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Odisséia de Homero - Livro XXIV

Dos procos o Cilênio evoca as almas,
De ouro empunhado o caduceu que os olhos
Mortais a gosto esperta e os adormece;
Elas ao toque ciciando o seguem.
5 Em divo antro profundo a revoarem,
Guincham morcegos, se um dos cachos tomba
Da rocha a que aderiram: tal se move
Trás Mercúrio benóvolo, em murmúrios
Pelo hediondo espaço, o tropel todo;
10 Vão-se ao fluido Oceano e à Pedra-Branca,
Do Sol às portas e ao dos Sonos povo.
Em prado verde, habitação dos manes,
Os do Pelides acham, de Pátraclo,
De Antíloco, de Ajax galhardo e forte,
15 Que os Dânaos superava, exceto Aquiles.
Eram deste em redor, quando Agamemnon
Surge dolente, e as sombras dos que Egisto
Em seu paço com ele assassinara.
     “Atrida, enceta Aquiles, ao Tonante
20 Nós julgávamos seres o mais caro,
Por dominares nos heróis que em Tróia
Padecemos sem conto. Ah! que o tributo
Não rendeste primeiro à Parca dura!
Naqueles campos com supremas honras
25 Tu falecesses! dos Aqueus ereto,
Glória a teu filho o monumento fora;
Era fatal misérrimo acabares!”
     E Agamemnon: “Beato herói divino,
Em torno a quem, longe da Grécia extinto,
30 Bravos Teucros e Argeus caíram tantos!
Em túrbida poeira amplo jazias,
Dos corcéis esquecido; e a combatermos
Ante o cadáver teu, só conturbados
Por um tufão de Júpiter, cessamos.
35 Posto em féretro a bordo o corpo egrégio,
Em quente água expurgado e ungido, os Gregos
Choravam, tonsa a coma. Eis, das Nereidas
Ouvida a grande voz, tremeram todos,
E nos porões iam meter-se, quando
40 Experiente Nestor, com douto aviso,
De grado concionou: — Tá! vem do pego
Tétis madre e as irmãs carpir seu filho. —
Coibida aos Grajúgenas a fuga,
Cercam-te as filhas do marinho velho,
45 Cobrem-te em ais de incorruptível manto.
As Musas nove alternam-se em lamentos:
Ninguém podia, à lugubre toada,
As lágrimas conter. Por dezassete
Noites e dias, de mortais e deuses
50 Regou-te o pranto e na seguinte aurora
Demos-te ao fogo, e ovelhas te imolamos
Gordas e negros bois; nas divas roupas,
Em óleo e doce mel, queimado foste;
Muitos peões e armados cavaleiros
55 Circundaram-te a pira estrepitosos.
De manhã, gasta a carne, os brancos ossos,
Em perfumes e vinho e ambalsamados,
Recolheu-te a mãe terna em urna de ouro,
Dom de Baco e trabalho de Vulcano.
60 Estão mistos aos teus os de Pátroclo,
Dos de Antíloco perto, a quem dos sócios,
Morto o Menécio, maiormente honravas.
E os do exército sacro te exalçamos,
Do amplo Helesponto em prominente riba
65 Um magnífico túmulo, que ao longe
Aos vivos manifeste-se e aos vindouros.
Prêmios obteve dos mais numes Tétis,
Que os pôs no circo aos príncipes Aquivos.
A régios funerais tenho assistido,
70 Onde o páreo mancebos disputavam;
Tu se os visses, Pelides, admiraras
Da mãe déia argentípede as ofertas.
Grato aos Céus, teu renome não perdeste,
Que de evo em evo troará no mundo.
75 Mas que valeu-me a guerra? Na tornada,
Júpiter propinou-me o copo amaro,
Por mãos de Egisto fero e da traidora.”
     Entretanto, o Argicida arrebanhava
As almas dos que Ulisses abatera,
80 A cujo encontro as mais com pasmo correm.
Agamemnon conhece incontinênti
O Melanteides ínclito Anfimédon,
Que em Ítaca o hospedara: “Que desastre,
Escolhidos e eqüevos, cá vos trouxe
85 Ao reino tenebroso? Não podia
Alguém numa cidade achar melhores.
Com soltos ventos e escarcéus furentes
Vos afundou Netuno? ou de inimigos
Preia fostes em terra, aos saqueardes
90 Armentos e rebanhos? ou pugnando
Pela pátria e família? Nada encubras;
Hóspede teu me chamo. Não te lembra
Que me acolheste e a Menelau divino,
Quando a embarcar-se para Tróia Ulisses
95 Fomos nós suadir? Um mês inteiro
O largo ponto aramos, e a bem custo
O eversor de muralhas demovemos.”
“Rei dos reis, Anfimédon respondeu-lhe,
Tudo me lembra, e franco vou narrar-te
100 Nosso funesto fim. Do ausente Ulisses
A esposa ambicionávamos; que, avessa
A morte a nos tramar, nos entrctinha
E, com sutil pretexto, imensa enrola
Teia fina ao tear, e assim discursa:
105 Amantes meus, depois de morto Ulisses,
Vós não me insteis, o meu lavor perdendo,
Sem que do herói Laertes a mortalha
Toda seja tecida, para quando
No sono longo o sopitar o fado:
110 Nenhuma Argiva exprobre-me um funéreo
Manto rico não ter quem teve tanto. —
Esta desculpa ingênuos aceitamos.
Ela, um triênio, desmanchava à noite
À luz da lâmpada o lavor diurno;
115 Ao depois, avisou-nos uma escrava,
E a destecer a teia a surpreendemos:
Então viu-se obrigada a concluí-la,
E aos olhos despregou-nos a luzente
Obra insigne, imitante ao Sol e à Lua.
120 Não sei donde um mau gênio trouxe Ulisses
Ao campo que habitava o guarda-porcos:
Nesses confins se reuniu seu filho,
Já da arenosa Pilos aportado;
E ambos, disposto o plano da matança,
125 Para a nobre cidade caminharam,
O herói depois, Telêmaco primeiro.
Eumeu guiava o pai, que abordoou-se
Em trajo de um decrépito mendigo,
E era tão roto e sujo e mal vestido,
130 Que aos mais idosos conservou-se ignoto.
A golpes e baldões o acometemos;
Tudo curtiu paciente em seu palácio.
Mas, do Egíaco Jove espiritado,
As armas com Telêmaco afastando,
135 Em cima as tranca, e pela astuta esposa
O arco nos apresenta e o claro ferro,
Donde se derivou nosso infortúnio.
Nenhum de nós dobrou-lhe o forte nervo,
Baldo o esforço; e, ao momento que o Laércio
140 Dessa arma ia apossar-se, blasfemamos
Que, apesar das instâncias, não lha dessem;
Mas Telêmaco insiste, e o pai, seu arco
Fácil dobrando, enfia as machadinhas.
Ao limiar, derrama a pronta aljava,
145 E gira a vista horrendo e frecha Antino;
A lutíferas setas rechinantes
(Um deus o protegia) uns após outros
Seu furor em cardumes nos prostrava:
Aos gemidos, aos botes, muge a casa
150 E se inunda em cruor. Tal fim tivemos!
No pátio os corpos nossos, ora, Atrida,
Isso amigos não sabem, que chorando,
Enxuto o negro sangue, nos sepultem;
Honra devida aos míseros finados.”
155     Grita Agamemnon: “Venturoso Ulisses,
Possuis mulher de uma virtude rara!
Do varão que pudica amou primeiro
Nunca olvidou-se; obtém perene glória,
Que hão de inspirados celebrar cantores.
160 Quão diversa a Tindárida ao marido,
Que houve-a donzela! odiosa nas balatas
Será do povo, e nódoa às mais sisudas.”
     Enquanto as almas de Plutão conversam
No vácuo reino, Ulisses e companha
165 De Laertes entravam pelo enxido,
Que a muito preço e lidas o comprara:
Tinha ali casa, e da varanda em roda
Os servos, com prazer cultivadores,
Comiam, repousavam; diligente
170 Do amo tratava, em rústico retiro,
Sícula velha. Aos três voltou-se Ulisses:
“Preparai para o almoço um bom cevado.
Verei se o pai me reconhece ainda,
Ou se ignoto me faz tamanha ausência.”
175 E as armas dando aos sócios, que partiram,
Ao pomar foi-se logo para o intento:
Não topa a Dólio e filhos e os mais servos
No grã vergel, do velho conduzidos
A colher espinheiros para sebes;
180 Só acha o pai no amanho de uma planta:
Sórdida a capa e remendada a roupa,
Luvas grosseiras, borzeguins de coiro,
Para evitar esfoladuras, tinha;
Gorra caprina o luto lhe aumentava.
185 Desde que o divo sofredor o enxerga
Dos anos e desgostos combalido,
Quedo pranteia à sombra de um pereiro;
Hesita se o abrace e o beije e informe,
Ou se antes com perguntas o exprimente.
