
Um monte empinadíssimo afrontando.
Se há de ou não preencher-se o vaticínio
Pertence ao deus. Mas sem refôlho narra
Que praias tens corrido, que paragens
435 E regiões trilhado; quais das tribos
Agrestes eram, bárbaras e injustas;
Quais, tementes á Jove e hospitaleiras.
Porque em segredo gemes, as desgraças
Dos Gregos e dos Teucros escutando?
440 O Céu quis sucumbissem tais guerreiros,
Para matéria a pósteros poemas.
Junto a Ílion morreu-te algum parente?
Morreu-te um genro, um sogro, os mais diletos
Após os consanguíneos? ou pranteias
445 Um camarada? o sócio íntimo e sério
Não é menos que irmão no amor e estima.

NOTAS AO LIVRO VIII
71-78 - Homero não diz, como alguns tradutores, que só a toada agradava aos ouvintes; a letra sobretudo é que entristecia a Ulisses. O verbo enamorar, Constâncio o dá por antiquado e Gonzaga, autor que nunca sai da linguagem do tempo de Garção e Denis, traz enamorar, no translato, em que é comumente empregado de preferência a namorar. E este último tem menos nobreza no sentido próprio; diz-se, por exemplo, a moça namora a todos, e não enamora a todos; além de que, a primeira oração mostra sempre que é a moça que procura agradar, quando a segunda pode mostrar que ela é a todos agradável sem buscar sê-lo. — Homero, parece-me, distingue o saltar do dançar: nos jogos públicos, houve exercício de luta, carreira, pugilato e salto; a dança propriamente dita foi ao depois que mandaram vir a lira de Demôdoco, e mereceu louvor especial de Ulisses.
106-115 - O verso 106 é de Camões, canto VI, na fala de Veloso. O meu verso 115 diz que o navio estava em nado, ou que tinha sido lançado ao mar: não sei por que Pindemonte usa de varar, que é o contrário do texto.
121-126 - A insolència de Euríalo tem dobrado merecimento: primeiro, serve para preparar a quase declaração de Ulisses e mover o desejo de lhe ouvirem as aventuras; segundo, faz aparecer a disposição da chusma não favorável aos estrangeiros. Ainda que Euríalo pertencia aos grandes, o que representa a preocupação popular contra os vindiços; porque esta preocupação, quando geral, até penetra nas classes elevadas; e em todos os tempos houve na aristocracia quem, ao menos na aparência, adotasse a opinião da maior parte.
359 - Albidente é de óbvio sentido: Pindemonte, para o italiano, compôs o adjetivo dentibianco neste mesmo lugar.
392-395 - Dá Homero a primazia a Ulisses, pondo Menelau como seu ajudante, para assim realçar a valentia do seu herói, e para que a este mais comovesse Demôdoco. M. Giguet, aliás fiel em quase tudo, verteu: la vitoire que leur assura Pallas. Mas Homero como que de propósito mete Menelau na sombra, deixando brilhar a figura de Ulisses, e usando sempre do singular; o plural leur diminui a delicadeza do poeta. Ir para o índice do livro.

Odisséia de Homero - Livro VII

Ora o sofrido herói; marcha a carroça,
Pára Nausica ao pórtico soberbo:
Os irmãos seus deiformes, que a rodeiam,
Os mus disjungem, dentro a carga levam.
5 Ela à câmara sobe: o fogo acende
E a ceia lhe concerta Eurimedusa,
Do Epiro transportada em naus remeiras,
Pelo povo escolhida em recompensa
Para o potente Alcino, dos Feaces
10 Como um deus adorado; a qual na régia
Nutriz foi da donzela, e é camareira.
Ergue-se Ulisses, e a propícia déia
O embuça em névoa grossa, que insultá-lo
E ofender ninguém possa, nem detê-lo
15 Ou quem seja inquirir; mas, da risonha
Cidade ao começar, vem Palas como
Rapariga de cântaro à cabeça,
E o Laércio a interroga: “Filha, queres
Conduzir-me de Alcino aos reais paços?
20 Estrangeiro e infeliz, de longe arribo;
Nem do lugar um morador conheço.”
