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Clássicos Modernos José Pérez


Com a reedição, agora, entre os famosos livros definitivos da humanidade, na série d"Os Mestres do Pensamento", desta proverbial versão brasileira de Francisco Sotero dos Reis dos "Comentários à Guerra da Galia" - Commentarii de bello gallico - de Cesar, damos em cheio com um clássico dos pés à cabeça. Um inquestionável clássico que dois mil anos sagraram numa acrisolada admiração histórica e literária, arrolando-o, assim, entre os rarecentes escritores de todos os tempos libertos "à lei da morte" formulada, em famoso verso, por aquele que também pelo seu gênio portentoso a ela se forrou, Camões. Não para estes heróis, - heróis, muito mais do que Hitler com as suas vitórias devastadoras - evidente, o amargor pessimista que escorre dos versos do florentino que se lhes irmanou na glória:

É nossa fama qual matiz da planta, que pouco dura, e o próprio sol desbota. que a faz brotar da terra ingrata e dura. (Dante - Purg. Cap. XI, trad. de Vila da Barra)

E já que também é, por inteiro, aproveitável, o prefácio de Sotero dos Reis para a edição de 1863 da sua preclara translação, e em cuja se plasmou perfeita síntese da silhueta de multivariadas facetas do imortal romano, nele, outrosim, se detendo a lhe mensurar o alcance da obra literária convergida para estes Comentários, então, em contrário ao que vimos até agora fazendo, de dar, em páginas prolegomenares, uma súmula do homem e da obra, pelas aludidas razões, não o fazemos nesta, aproveitando, entanto, este local, para uma falação breve sobre o título que o encima - assunto ao qual já temos dedicado alguma meditação.

Muito te hás de surprezar, leitor, se souberes que destas reedições clássicas se incumbiram sujeitos ainda mal entrados em sua madurez e que se alistaram, não faz muitos anos, numa série de rebeldias de toda ordem, anárquicas e desconjuntadoras, e cujo fito era, sempre, a sistemática e permanente oposição a tudo o que fosse passado, e, necessariamente, em arte, literatura e pensamento, àquilo que leva o nome de clássico. Levantaram-se contra isso e contra aquilo, somente porque rescendia a passado e a antigo numa fúria de iconoclastas, eis que os contaminara o morbus do investir e do desarticular. Borrascosamente irritabunda e demolitória, a triste geração do após 14 e que se funde, agora, no chão de brasas do Apocalipse de Hitler, acossada no mais íntimo da sua rede nervosa, revelou-se de uma turbulência irremovível que fê-la, às loucas, atirar-se contra todo o estabelecido e consagrado o mesmo é dizer-se que fê-la dar de cabeça ao muro... só que o muro ficou intacto - sorriria, se pudesse - e a cabeça ficou a lascas e a cacos o seu conteúdo. E agora nós, pobres homens modernos, sacrificados pela estupidez de uma velha mentalidade de ódios cegos que levou a humanidade ao braseiro, vesânica mentalidade que ao invés de intibiar após tantos anos de soprar virulento, como que mais se enturgece e ensancha ao cabo do mundo e aos extremos da vida, verificamos que da bulha insolente com que nos atrevemos contra tudo, querendo - aqui se enquadra o meu evangelho, o meu Quixote - "hacer nuevo mundo" - "no quieras hacer nuevo mundo" num lance de lucidez dizia a Sancho o bom do cavaleiro - não o fizemos de novo e esperdiçamos o tempo a investir o velho que... o vento não levou... O novo que construimos, esse, tão frágil era que, à nascença, já o vento levou... É que para construir algo de duradouro há-se de fazê-lo sobre o chão batido pelo esforço das velhas gerações a que, apenas, as subseguintes, levam o contributo do seu para enriquecê-lo... Não se deve, justo, dormir sobre o passado como um quichua... contemplando-o, imoto, como aquele corvo, "triste e só", do poeta, à beira da corrente, e virando estátua com ele, aceitá-lo sem o acréscimo das gerações e da vida... Mas, também, renegá-lo por uma eliminação sem mais nem mais, é torpeza ou grandeza tamanha que só se compreenderia na onipotência de um bíblico demiurgo, capaz de tudo reduzir a nada e do nada tudo recompor.