190 Mordaz sondá-lo preferindo, avança
Quando, baixa a cabeça, ele de roda
Cavava um tronco, e lhe bradou: “Meu velho,
Não és inábil; a pereira, a vide,
A oliveira, a figueira, o estão mostrando,
195 Nem há palmo de terra sem cultura;
Mas não te agastes, se o desleixo noto
Com que trapento afeias essa idade.
O amo não te maltrata pela incúria,
Nem tens servil presença; um rei no vulto
200 Semelhas ao que, já banhado, come
Para em mole dormir, jus da velhice.
Mas de quem és? o prédio a quem pertence?
Em Ítaca em verdade agora estamos,
Como um certo em caminho asseverou-me?
205 Brusco foi-se e imprudente, sem dizer-me
Se o meu hóspede é vivo, ou se entre os manes.
Na pátria, escuta, recebi festivo
O herói primeiro que a meu lar sentou-se:
De Ítaca era nativo, e se aclamava
210 Por filho do Arcebíades Laertes.
Com bondade acolhi-o, e generoso
Dons hospitais lhe presentei condignos:
De ouro talentos sete bem cunhados,
Copa argêntea florida, capas doze,
215 Doze mantos louçãos, e iguais tapetes
E túnicas iguais; por cima, à escolha,
Quatro prendadas e gentis mulheres.”
     Em choro o pai: “Chegaste, forasteiro,
À terra que me indicas, velhacouto
220 De malvados cruéis. Teus dons frustraste:
Se ele aqui fosse, em câmbio encontrarias
Também dons e benévolo agasalho.
Sê franco, esse infeliz, que era meu filho,
Em que ano o recebeste?. .. Oh! fútil sonho!
225 Dos seus longe e da pátria, no profundo
Foi mantimento a peixes, a terrestres
Aves ou feras! Na mortalha envolto,
Da mãe, do genitor, não foi carpido,
Nem a casta mulher fechou-lhe os olhos,
230 A lamentar no féretro o consorte;
Sacro dever, dos mortos recompensa.
Mas quem és, me declares, de que povo,
De que família? A nau veloz e os nautas
Onde os tens? ou vieste em vaso alheio,
235 Que te largou, na rota prosseguindo.”
     Pronto Ulisses: “Eu tudo vou narrar-te.
Prole de Afidas rei Polipemônio,
Sou de Alibas, em nobre alcáçar moro,
Eperito é meu nome; da Sicânia
240 Fez-me arribar um nume, e tenho surto
Na costa o meu navio. Quanto a Ulisses,
Anda em cinco anos que saiu de Alibas:
Voláteis à direita lhe adejavam;
Ao despedir-nos, ambos nós contentes
245 Rever-nos esperávamos, e um dia
Riquezas mutuar, doce amizade.”
     Um negrume de mágoas tolda o velho;
Pega da ardente cinza, a encanecida
Cabeça asperge, do íntimo soluça.
250 Comoto o herói, das ventas resfolgando,
Olha o dileto pai, salta-lhe ao colo,
E o beija e abraça: “Ó pai, sou quem suspiras,
Vindo ao vigésimo ano à pátria amada;
Essas penas e lágrimas reprime.
255 Atende-me, urge o tempo; em nossos paços
Vinguei-me já de injúrias e insolência.”
     A quem Laertes: “Se és meu próprio Ulisses,
Dá-me um claro sinal que mo comprove.”
“Na cicatriz repara (ao pai mostrou-a)
260 Do alvo dente suíno, indo eu, por ordem
Materna e tua, às abas do Parnaso,
Pelas promessas que anuiu teu sogro.
As árvores direi que tu, rogado
Por mim que infante os passos te seguia
265 Pelo vergel, me deste, a nomeá-las
Uma a uma: pereiras foram treze,
Macieiras dez, em quádruplo as figueiras;
Marcaste-me também cinqüenta renques
De uvas de toda casta, que maduram
270 Quando nelas de Jove as horas pesam.”
     Do velho, a provas tais, frouxas as pernas,
Desmaia o coração; mas lança os braços
Ao filho, que nos seus o estreita e cinge.
O pai já cobra alento: “Ó sumo Jove,
275 Desses procos o crime a estar punido,
Certo no Olimpo há deuses. Mas hei medo
Que a turba assalte e invoque os Cefalenes.”
Ulisses o acalmou: “Receios bane.
À casa andemos do jardim vizinha:
280 Telêmaco, Filétio e Eumeu, diante
Mandei que à pressa o almoço nos preparem.”
     Já na mansão formosa aos três encontram,
Partindo as carnes, misturando os vinhos.
Lava primeiro e unge, orna e reveste
285 Ao bom Laertes a Sicana serva;
Porém Minerva os membros lhe engrandece,
Majestoso e divino sai do banho.
O filho o admira: “Gentileza e talhe,
Ó pai, te aumenta um nume!” E o velho: “Ó Jove,
290 Palas e Apolo, eu fosse o mesmo que era
Quando rendi, com Cefalênias hostes,
No continente a Nérico soberba!
Arnesado e brioso os vis intrusos
Também contigo repelira; a muitos
295 Os joelhos solvera, e tu folgaras.”
     Entanto, prestes o festim, por ordem
Em camilhas e tronos se abancavam;
Eis chega Dólio do labor e os filhos.
A eles corre a Sícula, que anosa
300 Todos nutria e do ancião tratava;
Mudos pasmaram de rever seu amo,
Que afável os convida: “À mesa, ó velho,
À mesa, o espanto cesse; à vossa espera,
Ávidas mãos retínhamos dos pratos.”
305 Braços abertos, se lhe atira Dólio,
Do amo os pulsos oscula: “Amigo, os votos
Nos enches de improviso, e pois os deuses
Te restituem, salve! alegre exultes
No grêmio da ventura! À esposa a nova
310 É já notória, ou cumpre anunciarmos?”
“Ela o sabe, responde o astuto e cauto;
Mas nisso que te vai?” Tornado ao posto,
Beijam-lhe a destra os moços e o saúdam,
E junto ao pai em ordem se colocam.
315 O trabalho do almoço ocupa a todos.
     Na cidade se espalha a triste fama
Da vingança: ante o paço estrepitosa
Carpe a gente, os cadáveres enterra;
Embarca em leves bojos os que à pátria
320 Ir deviam por mar; com dor se ajunta
O parlamento. Em luto inexprimível
Eupiteu se levanta, a cujo filho
Antimo o divo herói matou primeiro,
E em soluços e lágrimas acusa:
325 “Amigos, oh! que horror, que atroz maldade!
Esse homem naus levou, levou guerreiros;
Frota e nautas perdeu: na volta, agora,
Deu cabo dos melhores Cefalenes.
Eia, antes que ele a Pilos se recolha,
330 Ou busque a dos Epeus Élide santa,
Vamos; ou torpe vida e eterno opróbrio
Tem de caber-nos: se de irmãos e filhos
Não punimos os brutos matadores,
Sombra unir-me anteponho a sombras caras.
335 Vamos, vamos, os bárbaros não fujam.”
     Seu lastimar os corações comove;
Mas do palácio, em que os deteve o sono,
Chegam Médon e o músico divino;
Médon pondera: “Aquivos, nunca Ulisses
340 Tanto obrara sem nume: um vi que avante,
Na forma de Mentor, na sala o instava,
E o tropel todo em ruma ia caindo.”
Palor súbito invade os circunstantes.
     Ergueu-se o herói Mastórida Haliterse,
345 No passado o mais douto e no futuro,
E orou sisudo: “Cidadãos e amigos,
Do feito a culpa tendes; não quisestes,
Surdos aos de Mentor e aos meus conselhos,
Flagício enorme sopear dos filhos,
350 Que, os bens roendo, injuriando a esposa,
Com tão potente rei já não contavam.
É sem remédio. Ouvi-me agora ao menos:
Mores desastres atalhai, não vamos.”
     A assembléia divide-se em tumulto:
355 Uns de Haliterse à voz se aquietaram;
Mas outros, ao combate persuadidos,
Em corpo avançam, reluzindo em bronze,
Por vastas ruas, de Eupiteu sequazes,
Que cego ou desagravo ou morte anela.
360 Consulta ao pai Minerva: “Ó soberano,
Que tens na mente? Guerra ou congraçá-los?”
E o Nubícogo: “Filha, que perguntas?
Não traçaste que à volta se vingasse?
Pois bem. Direi contudo o que é decente:
365 Vingado o herói divino, assente as pazes;
Reine em povos leais; de irmãos e filhos
O castigo apaguemos sanguinoso;
Renove-se a amizade, haja abundância.”
Disse, o ardor a Minerva acrescentando,
370 Que do jugoso Olimpo se arremessa.
     Apaziguada a fome, aos companheiros
Adverte Ulisses: “Veja alguém se perto
Já nos atacam.” Sai de Dólio um filho,
E enxerga logo da soleira a turba:
375 “Arma, arma, grita, a gente se aproxima.”
Armam-se os quatro, e os seis irmãos com eles;
E Laertes e Dólio, encanecidos,
No perigo urgentíssimo se arnesam.