     “Sim, respeitável hóspede, responde;
Meu bom pai fica perto. Abro o caminho;
Tu cala-te, que a turba hostil e acerba
25 Não sofre nem festeja os forasteiros.
Tal gente, ousada nas talhantes quilhas,
Os mares trana, pois lhas deu Satúrnio
Velozes qual a pluma e o pensamento.”
     Ela avança, ele a segue. À chusma oculto
30 Marítima perpassa, que Minerva
Lhe difundia divinal caligem:
Os portos vai mirando e as alterosas
Naus e o foro e as muralhas estupendas
Com valos guarnecidas. Mas, vizinhos
35 Ao paço, adverte a guia olhicerúlea:
“Dentro, hóspede e senhor, de Jove alunos
À mesa encontrarás. Anda e não temas;
O audaz e franco, donde quer que chegue,
Vence embaraços. A rainha busques,
40 A quem de Areta cabe o grato nome,
E é da real prosápia do marido.
Eurimédon feríssimos gigantes
Altivo dominava, e o duro povo
Com ele pereceu; de Peribéia,
45 Menor filha e a mais guapa, houve Netuno
O bravo Nausítoo, aqui reinante,
O qual foi pai de Rexenor e Alcino;
A Rexenor matando o Arcitenente,
Ele deixou, casado era de fresco,
50 Não masculina prole, única Areta;
Com Areta esposou-se o tio Alcino.
Mais honrada não há matrona alguma
Dos caros filhos, do consorte mesmo;
Quando passeia, divindade a julgam
55 E de seus lábios as palavras colhem;
Boa e inspirada, os cidadãos congraça.
Rever esperes, se te for benigna,
Os amigos e a pátria e a celsa casa.”
     Pelo ponto infrugífero, eis Minerva
60 Da Esquéria amena parte, e se dirige
A Maratona e Atenas de amplas ruas,
De Erecteu sobe o alcáçar. Ao de Alcino,
Sem que o límen transponha, tem-se Ulisses
A cogitar. Magnífico palácio
65 Como o Sol fulge e a Lua: éreas paredes
Firmam-se em torno, da soleira adentro,
Com seus frisos de esmalte, áureas as portas,
Argênteos os portais ao brônzeo ingresso,
Argênteas vergas, a cornija de ouro;
70 De ouro e de prata uns cães, de lado a lado,
Com alma e coração, Vulcânio invento,
São de Alcino os custódios vigilantes,
Imortais e à velhice não sujeitos;
Para o interior há tronos desde a entrada,
75 Com finos véus de mãos femíneas obra,
Onde em redor assentam-se os magnatas
A comer e beber, durante o ano;
Com primor fabricados, junto às aras
Mancebo de ouro estão, de acesos fachos
80 A alumiar de noite os conviventes.
Servem cinqüenta moças: quais, em pedra
Flavo trigo a moer; quais, aos teares;
Quais, a virar num rodopio os fusos,
Como do álamo as folhas buliçosas.
85 Untado e bem tecido o linho estila:
Tanto os Feaces navegando excelem,
Quanto as mulheres têm, mercê de Palas,
Para a teia e o lavor engenho e arte.
     Não distante, há vergel de quatro jeiras,
90 Onde florentes árvores viçosas,
De inverno e de verão, perene brotam;
Zéfiro meigo lhes sazona os frutos,
Um pula, outro arregoa, outro envelhece.
Nova sucede à pêra já madura;
95 À escachada romã sucede nova;
Esta oliva é de vez, rebenta aquela;
Junto à maçã vermelha a verde cresce;
Figo após figo, mela, uva após uva.
Medra abundante vinha: em área cachos
100 Estão secando ao Sol, quais se vindimam,
Quais pisam-se em lagar; doces roxeiam,
Ou no desflorescer acerbos travam.
O arruado pomar fenece em horta,
De verduras mimosa em toda quadra.
105 Pelo inteiro jardim corre uma fonte;
Jorra ao pátio a maior ante o palácio,
Donde bebe a cidade. Eis quanto os numes
Ao nobre Alcino em casa prodigaram.