Refletimos a alucinada decomposição do tempo. É esta a desculpa que lhe encontra ao baixo nível mental dos nossos dias. A fúria das iconoclastias bélicas determinou o desalento e a intranqüilidade que esterilizou e impossibilitou uma produção boa, segura e sistemática. Nunca o homem percorreu dias tão agitados, sobre um tablado instável, como aquelas escadas movediças que se inventou para não se fazer o esforço natural de subir meia dúzia de degraus... Mas, um desgaste maior de energia nervosa faz-se, ascendendo sobre o fugidio de uma escada a correr sob pés que só devem andar... A imagem, rápida, apressada e desnaturada da nossa vida se fixou, a meu juízo, nessas falsas escadas... E com tal impulso, como havíamos de bem produzir? Tudo vai de corrida, e logo nos cansamos, e caímos esfalfados... E se ainda voa sobre as nossas cabeças a ameaça permanente da destruição?!...

Sobre a nossa geração desabou a tormenta de duas guerras mundiais, a uma das quais assistimos em atitude de estupor; centenas de outras, aparentemente locais, mas, de verdade, furos de uma generalizada gangrena, ponteando, num giro universal da geografia política, da China ao Chaco, dos Balcãs a Marrocos; tumores revolucionários que abriram em chagas desumanas da Rússia à América sulina convulsionada a caudilhismos endêmicos.

Nunca faltou tanto a uma geração intelectual como à nossa, os dois plintos basilares sobre os quais se ergue a verdadeira cultura: a faculdade de investigar e a faculdade de meditar. Talvez ela tenha lido e mesmo lido muito, demais até, porém ineficazmente. Porque só leitura, sem calma, sem reflexão, sem observação, sem meditação, leitura apressada e perfuntória, não dá cultura... Esta, provém do estudo e até mesmo da pouca leitura - pauca sed bona - mas profundamente meditada. A grande sabedoria dos orientais, a dos chins, dos hindus, dos judeus, dos árabes, a profundidade de Descartes e de Spinoza - este dizia que "a filosofia é a meditação da vida" - promanaram mais do seu poder de meditação do que das suas meras e fáceis faculdades de ler. Olvidou-se a investigação das coisas naturais por meios naturais, e, apenas, em ciência, - coisa do nosso tempo - com uma aparelhagem complicada que esmaga o pensamento, tem-se investigado artificialmente. O grande aparelho de investigar e refletir - o cérebro - substituido por métodos mecânicos, parece que se vai embotando. Maldição dos inventos! Os produtos mecânicos do pensamento e das mãos, estão matando as mãos e o pensamento. Carell se alarma com o embotamento mental do homem contemporâneo.

Sobre um chão de tanta pressa e rapidez, como teríamos o tempo necessário para um cultivo perfeito do espírito? Cultivamos, sim, os males eufóricos e nos consumimos nas aras das coisas apressadas, como se o mundo se fosse a acabar... Triste geração de angústia, moldeada no cadinho de um mundo agônico: ossos despedaçados, carnes dilaceradas, alma em estilhas!

E não fomos nós que ateamos o braseiro a crepitar. Mas somos nós a expiação imbele e inocente das suas aras em fusão. Vai-se-nos a vida na pressa, sem tempo de conformar coisas que só com o tempo se assentam e ao madurarmos para a vida já vamos sentindo a inanidade dos nossos ideais. Pouco fizemos, se pouco é o nos havermos sacrificado e imolado à sanha dos ódios... dos outros... Somos uma geração sacrificada ao tumulto das iras e a nossa produção é seca e pêca. Assolados por uma infrene anarquia de prós e contra, de reformas e contra-reformas, que se precipitaram umas sobre outras, como cabeços de vagas, fomos mal educados e pior instruidos. No Brasil, as reformas da instrução pública, sempre experimentais e às cegas, nos fizeram de cobaia e nos tornaram exangues e quase inanidos. Somos uma geração que mirrou no berçário. Mal instruida, pensa mal e mal se expressa. É que os seus guias lhe inocularam o mal de tudo isso, que a sua ignorância catedralesca pompeava sem escrúpulo. Um jardim de infância ainda em experiência, um curso primário em eterna elaboração, um curso liceal reformado a cada passo, um curso superior sem bases firmes, sem preparação séria, uma vida intelectual leviana, fácil, facílima, com uns exemplos intelectuais sem cultura, modelos de trapaça e de embuste, sacrificaram as bases culturais da geração.