De ponto em branco, as portas escancaram,
380 Precipitam-se fora, e os manda Ulisses;
Disfarçada em Mentor, veio ampará-los
A Tritônia, de Jove augusta prole.
     Ledo o chefe do auxílio: “Hoje, meu caro
Telêmaco, aos mais fortes investindo,
385 Mostres brio e vigor; nem me envergonhes,
Nem dos caros maiores degeneres.”
E Telêmaco: “À frente, ó pai dileto,
Ver-mes-ás honrando sempre a estirpe tua.”
     Regozijou-se o avô: “Propícios deuses,
390 Rivais são na virtude o filho e o neto!
Que dia! que prazer!” — E a gázea Palas:
“Arcesíades, sócio o mais querido,
Roga a Minerva e ao Padre, afouto vibres.”
Ela ânimo e denodo aqui lhe infunde;
395 O herói, finda a oração, de Eupiteu rompe
De lança o elmo, à queda o arnês ressoa.
Ulisses e Telêmaco os mais bravos
Talham de espada e pique, e total fora
O estrago e perda, se a gritar Minerva
400 Não contivesse o povo: “Ítacos, basta,
Já já da da crua guerra separai-vos.”
     Pálido susto, à voz divina, os toma;
Das mãos voando as armas, ansiosos
De resguardar as vidas, se retiram:
405 Furente Ulisses a bramir os segue,
Tal como águia altaneira as nuvens rasga.
Então fulmina Júpiter, e o raio
Cai ante Palas, que ao Laércio intima:
“Dial cordato aluno, abster-te cumpre
410 Da discórdia civil, para que infesto
Não te seja o Tonante onipotente.”
     Gostoso à deusa Ulisses obedece.
A Mentor semelhando em som e em vulto,
Sela a paz a do Egífero progênie.

NOTAS AO LIVRO XXIV
6-17 — Cacho, correspondente ao latim uva neste sentido, é o grupo em que se englobam certos animais, como as abelhas e os morcegos. — Homero chama eurõenta; isto é, podres ou hediondos, os caminhos por onde se conduzem os mortos. — Pedra-Branca é o nome de certo lugar por onde passavam as almas. — Dolente, posto que não venha em dicionário, é usado por Francisco Manuel.
247-270 — Depois de tantos reconhecimentos que há na Odisséia, é para louvar que Homero guardasse os toques mais belos e maviosos para este reconhecimento de Laertes, que era o último, comprovando sempre a sua pasmosa fecundidade.
315 — Este repasto é um almoço, não obstante prandium e cœna de que usa neste livro a interpretação latina.
342 — Dizemos rima ou ruma: preferi neste verso ruma, para não repetir a vogal i que vem nele muitas vezes.
370 — Jugoso, tirado do latim, significa cheio de cumes ou picos.

ADVERTÊNCIA
Nas notas aos dous poemas de Homero, sou mais parco de reflexões gerais, do que o fui nas feitas a Virgílio; e a razão é que, aparecendo em verso português a primeira tradução completa da Ilíada e da Odisséia, julguei útil que as notas versassem principalmente sobre o sentido que dei a várias passagens dificultosas, contra o parecer de eruditos e de tradutores. — Quando falo, em toda esta obra, de interpretação latina, entenda-se da que é mais espalhada nas nossas escolas, reimpressa em Paris em 1747. Ir ao índice do livro
FIM

Odisséia de Homero Livro XXIII

Às risadas a velha os joelhos move,
Celérrima a informar que é vindo Ulisses,
E a Penélope fala à cabeceira:
“Surge, anda, filha, a veres com teus olhos
5 O que tanto almejaste: eis bem que tardo,
Castigou teu marido os que, estragando
Casa e fazenda, o filho te oprimiam.”
     E ela: “O Céu, que à vontade, ama Euricléia,
Do louco um sábio faz, do sábio um louco,
10 Transtorna-te a razão que te assistia.
Como! zombas de mim, que hei tantas penas,
E as pálpebras do sono me descerras,
Sono o mais saboroso dês que Ulisses
Foi-se à nefanda Tróia? Desce e vai-te.
15 Se outra com tais anúncios me acordasse,
Eu mais dura e severa a despedira;
Mas vale-te essa idade.” — A escrava insiste:
“Filha, de ti não zombo; em casa o temos;
É o hóspede que todos insultavam.
20 Já sabia Telêmaco o segredo;
Ocultava-o prudente, a fim que Ulisses
A soberba e violência refreasse.”
     Leda salta Penélope do leito,
Em lágrimas a abraça: “Ama querida
25 Se isso é verdade, se ele aqui se alverga,
Os audazes, que sempre estavam juntos,
Como só derribou?” — E a nutriz: “Nada
Eu vi, nem mo contaram, mas ouvia
O estrondo, o pranto, os ais dos moribundos,
30 Lá nos retretes, a trancadas portas,
Em susto éramos todas, e teu filho
Por ordem paternal veio chamar-me.
Achei teu bravo Ulisses entre os mortos
Uns por cima dos outros: exultaras
35 De o ver leão sangrento e encarniçado!
Ele, fora os cadáveres em montes,
Fumiga o paço, e ordena que me sigas,
Anda, ambos de alegria abeberai-vos,
Depois de tantas mágoas; a tão longa
40 Saudade se mitigue. Ele nos torna
Vivo e são; cá te encontra e o filho vosso;
Puniu já desta casa os malfeitores.”
     Logo a rainha: “A rir não te glories.
Sim, grata a vinda sua a todos fora,
45 Mormente a mim e ao filho que geramos;
Porém, ama, não creio o que me afirmas:
Indignado algum nume de arrogâncias
E injúrias tais, livrou-nos de insolentes
Que a ninguém, por melhor, tinham respeito;
50 Mas longe Ulisses acabou decerto.”
     “Filha, insiste Euricléia, que proferes?
Duvidas inda, e ao lar já tens o esposo!
É muito. Ora um sinal te manifesto:
Ao lavá-lo, do cerdo conheci-lhe
55 A cicatriz. Eu ia anunciar-to,
Cauto a boca tapou-me. Vem; consinto,
Mata-me, se te engano.” — “É-te impossível,
Penélope argüiu, por mais ciente,
O arcano, amiga, perceber divino.
60 Contudo, ao filho corro; esses perversos,
Aquele que os prostou, meus olhos vejam.”
     Desce, do caro esposo revolvendo
Se as mãos e as faces beije, ou tão somente
O interrogue distante. Já transposto
65 O pétreo limiar, defronte, ao lume,
Noutra parede fica: ele, encostado
Numa coluna, arreda a vista, à espera
Que o fite e que lhe fale a mulher forte;
Ela, em silêncio estúpido, ora o encara,
70 Ora pelo seu trajo o desconhece.
Rompe e a censura o filho: “Que! tão dura
Esquivas a meu pai, nem dele inquires!
Que outra mulher assim desamorosa
Recebera um marido, após vinte anos
75 De ânsias cruéis? Tens coração de pedra.”
     Escusou-se a rainha: “De pasmada,
Meu Telêmaco, olhar nem falar posso.
A ser teu pai, a todo mundo ignotos,
Sinais temos que o provem.” — Tolerante
80 O herói sorriu-se: “A mãe consintas filho,
Que me tente e afinal se desengane;
Sujo e torpe, ela estranha-me e repugna.
Consultemos agora. Se alguém mata
Um popular de asseclas mal provido,
85 Foge, terra e parentes abandona:
De Ítaca a flor e esteios derribamos;
Deliberemos nós.” Cordato o jovem:
“Cabe-te isso, meu pai; fama é constante,
Mortal nenhum te iguala no conselho;
90 Seguir-te só me cumpre, e eu forças tenha,
Que outrem não há de em ânimo vencer-me.”
     E o cauteloso: “Pois meu voto escuta.
Primeiro vos lavais, mudai vestidos,
E ordenai-me às cativas que se enfeitem.
95 O músico na lira preludie
Dança amorosa, a fim que núpcias dentro
Haver pense ou vizinho ou viandante.
Fora a carniçaria não persintam,
Antes que os agros e vergéis busquemos:
100 Lá do Olimpo o senhor deve inspirar-nos.”
     Lavam-se, dóceis, de vestidos mudam,
Às mulheres prescrevem que se adornem.
Fênio na ebúrnea lira já consona
Dança ligeira e doce melodia:
105 Ao tropel toda a casa reboava
De esbeltos jovens e de airosas moças.
Cruzam vozes da rua: “Algum de tantos
A rainha esposou, que mais valera
Se fiel ao marido os bens guardasse.”
110 Assim, néscios do caso, discorriam.
     Lava a cuidosa Eurínoma e perfuma
O brioso Laércio, e o paramenta.
Aformoseia-lhe a cabeça Palas;
Majestoso e maior, na espalda a coma
115 Cor de jacinto em ondas se lhe esparge;
Tamanha graça lhe vestiu Minerva,
Quantia infunde em lavor de prata e ouro
Dela e Vulcano artífice amestrado.