     Ulisses mira e pasma, e na caligem
110 Paládia envolta, a limiar transpondo,
Acha-os libando a Hermes negocioso,
Brinde final dos que do leito curam;
E mal, vizinho ao rei, da augusta esposa
Às plantas cai, a nuvem se dissipa.
115 Todos o encaram mudos, e ele exclama:
“Filha de Rexenor, divina Areta,
Mísero eu te suplico e a teu marido
E aos mais senhores: oxalá que extensa
Vida obtenhais e transmitir à prole
120 Bens e fortunas que vos der o povo!
Breve porém mandai-me à pátria minha;
Fora dos meus padeço há largos anos.”
     Nisto, ao fogão sentou-se no cinzeiro.
O silêncio reinava, até rompê-lo
125 Equeneu venerando, o mais idoso
Dos Feaces heróis, mais eloqüente,
Mais douto no passado, e orou sisudo:
“O hóspede, Alcino, ali jazer na cinza
É pouco honesto; o aceno os mais te aguardam
130 Em sede claviargêntea, eia, o coloques;
Vinho manda infundir, para ao Fulmíneo,
Que assiste a honrados hóspedes, libarmos;
Já, ministrei-lhe ceia, a despenseira.”
     E o rei pega do sábio, em trono o assenta
135 Resplendido, que próximo ocupava
O forte e amado filho seu Laodamas.
Serva em bacia argêntea às mãos verte água
De áureo gomil, desdobra e espana a mesa;
Pão traz modesta ecônoma e iguarias
140 Novas, que às encetadas acrescenta.
Come Ulisses e bebe, e o rei com força:
“Mistura, tu Pontono, e da cratera
O vinho distribui, para ao Fulmíneo,
Que assiste a honrados hóspedes, libarmos.”
145 O arauto o brando vinho que mistura.
Em copos vaza e o distribui aos chefes.
Depois Alcino: “Egrégios conselheiros,
Ide saciados repousar, vos digo.
Os antigos do povo amanhã venham;
150 Em festejo hospital ofereçamos
Completo sacrifício às divindades;
Em seguida curemos de que alegre
Ele, por mais remota, à pátria aborde,
Sem moléstia nem danos; acautelemos
155 Qualquer mal no caminho. Já na terra,
Sofra as penas que as Parcas lhe fiaram
Desde o materno ventre. E a ser do Olimpo
Habitador, mistério aqui se encobre:
Deuses muito há que a nós se manifestam;
160 Conosco, nas solenes hecatombes,
Demoram-se ao banquete; e se um Feace
Os depara viandante, não se escondem,
Pois neles entrocamos, como as tribos
De Ciclopes cruéis, gigantes rudes.”
165 “Alcino, o herói tornou, perde essa idéia:
Aos celícolas tu não me confrontes
Em índole e presença; humano e frágil,
Ao mais triste mortal sou comparável,
Nem te posso explanar quanto infortúnio
170 Tem sobre mim os deuses carregado.
Mas, da mágoa apesar, deixa que eu ceie;
O estômago importuno se aguilhoa,
No meio da aflição me pica e lembra
O comer e o beber, dá trégua às penas.
175 N’alva expedi-me: ao ver, pós tantas lidas,
Minha terra e família e doces lares,
Acabe-se esta luz ali comigo.”
     Aplaudem-no os Feaces, confiando
Que o disserto orador o intento logre,
180 E trás farto libar foram-se ao leito.
O herói fica-se e Areta e o rei divino,
E as servas a baixela entanto arrumam.
Logo Areta, que as obras reconhece
Dela e da gente sua: “A interrogar-te
185 Primeira, hóspede, sou. Quem és e donde?
Como houveste essa túnica e esse manto?
Não dizes tu que náufrago abordaste?”
     “Narrar-te já, responde, quantos males,
Senhora, o Céu vibrou-me, é mui difícil;
190 Mas ao que me perguntas satisfaço.
De humanos e mortais mora apartada,
Na Ogígia ilha do alto mar, Calipso,
De Atlante gérmen, de encrespada coma,
Ardilosa e tremenda; ali mau gênio
195 Lançou-me só, desfeito havendo Jove
A raio a embarcação no escuro abismo,
Onde os meus nautas soçobraram todos.