É de uso trivial a frase de que é esta uma geração de ignorantes. Não há de ser tanto. Deveria, isso sim, sê-lo pior do que é, dados os motivos que lhe reduziram as possibilidades mentais de estudo e meditação. Muito há de ficar devendo a nossa desgraça à estupidez política e à bruta estulticie dos que abriram a picada aos seus passos iniciais.

Mas, pior do que a atualidade, é o futuro sem esperanças. Porque, ao menos, a esta geração, coube-lhe a glória -?- do sacrifício. Mas para os que vêm, ainda não se abre a esteira das boas espectativas reabilitatórias. Houve um momento, depois de 14, em que ideais com eiva de boa fé, abriram à vida a fulgência dos grandes clarões. E parecia que, polarizada a dispersão dos homens descongregados pelo caos de uma burguesia em decomposição, os galvanizaria em novos entusiasmos. Mas logo se viu que nos sucessores dos grandes líderes daqueles momentos culminantes, rebrotavam os vícios que se procurava derruir. O fascismo, por sua parte, nunca constituiu um ideal, a não ser, especialmente na Alemanha, o ideal do desforço e da vingança, que conseguiu renuclear um povo para reproduzir outra catástrofe de conseqüências imprevisíveis. Formou-se, de novo, o vácuo e resurgiram as grandes ânsias, as decepções cruéis, as desilusões incicatrizáveis. Aos que dizem que nada sabemos, havemos de responder que já muito sabemos, eis que sabemos com certeza que fomos duramente defraudados e imolados...

Entanto, - especialmente antes de se desencadear a atual guerra - afigurava-se que para esta geração que agora passa, ainda esvoaçava alguma leve esperança. A visão da nossa triste realidade, talvez ainda nos pudesse salvar. Àqueles que a têm diante dos olhos desorbitados à contemplação da trágica paisagem, cumpre uma atitude tranqüila e honrada, intrépida e impávida, para reconhecer os erros e as falhas, os defeitos sanáveis, curando de os remediar sem desânimo. Façamos, então, o esforço tentacular da renovação... A geração dos trinta anos que passa, na acerbidade mesma da sua agonia, deve dar um passo atrás, tentar um exame de consciência implacável, fundamente austero e estóico, refluir a uma observação introspectiva severa, com os olhos também para a vida, e voltar aos fundamentos, reconstruindo-se a si própria. Visada de frente a realidade e conhecido o destroncamento de todos os conceitos e a desarticulação de todas as bases, tratemos de adaptar-nos às novas contingências. O poder de adaptação humana é muito maior do que em geral se acredita. Não nos demovam as dificuldades. Principalmente aos homens de clara inteligência, incumbe essa função. Um homem formidável dos nosos dias, que exorbitou de todas as craveiras da medição humana, define o homem inteligente como sendo "aquele que sobre a ponta de um prego é capaz não só de adaptar-se como de tirar partido dessa incômoda situação". Estamos, de fato, sobre a incômoda ponta do prego. Vejamos, agora, já que não temos outro remédio, como nos havemos de amoldar o melhor possível.

E para começar, impõe-se uma volta ao passado, jamais para o imitar, jamais para o reerguer e nele nos modelarmos, mas, como quem carece de alicerces, para conhecê-lo. A esses vís cabotinos sem valor moral, proncipalmente, que nos antecederam, pensando mal e escrevendo pior, um cordial adeus de mão fechada. Foram um péssimo exemplo.