Como um deus sai do banho, torna ao posto
120 Fronteiro ao da consorte, e assim perora:
“Tão duro coração, femíneo monstro,
Nunca foi dos celícolas forjado!
Que outra mulher tão fria se portara
Ao chegar seu marido após vinte anos
125 De pena e dor? Sus, ama, um leito apresta,
Quero dormir. Sua alma é toda ferro.”
     “Monstro eu! retorque; nem te apouco altiva,
Nem me assombro demais: qual te embarcaste
No instruto galeão, me estás na mente.
130 Eia, fora da alcova alça, Euricléia,
O reforçado leito, obra de Ulisses,
Com mantas e tosões, com moles colchas.”
Tal foi para o marido a prova extrema.
     Ele à casta mulher gemendo exclama:
135 “Quem removeu-me o leito? oh! triste nova!
Isso nímio custara ao mais sabido,
Salvo intervindo um nume; empresa enorme
Fora a humano qualquer, por mais viçoso:
Fi-lo eu sozinho; este sinal te baste.
140 Grossa como coluna, vegetava
No pátio umbrosa e flórida oliveira:
Densas pedras em roda, em cima um teto,
Câmara edifiquei de unidas portas;
Já desgalhado, a bronze descasquei-lhe
145 Desde a raiz o tronco, e de esquadria
Artífice o puli, verrumei tudo,
Formando um pé, começo do meu leito;
Marfim neste embutindo e prata e ouro,
Táureas correias lhe teci vermelhas.
150 Esta a verdade. Ignoro se está firme
Esse leito, ou, serrando-se-lhe o tronco,
Por algum dos varões foi transplantado.”
     Aqui, tendo Penélope a certeza,
Desfaleceu; depois, toda alvoroço,
155 Em pranto o colo do marido abraça,
E o beija e diz: “Uilsses, foste aos homens
O exemplo da prudência, não te enfades.
Irmos juntos logrando os flóreos dias
O Céu nos invejou; perdão, se ao ver-te
160 Não fui logo lançar-me no teu seio:
De que outrem com discursos me iludisse
Tremia sempre; os dolos não falecem.
A Dial Grega Helena o toro nunca
Do estranho compartira, a ter previsto
165 Que à pátria e casa os belicosos Dânaos
Tinham de a reduzir: a tanto opróbrio,
Causa da nossa dor, cruel deidade
A infeliz arrastou, que o não cuidava.
Porém veros sinais manifestaste:
170 Outro nenhum varão viu nossa alcova,
Nós e a fiel Actóride somente,
Por meu pai concedida, e que é porteira.
Minha justa esquivança embrandeceste.”
     Ele com isto em lágrimas rebenta,
175 Mais ao peito cingindo a casta esposa.
Da praia quando à vista os naufragados,
Por Netuno e por vagas sacudidos,
Poucos no vasto pélago nadando,
Sujos da maresia, à morte escapam,
180 Não têm maior prazer do que a rainha
Teve ali. Não despega os alvos braços
Do colo do consorte; e a ruiva Aurora
Os encontrara, se não fosse Palas:
A olhicerúlea, prolongando as sombras,
185 No Oceano a retinha em áureo trono,
Sem que até ao coche alípides ginetes
Lampo e Faeton, que a luz no mundo espalham.
     “Mulher, diz-lhe o marido, não findaram
Nossas provas; uma árdua imensa empresa
190 Me cumpre executar: assim Tirésias,
De mim, dos sócios meus, soltando os fados,
Profetizou-me na Plutônia estância.
Mas vamos, doce amiga, ao leito nosso
Deleitar-nos em brando e meigo sono.”
195 Penélope acedeu: “Já que em meus braços
Pôs-te o Céu, no meu leito a gosto sejas.
Mas que perigo anunciou-te o vate?
Se hei de saber depois, que o saiba agora.”
     “Se o queres, anjo meu, responde Ulisses,
200 Não to escondo: ah! matéria é de tristeza
Para ti, para mim! Que peregrine
Remotas plagas me ordenou Tirésias,
E ágil remo sustendo, a povos ande
Que o mar ignoram, nem com sal temperam
205 Que amuradas puníceas não conhecem,
Nem remos, asas de baixéis velozes.
Deu-me o sinal: assim que um viandante
Pá creia o remo ser, eu do ombro o desça
Finque-o no chão, carneiro e touro imole,
210 Varrão que inça a pocilga, ao rei Netuno;
Mas na pátria hecatombes sacrifique
Aos imortais celícolas por ordem.
Do mar cá me virá mui lenta a morte,
Feliz velho entre gentes venturosas.
215 Certos me asseverou seus vaticínios.”
     Ela acudiu: “Se os deuses te prometem
Melhor velhice, espero que triunfes
Inda uma vez.” — Enquanto praticavam,
Eurínoma e a nutriz, de acesas tochas,
220 A cama afôfa e mórbida estendiam.
Isto acabado, a velha foi deitar-se,
E a camareira ao quarto alumiou-os
E retirou-se. Com delícias ambos
Do antigo toro o pacto repetiram.
225 Também Telêmaco e os leais pastores
Suspensa a dança, despedindo as servas,
Pelos sombrios paços repousaram.
     Ao desejado amor depois de entregues,
Em colóquios os dous se regozijam:
230 Conta a mulher divina os dissabores
De olhar contínuo a turba dissoluta,
Que, bois, cabras e ovelhas degolando,
E os tonéis exaurindo, a requestava;
Ele, as dores impostas ou sofridas.
235 Leda a esposa de ouvir, só depois dorme.
     Primeiro expôs o estrago dos Cícones,
E a terra dos Lotófagos ubérrima;
Como vingou-se do feroz Ciclope,
Que os sócios lhe comeu; como, inda à pátria
240 Ir não sendo seu fado, com doçura
De Eolo aceito, mais por fim repulso;
Jogo ah! foi da procela em mar piscoso;
Como, aportado à Lestrigônia, tantos
Perdeu, salvando seu baixel apenas.
245 Expôs os dolos e dobrez de Circe;
Como, a Plutão vogando em nau compacta,
Viu, do Tebano vate após consulta,
Irmãos de armas e a mãe que amamentou-o;
Como as Sereias lhe cantaram; como
250 Chegou-se a instáveis rochas e a Caríbdis,
E a Cila que sem perdas não se evita.
Expôs que, a raio o Altíssono a matança
Dos bois do Sol punindo, a nau ligeira
E os demais soçobrou; que, à ilha Ogígia
255 Arribando ele só, foi por Calipso
Detido em cava gruta e acarinhado;
Que a ninfa, de esposá-lo cobiçosa,
Prometeu-lhe uma eterna juventude,
Sem jamais demovê-lo da constância.
260 Findou pelos Feaces, que de um nume
A par o honrando, em nau de cobre e alfaias
E de ouro onusta, a Ítaca o mandaram.
     Do sono aqui dulcíssimo assaltado,
Solve os pesares; e, julgando-o Palas
265 De repouso e de amores satisfeito,
Chama a fulgente Aurora do Oceano,
E na alvorada o sábio herói desperto
Se endereça à mulher: “Sobejas penas
Tivemos: tu, chorando a minha ausência;
270 Eu, delongas e empeços que o Satúrnio
E outros deuses à vinda me opuseram.
Ora, que o nosso tálamo ansiado
Já tocamos, dos bens restantes cura:
Para suprir os meus currais e enchê-los,
275 Hei de apresar, e parte haver do povo.
Aos bosques vou-me e campos, as saudades
Aliviar do genitor. Consorte,
Bem que discreta, observa os meus preceitos:
Alto o Sol, desses procos a matança
280 Ressoará; com tuas servas monta,
Sem comunicação lá permaneças.”
     Vestindo logo as suas, manda que armas
Também Telêmaco e os pastores peguem.
Arnesando-se os quatro, as portas abrem;
285 Ulisses marcha à frente. Era já dia;
Mas enublados os dirige Palas.

NOTAS AO LIVRO XXIII
152 — Os intérpretes e tradutores não viram nesta passagem um rápido movimento de ciúme, que nela parece-me existir: Ulisses, à nova de que o leito fora mudado, leito cujo segredo só ele e Penélope conheciam, pasmou de que tal houvesse acontecido; isto, sendo combinado com a tristeza que lhe causou a nova, segundo se colhe do verso 135, e com o toque da mulher no 170, torna provável a minha observação. Na dúvida, contudo, não quis aclarar a passagem mais do que o fez o autor, nem tampouco seguir interpretação contrária, como o fez M. Giguet, traduzindo Andrõn por quelque artisan: ao menos deve conservar-se o termo varões, que favorece a minha opinião. Este leve movimento de ciúme, em um homem tão suspeitoso, seria interessante nesta cena.
184-187 — Aqui temos um milagre, operado por Minerva, igual ao de Josué: este fez parar o Sol acima do horizonte para aumentar o dia; Minerva também o faz parar, mas abaixo do horizonte, para aumentar a noite. Josué porém é mais antigo do que Homero. Ir ao índice do livro.