Por nove dias, aferrado à quilha,
De vaga em vaga, ao décimo de noite
200 A praia toco. A ninfa carinhosa
Me tratou, me nutriu, velhice e morte
Quis tolher-me, e abalar-me nunca pôde.
Firme reguei de choro as dadas roupas
Incorruptíveis; mas, de Jove ao mando
205 Ou volúvel, no curso do ano oitavo
A partir me exortou numa jangada,
Pão forneceu-me e vinho e odoras vestes,
Favônias a invocar-me auras suaves.
Aos oito sóis de undívaga derrota,
210 Vossa alta umbrosa terra apareceu-me,
E no peito exultei. Mas ai! Netuno,
Insensível ao pranto, em furor sempre,
Com vastas brenhas de surdir me impede,
E a barca um vagalhão me desconjunta.
215 As ondas meço a braço, té que à ilha
Sanhudas nuns penedos me remessam
Inacessíveis. Novamente nado,
A foz emboco enfim de um rio ameno,
Tuto e limpo de escolhos e abrigado;
220 Em salvo, ânimo cobro. A tarde assoma,
Deixo o rio Dial; em selva opaca,
Inda que atribulado, acamo folhas,
E um deus noite e manhã me embebe em sono.
Ao declinar do Sol, acordo e avisto
225 A filha tua às imortais parelha,
N’alva praia, entre as fâmulas brincando;
Suplico, admiro o tento que, ó rainha,
Esperar não puderas dos seus anos
De imprudência e loucura: fez banhar-me,
230 De vestidos proveu-me e de alimento.
Nesta angústia, senhora, eis a verdade.”
     “Hóspede, acode Alcino, a filha minha
Ao decoro faltou, que ao nosso alvergue
De antemão suplicada, lhe cumpria
235 Na comitiva sua conduzir-te.”
     O manhoso atalhou: “Tu não censures
A inocente princesa; ela mandou-me
Acompanhar as servas, e eu neguei-me.
Temi quiçá, que ao vê-lo te irritasses:
240 À suspeita é propensa a espécie humana.”
     “Temerário não sou, replica Alcino,
Ou pronto em me irritar; o honesto e justo,
Hóspede, em mim domina. Oh! queira o Padre,
Minerva e Apolo, tal qual és, de acordo
245 Com meu sentir, que genro meu te fiques!
Dôo-te casa e bens. Mas por violência
Ninguém te reterá: condena-o Jove.
Dorme em sossego, disporei seguro
Teu regresso amanhã: durante as calmas
250 Os nautas remarão, se além de Eubéia
Mesma o desejes, ilha a mais remota,
Segundo os que de Télus navegaram
Ao filho Tício o flavo Radamanto;
Porém num dia aqui se recolheram.
255 Conhecerás que chusma e naus possuo
Para à voga arrancada o mar fenderem.”
     Folga e depreca Ulisses: “Padre excelso!
Cumpra Alcino a promessa; a glória sua
Encha a terra fecunda, e eu veja a minha.”
260 Inda assim praticavam, quando Areta
Albinitente ao pórtico uma cama
Estender manda, com purpúreas colchas,
Com tapetes, e espessos cobertores;
Vão de facho na mão fazê-la as servas,
265 E o paciente herói depois avisam:
“Hóspede, vem dormir, que é pronta a cama.”
Ulisses com prazer no recortado
Catre ao sonoro pórtico se estira.