Sou contra o passado para, por um falso respeito, transformá-lo em rito intangível. Temos o direito de criticá-lo. Temos o direito de nos rebelar contra ele. Só não temos o direito de desconhecê-lo. E este conhecimento do passado só se pode fazer culturalmente e através dos bons escritores, abandonados pela geração. Daqueles escritores, tipo clássico. Clássicos porque, em formas superiores de bem exprimir-se, souberam focar o seu tempo, as suas tendências, os homens, os costumes, o bom e o mau que lhes passou pelos olhos, poderosos refletores testemunhais da vida que se foi. Como insuperáveis estetas, fixaram todos esses momentos, E o prêmio de tanta arte foi uma justa imortalidade. E porisso, resistem. Isto é um clássico: - um que resiste. Resistência que o tempo terrível e avassalador não consegue vencer. Que pôde o tempo contra Homero, a Bíblia, Cervantes? Pois esta inabalável resistência é que os tornou clássicos. Há uma observação certeira de Azorin que quero, aqui, por mim endossada, transcrever: "En el fondo, el problema de los clasicos es el mismo problema de la vida total de las sociedades, con sus instituciones y modalidades políticas." Para mim, mais do que um valor estático de estética literária, vejo aflorar no clássico a imensa valia dinâmica de um documento não só histórico, mas, e principalmente, humano e psicológico. O clássico vale por um documento e um repositório de quanto vem ansiando a humanidade nas suas marchas e contra-marchas. Não acredito seja ele um manancial de lições, especialmente literárias. Aqui paro, para bem frisar, com a maior força de expressão que me seja possível: Não comprendo que o clássico seja um eterno motivo literário. Porisso, não posso comprender escritores dos nossos dias se plasmando, numa irritante e desprezível cópia servil, sobre os estilos dos velhos ecritores. Digo mais claro: não posso admitir, por exemplo, na língua portuguesa, reproduções do estilo de Vieira e outras sumidades da língua. E tão errado anda quem assim pratica, como quem, com a insânia modernista, anda a escrever segundo a fala - fala errada, pobre, mesquinha e vil - do pobre povo. Nunca, na verdadeira literatura, se escreveu consoante este falar. O pobre povo, a classe dos que não se educaram somente porque... porque, ora... porque não teve meios... porque é classe pobre... não pode nem deve ser imitada. Um escritor russo na Inglaterra, estudando Lenine pelo estilo, concluiu que esse revolucionário tinha um modo de escrever tão escorreito e correto que há de ficar clássico na língua russa. É que não se pode imitar o pior. Uma justa organização social deverá elevar o nível mental e social do pobre povo, fazendo-o escrever e falar bem. E jamais, haveremos de, por uma cretiníssima mística revolucionária, ou por uma visão estrábica da literatura, baixar até a miséria e à fala desengonçada e cassange do pobre povo... Errados estão estes senhores, imitadores de mau modelo, como aqueles outros, mata-borrões de clássicos. O que menos se deve procurar num clássico é o estudo de formas literárias para imitá-las: o seu grande valor deles, é um valor histórico, documentário, humano e psicológico, de altas conclusões filosóficas e políticas, sem que, entanto, para o estudo da evolução de uma língua, se despreze o seu aspecto literário. Entre clássicos e modernos interpõe-se uma natural evolução gramatical e estilística, e uma naturalíssima evolução de temas e de assuntos. E aqui bate a nota das diferenças: os temas diferem, como a vida, e trazem para o estilo um novo carregamento de palavras, de frases vivas que devem figurar no acervo da lingua renovada, acrescida e evolvida.

Contra a servil imitação puramente literária do clássico está a moderna insurreição daqueles que não poderiam ficar imóveis à sua contemplação. Mas caminham os modernos em extremo oposto: abandonaram, desprezaram, relegaram os velhos e bons clássicos. Destruir, eliminar, está bem, o velho inútil que teima em perpetuar a sua esterilidade. Mas fazer ruir, como vândalos, o testemunho do passado, pelo qual este se nos liga, sem o qual é impossível conhecê-lo e até conhecermos-nos, numa renegação estúpida, é demência... Delírio é, de fato, o desses literatos que, no Brasil especialmente, nestes últimos vinte anos, pretenderam em palmar o leme da inteligência, erguendo-se contra o bom velho clássico. Mas parece que já estão bem castigados. São verdadeiros "muertos vivos", desorados a plena juventude. Poucos ficarão. E, esses poucos, serão talvez amostras de sólida incultura e estrambótica falta de gosto e de talento. Produziram inviavelmente. É que lhes faltou estudo e caráter intelectual. Que longe andou, no Brasil, esta geração chamada modernista, daquela tão rudemente atacada que, de verdade, teve os seus graves defeitos, - escrava da forma, fascinada pelas imitações clássicas - mas teve a honestidade dos estudos sérios! Refiro-me àquela plêiade que, especialmente, se congregou nos anos iniciais da Academia de Letras, com Rui, Nabuco, Euclides, Machado, Laet, João Ribeiro e outros. (É verdade que, posteriormente, nela se aninharam tipos de pouco ou nenhum valor, entre os quais se deve destacar a desse falsário, o sr. Gustavo Barroso).

Mas, se quisermos renovar-nos temos de começar pelos alicerces. Estes, estão no passado. E o passado deve ser reestudado para conhecimento, como fonte, Muitas vezes até ele pode instruir pela sua face negativa. Dizem que um grande político aconselhava o estudo da Comuna de 70 para se aprender como não se deve fazer uma revolução. O estudo do passado está nos velhos clássicos. E estes nos fazem falta.