Odisséia de Homero - Livro XXII

Despe os trapos o herói, pula à soleira
De arco e de aljava, e aos pés derrama as frechas,
Dizendo aos procos: “A árdua empresa é finda;
Num alvo nunca dantes alcançado
5 A mira tenho, e dê-me glória Febo.”
     A Antino aqui dispara o tiro acerbo,
Quando ele as duas asas d’áurea taça
Maneava, e o licor ia empinando,
Não cuidoso da morte. Quem previra
10 Que entre muitos um só, famoso embora,
À Parca o renderia? A ponta o vara
Da goela à cerviz tenra; ao golpe, Antino
Deixa a taça cair, de ilharga tomba;
Sangue das ventas jorra, e a pés convulso
15 A mesa empurra; espalha-se a comida,
Suja-se a carne e o pão. Ferve o tumulto;
Erguem-se alvorotados, procurando
Em vão, pelas paredes esculpidas,
Escudo ou lança, em cólera fremiam:
20 “Que! forasteiro, aos homens é que apontas!
Final proeza: abutres vão tragar-te;
Mataste a flor dos Ítacos mancebos.
     Louco! acidental suponho o caso,
Nenhum tão iminente o fado cria”;
25 Mas carrancudo Ulisses: “Cães! julgando
Que eu de Ílio não viesse, consumida
Nossa fazenda, as servas estupráveis,
E de um vivo a consorte pretendíeis,
Sem pejo nem temor de homens e deuses!
30 Agora transporei o umbral da morte.”
     Susto e palor os cobre; olhando buscam
Algum refúgio, e Eurímaco responde:
“Se és na verdade Ulisses Itacense,
Tens razão, porque os Dânoas cometeram
35 Neste paço e no campo iniquidades.
Mas ali jaz quem foi de tudo causa,
Antino: a tais ofensas induziu-nos,
Por amor não das núpcias, por cobiça
E ambição de reinar; quis de teu filho,
40 O que o Satúrnio lhe tolheu, dar cabo.
As traições expiou; poupa teus povos.
Será pública a emenda, e prometemos,
Pagando quanto aqui te consumimos,
Cada um com vinte bois satisfazer-te,
45 Com ouro e bronze que teu peito alegrem.
O desagravo aplaque-te os furores.”
     Tétrico o herói: “Toda a paterna herança
E muito mais, Eurímaco, me désseis,
A desforra cruenta era infalível.
50 Só vos pode salvar combate ou fuga;
Nenhum cuido porém que a Parca evite.”
     Esmoreceu com isto, os joelhos frouxam,
E Eurímaco replica: “Aljava e arco
Ele não deporá das mãos invictas,
55 Sem que do limiar nos prostre, amigos.
Sus, dos gládios puxai, fazer das mesas
Reparo aos tiros seus; num grupo unidos,
O expilamos do ingresso, e reclamemos
Pela cidade auxílio: último o dia
60 Seja em que setas rápidas jacule.”
     O bronze afiado arranca de dous gumes,
Salta horrendo a rugir contra o Laércio;
Que lesto à mama o fere, e a veloz farpa
No fígado lhe prega: a espada vai-se;
65 Revolto em cerco à mesa, donde rola
Comida e louça, de cabeça em terra
Bate, e a pés, convulsivo e agonizante,
Sacode o assento; a vista se lhe entrava.
     Corre Anfínomo a Ulisses glorioso,
70 De alfanje nu, para o expelir da entrada;
Mas o pique Telêmaco entre os ombros
Atrás lhe enterra e os peitos lhe traspassa;
Só não lho extrai, de medo que, ao sacá-lo,
Prono o apunhalem. Súbito recorre
75 A seu pai: “Vou trazer-te aêneo casco,
Dous dardos e um broquel. Tempo é de armar-me
E os pastores fiéis.” — “Sim, volve Ulisses,
Não tardes, filho; enquanto as frechas durem,
Todos eles das portas não me arredam.”
80 À voz do caro pai, despede aonde
Recolheram-se as armas; oito escudos,
Hastas oito, quatro elmos traz cristados,
E ao campeão de pronto vem juntar-se;
Arneza-se primeiro e os dous pastores,
85 Com quem de Ulisses em redor se posta.
Do cauto herói cada frechada abate
Um dos procos, e em pilha iam caindo.
Esgotado o carcás, à ombreira o encosta
E o válido arco à nítida fachada;
90 Quádruple escudo embraça, rígido elmo
Nutante enfia de cocar eqüino,
Éreos dardos fortíssimos apunha.
     Alta janela havia na parede,
E ao cabo do vestíbulo de tábuas
95 Estreita rampa, a única subida:
Manda Ulisses a Eumeu que ali vigie.
Agelau, que o percebe: “Amigos, disse,
Não há quem monte à superior janela,
Pelo povo a bradar? com sua ajuda,
100 Este homem nunca mais dardejaria.”
     Melântio refletiu: “Não é possível,
Divo Agelau; que a rampa, junta ao pátio,
Por empinada e angusta, um só valente
Basta a guardá-la. Acima eu vou pôr armas,
105 Ânimo! estão, suponho, em celsa estância,
Onde Ulisses e o filho as depuseram.”
     Por interior escada ei-lo que passa
À câmara de Ulisses, donde aos procos
Doze dardos fornece e broquéis doze,
110 Doze êneos cascos de camada crista.
O herói tituba um tanto, ao ver arnêses
Fugir aos peitos e nas mãos remessos;
Maior a empresa então se lhe afigura,
E grita: “Armou-nos, filho, uma das servas
115 Cruel certame, se não foi Melantio.”
     “A culpa é minha, o príncipe confessa,
A câmara, meu pai, deixando aberta;
Eles desse descuido se valeram.
Anda a fechá-la, e observa, Eumeu, se alguma
120 Escrava é quem nos trai, ou, como julgo,
De Dólio o filho.” — Entanto, Eumeu lobriga
Melântio a remontar: “Solerte Ulisses,
O traidor é o ruim que suspeitamos.
Se o venço, hei de matá-lo, ou conduzir-to
125 Por que pene os excessos perpetrados?”
     E o rei prudente: “A lhes conter a fúria
Eu basto com Telêmaco. Vós ambos
Na câmara o tranqueis: atai-lhe às costas
Mãos e pés; ao pilar da corda o extremo
130 O ice; da trave atormentado penda.”
     Apressuram-se os dous. Sem que os bispasse
Já dentro, armas catando, o guarda-cabras,
De sentinela ao patamar ficaram;
Até que sai, com reluzente casco
135 Na esquerda, na direita um ressequido
Largo e velho broquel do bom Laertes,
Que estava ali de loros despegados.
Com juvenil ardor, no solho interno
Rojam-no preso, amarram-no e penduram,
140 De seu senhor executando as ordens.
Mordaz, Eumeu, clamaste: “Ora, Melântio,
Na mole veles merecida cama;
E, ao raiar do Oceano a matutina
Aurora em trono de ouro, não te esqueças
145 De lhes trazer para os banquetes cabras.”
     Arrouchado e suspenso, o abandonaram,
Fechando a porta; e em bronze reluzindo,
A respirar vigor, juntam-se ao divo
Sábio guerreiro: à entrada apenas quatro,
150 São muitos os da sala e não cobardes.
Em Mentor se disfarça e vem Minerva;
Ulisses a folgar: “Mentor, socorro;
Amigo teu fui sempre, e me és coevo.”
Ora assim, mas suspeita ser Tritônia.
155 Rompem logo em doestos, e é primeiro
Agelau Damastórides: “Ulisses
Contra os procos, Mentor, não te seduza;
Ou com teu sangue expiarás a culpa,
Assim que ele e Telêmaco sucumbam,
160 Como é de crer. Depois que o bronze expires,
Teus bens de fora e urbanos confundidos
E os do Laércio, de Ítaca a família,
Os filhos teus, as filhas, casta esposa,
Nós surdos à piedade expulsaremos.”
165     Em mais cólera a déia: “Já te falta,
Ulisses, o valor que, da alva e nobre
Helena a pró, nove anos despregaste,
Varões tantos rendendo em graves prélios,
Ílion por teus conselhos derrocada:
170 Como! nas tuas possessões recusas
A insolentes punir! Ânimo, filho;
O Alcimides verás como te é grato.”
E a fim de comprovar o esforço dele
E do excelso Telêmaco, a vitória
175 Inda balança, e em resplendente poste,
A revoar, qual andorinha, pousa.
Eurínomo, Agelau, Demoptólemo,
Anfimédon, Pisandro Politório,
Pólibo armiperito, aos seus roboram;
180 Os fortes são que vivos pleiteavam,
Pois o arco assíduo os outros já domara.
“Vêde-o, grita Agelau, que as mãos invictas
Retêm; Mentor jactancioso foi-se;
À entrada, amigos, sós pelejam quatro.
185 Eia, brandi, não todos, mas seis dardos:
Jove nos glorifique, o herói firamos;
Dos mais não se nos dê, se ele é vencido.”