Foi dentro Alcino se gozar do sono,
270 Com sua esposa o leito compartindo.

NOTAS AO LIVRO VII
13-15 - Imitou Virgílio esta passagem no I da Eneida. Pope, Rochefort e outros, bem entendido, acham Homero muito superior. A honra da invenção cabe certamente ao Grego; mas, no executar e no escolher a situação, tenho que o Latino é pelo menos igual. Minerva cobre de uma nuvem a Ulisses para o salvar dos insolentes marujos de Esquéria; Vênus cobre de uma nuvem Enéias para sem perigo atravessar Cartago, onde, por confissão de Dido a Ilioneu, ela mesma deixa o povo ser áspero com os estrangeiros: por mais que Minerva amasse a Ulisses, não o amava tanto como Vênus a Enéias, que era seu filho; e a cautela da mãe, que opinam ser inútil, é plenamente justificada. A melhoria que alguns deparam sempre em Homero, é paixão de tradutores: eu, que o sou de ambos os poetas, não tenho o amor próprio empenhado por um deles. Muito realça a imitação o estar ouvindo Enéias do encerro nebuloso os gabos que os Troianos lhe prodigalizavam: que situação! E quanto não é dramático o desfazer-se a nuvem no momento em que Dido se propunha mandá-lo procurar! Preferir sempre Homero a Virgílio, presta ao crítico um ar de sapiência e recôndita erudição, e apascenta a vaidade de poder penetrar os mistérios de uma língua menos conhecida.
40 - Assentava bem o nome na virtuosa Areta, ou porque signifique desejada, ou porque são como areté, que significa virtude.
70-85 - Os cães do portão de Alcino, segundo Homero, bem que de ouro, tinham voz e inteligência; mas por timidez, alguns acrescentam em sua tradução um antipoético parecem. Era isso uma das maravilhas de Vulcano; maravilha igual à das trípodes que iam por seus pés ao congresso dos deuses, e à das moças também de ouro que andavam com o mestre, como se lê no livro XVIII da Ilíada. — Fala-se em moer os grãos: pensa-se que isto é cousa do tempo de Homero emprestada ao dos seus heróis; ou que a moedura era imperfeita, sendo o grão apenas quebrado na pedra, frangere saxo, como diz Virgílio; ou então que os Feaces, povo navegador, possuíam maior indústria que os sócios de Enéias, que eram de Tróia, menos civilizada. — O verso correspondente ao meu 85 não diz que as teias eram luzidias como azeite, à maneira de Pindemonte; nem tão bem tecidas que o azeite as não penetrava, segundo a Clavis Homerica: acertou M. Giguet em dizer que as teias destilavam óleo. Cá em Pisa, onde escrevo esta nota, uma camponesa grande fiandeira ensinou-me que, ao tecer, untava-se o linho com unto para o tornar menos seco e de trabalhar melhor: Homero nos memora um costume antigo, ainda hoje conservado.
[N.E.: Um exemplar da Clavis Homerica existente na Biblioteca da Universidade de Michigan foi digitalizado pelo Google e encontra-se disponível para download no Google Books (Clavis Homerica sive Lexicon Vocabularum Omnium, quæ continentur in Homeri Iliade et potissima parte Odysseæ, ... — Edinburgi, 1815)]
96-98 - Fruta de vez é a que, não bem madura, contudo já pode ser colhida: esta locução comum falta nos dicionários; e também falta o verbo melar, que significa escorrer a fruta o seu suco, e aos figos aplica-se frequentemente. — Alguns põem laranjas no pomar de Alcino; mas nada vejo no texto que os justifique: as palavras méleai áglaokarpoi querem dizer macieiras que dão boa fruta, e não laranjeiras. A exatidão é de interesse histórico.
177 - Folguei de poder aqui servir-me de um dos melhores versos do patriota Camões.
224-270 - Digo declinar e não cair o Sol, como dizem alguns; porque, se ele já estivesse no ocaso, Ulisses não tivera tempo de ver as moças a jogar, de lhes falar e suplicar, de banhar-se no rio, ungir-se e vestir-se, de comer e beber, antes que Nausica partisse para a cidade. — No verso 245, vê-se que Alcino ofereceu a filha extemporaneamente: por mais que se esforcem os críticos em desculpar o poeta, confesso que não gosto do oferecimento. — Homero não afirma que a Eubéia é a mais longínqua das terras, como afirmam não poucas versões; apenas a denomina a ilha mais afastada da Esquéria, e o que se segue mais comprova esta opinião. — Quanto ao último verso, tenho como razoável o que diz Rochefort, contra o parecer de muitos, isto é, que dormia Areta, não ao pé, sim no mesmo leito do marido. Ir para índice do livro.