Mas, como fazer-se a leitura clássica? Aqui, o cordial da questão. That is question. Para todas as interrogações, sempre a frase do solilóquio tenebroso da boca pressága de Hamlet. Lê-los, aos clássicos, no original, coisa impossível ao homem mais culto. Então, temos de recorrer às traduções, e, principalmente àquelas que se consagraram pela sua fidelidade e por outras virtudes, como sejam, clareza, estilo, etc.

Não podemos ler, entanto, do velho ou do novo, o que está traduzido recentemente no Brasil. O bas-fond dos dicionários ainda não registra o adjetivo que deveria qualificar os tradutores e as traduções feitas nestes últimos anos entre nós. Qualquer palavrão, daqueles, tipo estampido, que jogam para longe com o melhor da honra, ainda não serviria para imprimir sobre tais tradutores e tais editores a marca do desprezo e da justa infâmia. Uma polícia literária - que já se faz mister, com urgência, entre nós - deveria mandar incinerar o montão desses desprestígios intelectuais e riscar da nossa vida mental esses livros e esses autores, além de outras penas que poderiam caber aos bárbaros comerciantes de livros que, por justiça, deveriam ir às galés.

Diante, pois, da impossibilidade de ler-se o velho em novas traduções, impõe-se o aproveitamento dos antigos textos. Este é fenômeno que se observa nos grandes centros culturais do mundo. Primeiro, a faina das reedições da básica produção cultural da humanidade. Depois, em textos nus ou anotados, de excelentes edições críticas, o reaproveitamento de velhas e magníficas traduções, cuidadosamente revistas e modernizadas. Exemplifiquemos: clássicos nacionais e estrangeiros são ressuscitados e reeditados em língua inglesa. nessas duas estupendas publicações: A Modern Library Giant, New York e a Everyman’s Library e estas últimas já vão por mil e tantos volumes. Primores editoriais, gráfica, tipográfica, literária e criticamente, são os clássicos franceses e internacionais da Bibliothèque de La Pléiade, editados pela Librairie Gallimard, Paris. Ainda em França, além destes, há a vasta biblioteca dos clássicos Garnier. Os italianos se saem com aquela finura florentina das edições clássicas de A. Mondadori. Em Espanha, antes da catastrófica vitória de Franco, o cuidado retilíneo das edições de Aguilar, e as mais antigas, de Perlado. Edições dc grande alcance fazem-se, embora sem luxo, no México, com a Editorial Seneca, no Chile, com a Tor, e na Argentina, com a Espasa e o trabalho formidável da Losada. Em Portugal, reedições bem cuidadas e populares, são as da Livraria Sá da Costa.

E o que se verifica nestas ultra-modernas e cuidadosas edições? A honestidade mais intransigente dirige a orientação dos seus organizadores. Antigas traduções clássicas estão sendo reestampadas. A Gallimard reedita Plutarco na velha tradução - 1559 - de Amyot e, entre as muitas, antigas e modernas, preferiu a tradução francesa do Quixote, a cargo de Oudoul - 1615 - cuidadosamente revista por Jean Cassou. A Losada, de Buenos Aires, reedita Kant - A Crítica da Razão Pura - na tradução, de 1883, do cubano José del Perojo. O Plutarco da sua edição é a tradução de Antonio Rans Romanillos, de 1821 e as Tragédias de Sófocles se reeditam na versão de 1880, de Fernando Segundo Brieva Salvatierra.

Anos e anos passei-os na pesquisa bibliográfica de diferentes matérias. Entre as por mim aprofundadas, está a das velhas traduções boas e clássicas da língua. Um dia contarei o meu trabalho e publicarei, entre outras, esta bibliografia. E ao encetar estas edições recorri a elas. São primores que desentranho ao arquivo do esquecimento. Se têm contra si uma língua velha - dona Carolina demonstrou, aliás, que no século XII as palavras mais comuns da nossa língua já estavam formadas e em uso - é perfeitamente inteligível e sempre, além de saborosa, documental, tendo a seu favor o ativo formidável da fidelidade, do cuidado e da clareza. Naturalmente precisam de uma revisão, que não lhes sacrifique o texto, que não lhes prejudique a língua, mesmo prisca. Em tradução exige-se, antes de tudo e sobretudo, fidelidade e mais fidelidade, e esta, têm-na as velhas versões no seu maior grau. Como apurar isto? Facilmente: confrontando os textos. (Em geral, essas traduções vêm acompanhadas do texto original).