     Frustra Minerva os dardos seis que voam:
Prega-se à porta um freixo de érea choupa,
190 Outro ao grosso alizar, outro à parede.
Malogrados os tiros, manda Ulisses
Paciente e firme: “Toca-nos, ó caros,
Punir os que ardem consumar seus crimes
Com nossa morte.” Lanças quatro zunem:
195 Ele a Demoptólemo, o filho a Euríade,
A Élato Eumeu, Filétio ao Politório,
Morder o vasto pavimento fazem.
Recua ao fundo a chusma, e os quatro os freixos
De chofre dos cadáveres desprendem.
200 De novo os procos a vibrar forcejam,
E as hastas quase inutiliza Palas:
No portal finca-se uma, outra num poste,
Ou num lanço da sala; mas o corpo
A Telêmaco esfola a de Anfimédon,
205 E a de Ctesipo, a Eumeu roçando a espádua,
Salva o escudo e baqueia. Em torno ao chefe
Mantêm-se inda mais bravos: a Eurídamas
O eversor de muralhas, a Anfimédon
Fere Telêmaco, o porqueiro a Pólibo;
210 A Ctesipo Filétio os peitos vara,
E ufaneia: “Insultante Politérside,
Cessas de encher a boca de estultícias;
Cabe o discurso aos poderosos numes.
Pago és do pé de boi com que hospedaste
215 O divo herói mendigo em seu palácio.”
     Ao falar o vaqueiro, fronte a fronte
Seu amo a Damastórides lanceia;
Por Telêmaco a bronze roto o ventre,
Se debruça Leócrito Evenório,
220 Bate no solo a testa . Eis do fastígio
Alça Tritônia a égide homicida:
Vagam todos atônitos, qual fogem
Do vário ágil tavão picadas reses
Nos vernais longos dias. Da montanha,
225 De garra e bico adunco, abutres saltam
Sobre aves, que tremendo alam-se às nuvens;
Eles porém, folgando os campesinos,
Sem mais refúgio, alcançam devorá-las:
Assim de cabo a cabo a turba acossam,
230 Rompem, vulneram; mestos ais ressoam,
E todo o pavimento em sangue ondeia.
     Súbito abraça a Ulisses os joelhos
Suplicante Liodes: “Compassivo
Me sê, Laércio. Nunca obrei, nem disse
235 Cousa que as servas tuas ofendesse;
Antes continha os sócios, que emperrados
O mal purgaram já com morte feia.
Vate e inocente, padecer não devo:
Recompensa futura aos bons compete.”
240 Sombrio o rei troveja: “Eras seu vate,
Longe me ansiavas dos queridos lares,
Ter de minha mulher quisestes filhos;
Trago amargo haverás.” E, erguendo a espada
Que ao morrer Agelau deixara em terra,
245 Com mão forte a Liodes, que ainda orava,
A cabeça mutila e em pó lha envolve.
     O Terpíades Fêmio, dos intrusos
Cantor coato, esquiva-se ao trespasso;
E, em punho a lira arguta, considera,
250 À superior saída, se abrigar-se
Na ara de Jove iria, onde o Laércio
E o pai queimaram coxas mil taurinas,
Se deitar-se-lhe aos pés: foi deste aviso.
Entre a cratera e a sede clavi-argêntea
255 Pondo o cavo instrumento, implora e estreita
Os joelhos do herói: “Príncipe augusto,
Perdão! há de pesar-te se exterminas
Vate que humanos e imortais celebra.
Eu doutrinei-me, o Céu me inspirou mesmo
260 Onígenas canções; posso entoar-tas,
Qual a um deus: no meu sangue ah! não te manches.
Por indigência não, teu filho o sabe,
Dos procos aos festins forçado vinha;
Tantos e mais potentes me obrigavam.”
265     Enérgico Telêmaco: “Este insonte,
Nem o arauto castigues, pois na infância
De mim curava, se é que Eumeu, Filétio,
Ou golpes teus letais o não prostraram.”
     Ouve-o Médon alerta, que medroso,
270 De baixo do seu trono, em fresca pele
Bovina se escondera; e, sacudindo-a,
Ajoelha-se a Telêmaco: “O paterno
Cru bronze, amigo, aos loucos não me iguale
Que, esbanjados os bens, te desonravam.”
275 Sorrindo o herói: “Telêmaco salvou-te
Sus, apregoa que vantagem leva
Sempre a virtude ao vício. Ao pátio aguarda
Mais o cantor famoso, que eu preencha
Quanto me cumpre.” — Da carnagem fora,
280 Ambos da ara de Jove tudo espreitam.
Na sala, circunspecto, ele examina
Se inda algum respirava, e em pó sangrento
Jaziam todos: qual à praia curva
Arrasta a malha os peixes, que, empilhados
285 Na areia, mudos cobiçando as vagas,
À luz do Sol em breve o alento exalem;
Tais os procos ali se amontoavam.
E Ulisses: “Da nutriz já já preciso,
Telêmaco.” O postigo o moço volve:
290 “Olá, quer-te meu pai, não tardes, ama,
Que és das fâmulas todas superiora.”
Fútil mando não foi; que, abrindo as portas,
Caminha após Telêmaco Euricléia:
De mãos e pés imundo encontra a Ulisses
295 De fresca mortualha circundado;
Como o leão, que, tendo a rês comido,
Cruento o peito e a cara, avulta horrível.
Nos mortos atentando e no alto feito,
Ia a velha gritar; seu amo o atalha:
300 “Folgues embora em ti, mas não jubiles;
Cousa é torpe exultar por homicídios.
Cru destino os domou, sua impiedade:
Sem respeito a ninguém, por bom que fosse,
Pecados seus à Parca os devotaram.
305 Agora as delinquentes me enumera,
Que esta casa honestíssima desdouram.”
E a dileta nutriz: “Meu filho, escuta.
Fâmulas tens cinqüenta, que ensinamos
A lavrar, a cardar, a submeter-se
310 À escravidão: na impudicícia doze,
De mim não se lhes dá, nem dá senhora
Telêmaco, inda há pouco adolescente,
Que a mulheres governe a mãe proíbe.
Eu já subo a falar com tua esposa,
315 Por divino favor adormecida.”
Mas ele: “Não é tempo de acordá-la.
Aqui me chama as impudentes servas.”
Apressura-se a velha mensageira.
     A Telêmaco o rei e aos dous pastores
320 Juntos prescreve: “A transferir os mortos
Começai, das mulheres ajudados;
Expurguem-se depois com água e esponja
Tronos e mesas. Toda a sala em ordem,
As rês daqui levai; de espada a fios
325 Da cerca do átrio em meio e da rotunda,
Expire uma por uma, e esqueçam Vênus
Que furtivas as ligava aos pretendentes.”
     Elas em pranto e ais chegadas foram;
Soluçando, os cadáveres às costas,
330 Ao pórtico do pátio os depuseram,
Mútuo auxílio a prestar-se; o mesmo Ulisses
As concitava, e a custo prosseguiam.
Limpos à esponja os móveis elegantes,
O solo os três com pás iam raspando,
335 O lixo as criminosas carregavam.
E concertada a sala, as conduziram
Da cerca do átrio ao meio e da rotunda,
Augusto sítio, impedimento à fuga.
     Lá Telêmaco disse aos companheiros:
340 “Não morram simples morte as que, nos braços
De infames tais, enchiam-me de opróbrio
E a minha casta mãe.” Nisto, um calabre
Naval de uma coluna atando, em roda
No alto passa da torre, que nenhuma
345 O chão de pés tocasse. Qual, entrando
Pombas ou tordos num vergel, da moita
Em rede caem de estendidas asas,
Triste poleiro e cama; assim, por ordem
Elas em laços, curto esperneando.
350 Cessam de palpitar estranguladas.
Ao vestíbulo e átrio, a sevo bronze,
Ventas e orelhas a Melântio cortam,
Lançam-lhe os genitais a cães famintos,
Pés decepam-lhe e mãos. — Completa a obra,
355 Vão-se purificados ao Laércio,
Que determina: “Salutar enxofre
Traze e fogo, Euricléia; defumada
Seja a casa. Ao depois a vir exortes
A rainha e as escravas.” — Mas a velha:
360 “Otimamente, filho meu, discorres;
Outras vestes porém dar-te-ei primeiro:
Decoroso não é que em teu palácio
Forres de andrajos os robustos membros.”
     Insta o senhor: “O fogo é já preciso.”
365 Fogo e enxofre sem réplica ela trouxe.
Com que Ulisses defuma a sala e o pátio.
Sobe a ama de novo e intima as ordens:
As servas em tropel sustendo fachos,
Ledas em torno, abraçam-no e saúdam,
370 Beijando-lhe a cabeça e as mãos e espáduas;
E ele, que n’alma as reconhece, um doce
Desejo tem de choro e de suspiros.