Ademais, se a nossa época está dominada pela preocupação de ordem científica, - chegando aos exageros do cientificismo, - os séculos passados foram dominados pela preocupação literária e histórica. Com muito acerto dizia Lord Lytton: "Das letras, os antigos; das ciências, os modernos". Muito ao justo vem a citação, eis que, de fato, sem as preocupações de ordem científica que nos absorvem, eram os velhos mais cuidosos da expressão literal e literária do seu pensamento no que diz respeito à propriedade, ajuste das palavras e meneio das frases. Pode-se mesmo dizer que a língua se formou com eles. Intelectualmente, era essa a sua função. E sobre o conhecimento do próprio idioma, ainda se agregava o conhecimento da língua e da literatura ditas clássicas, especialmente da grega, latina e hebraica. Com efeito, eram eles apuradamente sabidos nesses idiomas, quando não mesmo eméritos latinistas, helenistas e hebraizantes. Montanhas de documentos literários, em escritos originais, traduções, versões, textos, dicionários, léxicos, gramáticas, nos ficaram. Tinham lazeres e propósitos nessas humanidades e, com o estudo das matemáticas, da teologia e da filosofia, eram essas, quase exclusivamente, as suas atividades. Daí, as linhas perfeitas dos seus escritos, que se refletem, também, nas suas ótimas traduções. As recentes descobertas históricas que podem modificar os antigos textos, não os modificam de tal modo que as velhas traduções fiquem inaproveitadas.

Em contraposição formal a este honesto proceder tivemos, nos recentes tradutores, analfabetos até a medula dos ossos, o aviltamento da língua, o rebaixamento criminoso do sentido, o desfazimento do conteúdo ideológico, a ignorância do idioma a traduzir e a fúria mercantil dos editores. Levados de todas estas razões foi que resolvemos reaproveitar os velhos textos em velhas traduções... Perdoe-se-nos o irônico recuo...

Já nestas nossas edições demos um pano de amostra do quanto valem as traduções reaproveitadas. Todas, primorosas. E aqui te damos, leitor, esta outra, na língua fiel e cristalina do gramático e historiador da nossa literatura, de Francisco Sotero dos Reis, dos Comentários de Cesar.{1} É mais uma jóia que engastamos na nossa série clássica "Os Mestres do Pensamento".