NOTAS AO LIVRO XXII
93-98 — A posição desta janela e subida não se pode bem determinar; os comentadores não explicam o lugar satisfatoriamente, nem eu me lisonjeio de ter acertado.
141-145 — Nesta passagem, principalmente no fim, apartei-me um pouco do sentido literal, para melhor exprimir a zombaria de Eumeu.
155 — Doesto significa injúria ou vitupário; sem embargo de alguns diários e folhas o tomarem erradamente por dor ou pesadume.
210 — Advirto que, sempre que vem o nome Ctsipo com duas sílabas, eu o faço de três Ctesipo, como o fez Pindemonte; porque na língua portuguesa, que foge de muitas consoantes seguidas, o dissílabo seria áspero em qualquer verso.
342-354 — Toda esta cena de serralho, como a nomeia M. Giguet, é horribilíssima; e acrescenta o horror o suplício de Melântio, sobre quem se exerce uma vingança brutal. Não é mau que Homero nos pintasse um tal quadro, para avaliarmos os costumes daqueles tempos. Contudo, se fosse Virgílio que o fizesse, quantas pragas não choveriam das bocas e penas de certos críticos modernos!
368-372 — Depois da cruel carniçaria, Homero desenluta o seu ouvinte ou leitor com a ternura das servas inocentes, e com o desejo de chorar que teve o senhor ao reconhecê-las; mas, não obstante a habilidade com que traça este novo quadro, o primeiro não se apaga e nos deixa uma dolorosa impressão. Ir ao índice do livro.

Odisséia de Homero - Livro XXI

Já da rainha à mente influi Minerva
Propor na sala do arco e das secures
A contenda, princípio da carnagem.
A escada monta, pelo ebúrneo cabo
5 Na mão toma carnuda a chave aênea
Curva e artefata, e vai com boas servas
À superior instância, onde o rei tinha
Muito ouro e cobre e trabalhado ferro;
Pleno acha o letal coldre e o fléxil arco,
10 Dons hospitais do Eurítides Ífito,
Lacedemônio herói. Com este Ulisses
No palácio topou do bravo Ortíloco,
Indo a Messena, embaixador imberbe,
Do pai e outros antigos deputado,
15 Longa viagem, reclamar trezentas
Ovelhas e seus guardas, que Messênias
Galés dos campos de Ítaca levaram.
Para seu dano, Ífito ali buscava
Éguas doze perdidas e a seus ubres
20 Doze pacientes mus: foi quando Ulisses,
Que doou-lhe uma espada e forte pique,
Esse arco teve, que, morrendo Êurito
Em seu palácio transmitira ao filho.
Ah! que nunca um do outro à mesa esteve!
25 Atalhou-se a amizade, porque Ífito,
Hospedado por Hércules, de Jove
O mais valente e façanhoso garfo,
Este o matou sem pejo dos Supremos,
Ímpia as éguas solípides retendo.
30 Por memória do amigo, o arco aceito,
Partindo Ulisses, o deixou na pátria.
     Vizinha à câmara a mulher egrégia,
Tem-se ao portal de robre, esquadriado
E polido, a que o fabro acomodara
35 Esplêndidas ombreiras e batentes:
Solto o loro do anel, para o ferrolho
Da armela desprender, enfia a chave;
Com jeito ao revolvê-la, as altas portas,
Qual muge em várzea o touro, abertas rangem.
40 De sobre estrado, em que pousavam grandes
Caixas de roupa odora, as mãos alçando,
O arco e a funda lustrosa despendura;
Sentando-se, o coloca aos seus joelhos,
E lamenta e pranteia, ao destojá-lo.
45 Torna, enxutas as lágrimas, à sala,
Setas fatais e o arco sustentando;
Uma canastra escravas lhe carregam
Do cobre e ferro do certame régio.
Entre fâmulas duas, à soleira
50 Pára, e abatendo o fino véu perora:
“Vós que, à pretexto de esposar-me, ausente
Meu marido, estragais toda esta casa,
Ouvi-me. O arco eis aqui do nobre Ulisses,
E eu proponho um certame: quem mais fácil
55 O atese e freche atravessando os olhos
Das machadinhas doze, hei de segui-lo
Da conjugal estância, farta e bela,
Da qual me lembrarei té nos meus sonhos.”
     O arco e acerado ferro então lhes manda
60 Pelo fiel choroso Eumeu. Filétio,
Ao ver o arco do rei, suspira e geme.
Antino os apodou: “Rústicos parvos,
Que só cuidais no de hoje, ah! miseráveis,
Enterneceis com lágrimas aquela
65 Que, perdido o consorte, em mágoas vive?
Comei calados, ou carpi de fora;
Deixai-nos o arco da custosa empresa:
Há quem fácil o curve e se equipare
A tão completo herói? Pequeno eu era,
70 E de Ulisses divino estou lembrado.”
     Assim falou; mas no ânimo contava
O arco tender e traspassar os ferros,
Ele que provará primeiro a frecha
Do rei sem tacha, a quem no mesmo alvergue
75 Tinha afrontado, os sócios concitando.
     Forte exclama Telêmaco: “Hui! por certo
Jove desjuizou-me: em que prudente,
Minha dileta mãe diz que por outrem
Larga esta casa, eu rio e insano folgo!
80 Procos, eia, ao certame: em Graias terras
Mulher, vós o sabeis, não há como ela,
Em Pilos santa, em Argos, em Micenas,
Nem mesmo em Ítaca ou no Epiro negro:
Para que pois levá-la? Decidamos,
85 Sem mais tergiversar, tente-se a prova.
Também o ensaiarei: se o arco ateso
E as secures enfio, a mim dolente
Não me há de abandonar a augusta madre,
Caso ao paterno jogo eu leve a palma.”
90 Direito surge, e o manto purpurino
Depõe dos ombros e a cortante espada.
Abre a cada secure funda cova,
Certo as alinha, em torno calca a terra:
Que o faça admiram, sem que nunca o visse.
95 Da soleira, o arco tenta, ávido e firme;
Três vezes falha. Espera inda animoso
Tender o nervo e atravessar o ferro;
E ao quarto esforço o gosto conseguira,
Se Ulisses não lhe acena, e então se teve.
100 “Oh! céus, brada, ou serei débil guerreiro,
Ou moço inda não posso braço a braço
A ofensa repelir. Vós mais pujantes,
Exp’rimentai; findemos a contenda.”
E o arco pousa e encosta aos alizares,
105 Do arco ao remate belo a seta apoia,
E ao posto volve. — Logo Antino: “Em cerco
Pela destra comece e donde o vinho
Se distribui.” O dito aprovam todos.
     Ergueu-se o vate Enópides Liodes,
110 Junto à cratera assídua sentinela
Censor dos sócios, à injustiça avesso.
Ao limiar, pegando o arco e as setas,
Malogra o esforço; as tenras mãos doridas
Pouco atreitas molesta: “Eu cesso, amigos;
115 Outrem cometa a empresa. Este arco a muitos
Estrenuos privará de alento e alma;
E antes morte que vida, a quem frustou-se
Longa esperança. Aquele que inda fia
E pensa haver de Ulisses a consorte,
120 Verá presto que deve outras Aquivas
Requestar e dotar: com esta case
Quem mais lhe oferte e a sorte lhe destine.”
Também pousa arco e seta, e vai sentar-se.
     Brame Antino em furor: “Que dito acerbo
125 Desses beiços, Liodes, proferiste?
O arco anuncias, por que em vão lidaste,
A muitos privará de alento e alma?
Não gerou-te a mãe tua para archeiro;
Mas outros pulsos poderão dobrá-lo.”
130 E ao cabreiro virou-se: “Fogo acende,
Grande escano lhe achega bem forrado;
Lá dentro há unto e um disco dele traze:
Aqueçamo-lo e o arco amaciemos,
Para em breve o certame concluirmos.”
135 Melântio o fogo acende, o escano achega;
O unto, que não falece, ao lume aquentam:
O arco a vergar seus braços não bastaram.
Abstêm-se Antino e Eurímaco deiforme,
Que facilmente aos outros superavam.
140 O vaqueiro e o porqueiro ambos saíram
E inda após eles, fora e já no pátio,
Lhes falou com doçura o divo Ulisses:
“Filétio e Eumeu, calar quiçá me cumpra,
E descobrir-me o coração me pede.
145 Se um deus súbito Ulisses vos mostrasse,
Deles serieis vós ou desses procos?
Da alma explicai-mo.” — Exclama-lhe o vaqueiro:
“Jove, a meu voto anui! um deus o traga!
Velho, meu brio e ardor conheceria.”
150 E Eumeu também depreca ao sacro Olimpo
Que volte o rei prudente aos seus penates.
     Deles seguro, brada: “Eis-me, entre angústias
Chego ao vigésimo ano. Reconheço
O vosso amor e fé: dos servos todos
155 Sois quem me desejais com zelo e afinco.
Agora me atendei: se me dá Jove
Os intrusos domar, consortes, prédios,
Casas tereis ao pé da minha própria;
Sócios e irmãos sejais do meu Telêmaco.
160 Não há dúvida alguma: eis dos colmilhos
Do javardo o sinal, quando ao Parnaso
Os de Autólico filhos me guiaram.”
Da cicatriz então separa os trapos:
Certificados, o senhor abraçam
165 E beijam-lhe a chorar a testa e os olhos;
O mesmo Ulisses faz. Durara o pranto
Ao posto Sol, se o cauto o não vedasse:
“Basta, alguém ver-nos pode. Vou primeiro,
E entrai, com intervalo, um após outro.
170 Se eles do arco pegar me proibirem,
Traze-mo com a aljava, Eumeu divino,
Através da ampla sala; as servas manda
Aferrolhar as portas; nem que sintam
Estrondo e ais, de seu lavor se bulam.
175 Os cancelos do pátio, ó bom vaqueiro,
A chaves tranca e fortemente amarra.”
Disse, e dentro sentou-se no seu posto;
Seguem-no a tempo os dous fiéis criados.
     O arco Eurímaco ao lume aquenta e vira,
180 Mas nem sequer o verga; no orgulhoso
Peito suspira, e suspirando fala:
“Ai de mim e dos mais! Bem que as deseje,
Não choro as núpcias, que Ítaca e outras ilhas
Têm muitas belas; choro a clara prova
185 De superar-nos tanto o grande Ulisses:
Oh! futuro desdouro!” — A quem Antino:
“Tal não será, Eurímaco; reflete:
Hoje a festa celebra-se de Apolo,
Quem arco dobrará? depô-lo cumpre,
190 Inda que em pé deixemos as secures,
Pois ninguém penso as tirará da sala.
Eia, escanção, de novo os copos vaza;
Larguemos nós libando, o arco e as setas
Traga cedo Melântio nédias cabras;
195 Ao Longe-vibrador queimando as coxas,
A contenda amanhã terminaremos.”
     Aplaudem-no. Água às mãos arautos vertem;
As crateras coroando, em roda os moços
O vinho distribuem. Já perfeitas
200 As libações, manhoso o herói discursa:
“Franco, dignos rivais, serei convosco;
A Eurímaco mormente me dirijo,
E ao régio Antino, que opinou cordato:
O arco repouse e confiai nos deuses;
205 A quem quer amanhã dê Febo a glória.
Mas emprestai-mo, a ver se as forças tenho
Que outrora os membros fléxeis me animavam,
Ou se o mar e a desgraça as confrangiram.”
     Indignaram-se os príncipes, temendo
210 Que ele o arco dobrasse, e Antino estoura:
“Mísero! endoudeceste. Pouco julgas
Farto comer tranqüilo à nossa mesa,
Ouvir-nos praticar, vantagens que outro
Vagamundo ou mendigo nunca obteve?
215 Vinho ardente e melífluo te perturba,
Como a quem nele imódico se encharca.
O vinho a Eurítion, Centauro insigne,
De Pirítoo magnânimo nos paços.
Inflamou contra os Lápitas; a injúrias
220 Embriagado se moveu tamanhas,
Que os heróis do vestíbulo o expulsaram,
Cerceando-lhe as ventas e as orelhas.
De alma chegada e leso, errando insano,
Aos Lápitas urdiu cruenta guerra,
225 E o vinho d’antemão lhe foi desastre.
Mal do vinho haverás, se o arco vergas.
Tu advogado algum não tens no povo;
Irás a Équeto rei, flagelo de homens,
Em negra nau, sem que dali te salves.
230 Bebe em sossego, e a jovens não te afoutes.”
     A rainha o impugnou: “É torpe e injusto
Que de meu filho o hóspede molestes,
Ou quem se abrigue, Antino, em minha casa.
Supões que ele, se em forças estribado,
335 O rijo arco de Ulisses estendesse,
Levar-me-ia consigo por esposa?
Nem sonha o pobre em tal, nem vos contriste
Nos festins semelhante pensamento.”
     Respondeu-lhe o de Pólibo: “Rainha,
240 Crermos que ele te espose indigno fôra.
Teme-se a língua de homens e mulheres;
Talvez diga o mais vil: — O amor cobiçam
Da mulher de um valente os que o seu arco
Não puderam dobrar, quando erradio
245 Pedinte o fez, atravessando os ferros.
Tais motetes opróbrio nos seriam.”
     “Eurímaco, Penélope retorque:
Respeita acaso o povo os que desonram
E os bens estragam de um varão sublime?
250 Sois vós que há muito vos manchais. Fornido
E apessoado, o velho se gloria
De um sangue ilustre: o arco lhe dai; vejamos.
Se Febo o ajuda, manto lhe asseguro
Belo e túnica rica, aos pés sandálias,
255 Dardo e anticípite espada que o defendam,
E o mandarei para onde for seu gosto.”
     Sábio Telêmaco. “A nenhum dos chefes
De Ítaca branca, ou de ilhas que vizinham
Com a Élide em cavalos abundante,
260 Mais do que a mim, querida mãe, compete
O arco negar ou dar; nem há quem obste,
Se eu quiser a este hóspede ofertá-lo.
Vai curar do lavor, da roca e teia,
E assiste às servas: o arco aos homens toca,
265 Mormente a mim, que neste paço mando.”
Retira-se a rainha, e pasma e guarda
O maduro discurso de seu filho.
Sobe com suas fâmulas, chorosa
Pelo marido caro, até que Palas
270 Sono doce nas pálpebras lhe entorna.
     O arco o divo porqueiro ia levando;
Mas rumor cresce imenso, e um deles brame
“Onde, abjeto porqueiro, esse arco levas?
A proteger-nos Febo e os outros numes,
275 Breve hão de nas pocilgas devorar-te
Cães nutridos por ti, sem que te acudam.”
     A arma depôs Eumeu todo assustado;
Minaz também Telêmaco bradou-lhe:
“Avante, avante, a chusma não te embargue
280 Ou, posto que menor, eu te hei-de a pedras
Ao campo repelir, que sou mais forte.
Assim tanto excedesse aos pretendentes,
Que destes paços os tivera expulso,
Onde exercem flagícios e torpezas.”
285 Ei-los a rir a cólera esqueceram.
     O arco o fiel pastor, por entre a sala,
Entrega a Ulisses, e à nutriz adverte:
“As servas manda, o príncipe te ordena,
Aferrolhar as portas; nem que sintam
290 Estrondo e ais, do seu lavor se bulam.”
Executa Euricléia à risca e pronta.
Mudo Filétio furta-se; os cancelos
Do pátio fecha, e os liga de biblino
Cabo naval, que ao pórtico jazia,
295 E os olhos no senho, torna a seu posto.
     O arco o herói tenteia, e vira e indaga
Se de vermes roído estava o corno.
Um disse: “Admirador é certamente,
Será de arcos ladrão; possui em casa
300 Muitos iguais, ou fabricá-los busca:
Destramente o meneia o vagabundo!”
Outro ajunta: “Bem haja, como agora
Tem de o vergar.” Zombando galrejavam.
     Solerte enfim Ulisses o examina:
305 Qual estende perito citaredo
Com nova chave do alaúde as cordas,
As torsas adaptando ouvinas tripas,
Fácil o atesa, a destra o nervo estira,
Que soou como chilro de andorinha.
310 De cor os procos doloridos mudam;
Forte Jove troveja, e o divo Ulisses
Folga ao sinal: da mesa pega a nua
Leve seta, na aljava as outras sendo
Que hão de os Aqueus experimentar; sentado,
315 Embebe-a no arco, puxa o nervo e as barbas;
Da mira não desvaira a brônzea frecha,
Das secures zunindo os furos passa.
Ao filho clama: “O hóspede que abrigas
Não te desonra; o tiro foi certeiro
320 O arco tendi sem lida: hei sãs as forças,
Cessem do vitupério estes senhores.
Hora é de preparar com dia e ceia;
Orne a lira o banquete, o canto o alegre.”
     As sobrancelhas move: aguda espada
325 Eis Telêmaco cinge, empunha a lança;
Do pai senta-se ao pé, de bronze armado.

NOTAS AO LIVRO XXI
83 — O autor chama negro o Epiro; e eu conservo o adjetivo, sem poder contudo acertar com a razão. Uns dizem que negro se refere à cor do terreno, e equivale a fecundo; pensam outros que, passando os Epirotas por ásperos e rudes entre os antigos, toma-se aqui negro por tosco ou por quase bárbaro; alguns afirmam que o Epiro, visto de longe, por exemplo de Corfu, apresenta uma cor sobremodo escura. Não sei escolher.
123 — Resumi esta passagem, por ser a repetição dos versos 104-106 deste mesmo livro; e o advérbio também declara suficientemente que Liodes fez o mesmo que fizera Telêmaco.
293-307 — O cabo era biblino ou de biblos, certa espécie de papiros; assemelhava-se ao que hoje tem o nome de cairo, que é a corda ou calabre da casca externa do coco. — Daqui se vê quão antigas são as cordas de tripa de carneiro para os instrumentos músicos. Ir ao índice do livro