Odisséia de Homero - Livro IV

Já no vale da grão Lacedemônia,
Em casa o Atrida glorioso encontram
Com pompa a celebrar do filho as núpcias
E as da filha sem pecha. Em leves carros
5 Ia enviá-la à Mirmidônia corte,
Ao do Rompe-esquadrões herdeiro Pirro,
De Ílio cumprindo o juramento sacro.
Do Espartano Aléctor une uma virgem
Ao forte Megapentes, que uma escrava
10 N’ausência lhe pariu: de Helena prole
O Céu não lhe outorgou, depois da amável
Hermíone, rival da loura Vênus.
     No amplo alcáçar opíparo convívio
Deleita a cidadãos e a forasteiros,
15 À lira canta um músico divino,
Dous bailadores a compasso pulam;
Mas o coche ao vestíbulo e o Nestório
E Telêmaco estão. Pajem do Atrida,
O bravo Eteoneu, que os observava,
20 De povos ao pastor a informar veio:
“Dous hóspedes, quiçá de Jove garfos,
Temos: desatar cumpre a veloz biga,
Ou mandá-los, senhor, para outro asilo?”
     “Dantes eras, Boétidas, sisudo,
25 O flavo rei troou; mas louquejaste,
Compassível discurso. Ah! quantas vezes
O pão comi da mesa do estrangeiro!
De novas aflições me afaste Jove!
Solta a parelha, os hóspedes convida.”
30 Eteoneu chama os fâmulos, que o seguem:
Aos suados corcéis, do jugo livres,
Meiam cevada e espelta a manjedoura;
À parede luzente o carro apoiam;
Introduzem na régia os peregrinos,
35 Régia brilhante como o Sol e a Lua.
     Já farta a vista, em limpa cuba os lavam
E ungem de óleo as escravas, que, em felpudos
Albornozes, e túnicas macias,
Do soberano a par os apoltronam.
40 De gomil de ouro às mãos verte uma delas
Água em bacia argêntea, a mesa lustra,
Que enche a modesta afável despenseira
De pães e das presentes iguarias;
Escudelas de várias novas carnes
45 O trinchante apresenta e copos de ouro.
Dá-lhes a destra e fala Menelau:
“Comei, saboreais; depois da ceia,
Saberemos quem sois. De escura estirpe
Certo não vindes, mas de heróis cetrados:
50 Gérmen vil não rebenta em plantas nobres”
     Aqui, tergo bovino assado e gordo.
Seu quinhão de honra, aos hóspedes oferta,
Que ao regalado prato as mãos estendem.
Refeitos já, Telêmaco ao Nestório
55 Inclinou-se em voz baixa: “Considera,
Amigo da minha alma, como ecoa
E esplende a sala, em bronze, em prata, em ouro,
Em electro e marfim! Do interno Olimpo
É tal o adorno imenso: espanta olhá-lo.”
60  Menelau, que o percebe, acode: “Filhos,
Ninguém se iguala a Jove na opulência;
Eterno é seu palácio. Uns nos haveres
Superam-me, outros eu: mas que infortúnios
Oito anos carreguei, vagando os mares!
65 Vi Chipre, vi Fenícia, vi o Egito,
A Etiópia, a Sidônia, Erembos, Líbios;
Onde aos cordeiros nascem presto os cornos,
E há três partez a ovelha anualmente:
Lá senhor nem zagal tem míngua nunca
70 De queijo e carnes e mungido leite.
Enquanto eu cumulava tais riquezas,
Por dolo da consorte o irmão foi morto,
E elas na amarga dor não me consolam.
Ter-vos-ão vossos pais, quem quer que sejam,
75 Contado os meus pesares: de Ílio em cinzas
O precioso espólio os não compensa.
Com pouco no meu lar me contentava,
Se incólumes vivesse os que remotos
Da Argólida ubertosa lá caíram.
80 Amiúde, sentado a lamentá-los
Saudoso verto lágrimas que enxugo,
Pois viver não podemos de tristezas;
Porém choro um mormente, e o recordá-lo
O sono tira-me e o sabor, dos Gregos
85 O mais acérrimo e constante, Ulisses.
Quantas penas o fado reservou-lhe,
Quantas a mim também na ausência longa
Se respira ignoramos; e o pranteiam
O decrépito pai, a honesta esposa,
90 Tenro o filho Telêmaco deixado.”
     À lembrança de Ulisses, água chove
Dos olhos do mancebo, que às mãos ambas
Esconde-os n’aba do purpúreo manto:
Menelau o descobre; em si reflete
95 Se o deixa declarar-se, ou prosseguindo
Lho pergunte e se explique. Entanto, Helena
Do alto assoma camarim fragrante,
Qual Febe de arco de ouro: Adestra logo
Chega-lhe uma poltrona, traz-lhe Alcipe
100 De lã mole tapete, e Filo o argênteo
Rico açafate dádiva de Alcandra,
Mulher de Pólibo, o da Egípcia Tebas,
Em maravilhas célebre. Houve dele
O flavo rei de prata duas tinas,
105 Duas trípodes e áureos dez talentos;
Houve de Alcandra Helena roca de ouro,
De ouro com orlas e redondo embaixo
O açafate que Filo apresentou-lhe
De preparado fio, a roca em cima
110 E roxa lã. No assento e de escabelo
Aos pés Helena, a Menelau inquire:
“De Jove aluno, que hóspedes nos honram?
Quer acerte, quer não, falar desejo:
Tanto não vi, de vê-lo estou pasmada,
115 Mulher nem homem semelhar-se a outrem!
Aposto haver Telêmaco ante os olhos,
De Ulisses ramo, que o deixou de berço,
Quando magnânimo entre os nobres Graios
Foi debelar, por minha culpa, Tróia.”
120 E o marido: “Consorte, o mesmo cuido.
As mãos tem dele e pés, cabelo e testa,
O penetrante olhar; do herói me lembra,
Do que por mim sofreu, do que inda sofre:
Há pouco o moço, em lágrimas desfeito,
125 No purpurino manto as escondia.”
Pisístrato ajuntou: “Pastor de povos,
Ele é sim, que modesto aqui primeiro
De interpelar se peja a um rei tamanho,
Cuja encantada voz nos regozija.
130 O ancião Nestor mandou-me acompanhá-lo;
Vem pedir-te ou socorros ou conselho;
Sendo ausente seu pai, na própria casa
Ah! padece, e lhe faltam protetores,
Falta-lhe povo que remova o dano.”
135 E o rei: “Que! no meu teto o filho tenho
De quem por mim correu perigos tantos!
Sobre os outros heróis o amava eu sempre,
Se feliz travessia às naus veleiras
Nos concedesse o próvido Satúrnio.
140 Cidade evacuando a mim sujeita,
Paços lhe erguera, e de Ítaca ele a gente,
Família e bens à Argólida passava.
Em contínua aprazível convivência,
Nada nos separava, antes que a morte
145 Nos cobrisse de trevas. Mas o Olímpio
Tal dita inveja, nega-lhe a tornada.”
Gera-se um vivo pranto: Helena chora,
Chora o esposo e Telêmaco; o Nestório,
Não enxuto, recorda-se de Antíloco,
150 Morto às mãos de Mênon da Aurora filho,
E bradou: “Prudentíssimo aclamar-te
Nestor em nossas práticas saía;
Digna-te ouvir meu parecer, Atrida:
À mesa nunca choros me recreiam,
155 Mas na alvorada removê-los cabe;
Só consagram-se aos míseros defuntos
Cortada a coma e lágrimas sentidas.
O irmão perdi também, que reconheces
Não era o mais imbele: ouvi que a muitos,
160 Pois lá não fui, se avantajou garboso
Velocíssimo Antíloco e bizarro.”
     Atalha o Atrida: “Em obras e palavras
Prudência inculcas de maduros anos;
Saíste ao celso pai, querido jovem.
165 Fácil o sangue de um mortal se estrema
A quem ditoso berço e casto leito
O Satúrnio fadou; como o Nelide,
Que em velhice pacífica desliza
Entre guapos herdeiros valorosos.
170 Mas suspenda-se o luto; as mãos se lavem,
Toca a cear. Telêmaco à vontade,
Raie a manhã, conversará comigo.”
     Água ministra Asfálio, atento servo;
Deitam-se os convidados às viandas.
175 Helena al excogita: anexa ao vinho
De nepentes porção, que aplaque as iras
E as tristezas desterre; o que a bebesse
Não brotava uma lágrima no dia,
Por mãe nem genitor, irmão nem filho,
180 Que visse degolar. De Jove à prole
Dera bálsamos e ervas Polidana,
De Fono Egípcia esposa, cuja terra
Os reproduz saudáveis ou nocivos,
E onde o médico excede os homens todos
185 E de Péon descende. Helena exclama,
Preparada a poção: “De heróis procedem,
Sim, divo Menelau; mas poderoso
Dispensa o Eterno as mágoas e os prazeres.
Discursando o festim saboreemos;
190 De gratas narrações vou deleitar-vos.
Todas não posso referir proezas
Do sofrido varão durante o assédio;
Onde os Aqueus mil transes aturastes;
Mas uma contarei. De chagas torpes
195 E andrajos desfeado, qual mendigo,
Em Ílio introduziu-se, e em pobre escravo
Da mesma frota Argiva disfarçou-se.
Por mim só conhecido, ele às perguntas
Me quis tergiversar; mas, quando ao banho
200 O ungi, vesti-o. e lhe jurei segredo
Até que aos pavilhões e às naus voltasse,
Me revelou dos Gregos os projetos.
Alguns matando à espada, cheio foi-se
De informações. As Teucras ululavam;
205 Eu me alegrei, pois já de novo o peito
Patrizar me pedia, arrependida
Sentindo o haver, a impulsos da Cipônia,
Largado a casa, a filha, o toro, o esposo,
Que em talento e beleza a ninguém cede.”
210 O marido aplaudiu-a: “Sim, consorte,
Muito hei peregrinado, heróis vi muitos;
O coração de Ulisses nenhum tinha:
Paciente, engenhoso, e forte e sábio,
Quanto ideou, quanta mostrou constância,
215 No cavalo artefato, em que os melhores
Clade e exício aos Trojúgenas levamos!
Com Deífobo divino ali vieste,
E em seu favor um nume te inspirava;
Em três giros, palpaste a cava insídia,
220 E com voz da mulher de cada chefe
Os nomeavas todos. Eu no centro
E Tidides e Ulisses te escutamos:
Surdir os dous ou responder quisemos;
No ímpeto e fogo Ulisses nos conteve.
225 Calam-se os mais, ia falar Anticlo;
Com mãos robustas pertinaz Ulisses
Lhe aperta a boca, o exército preserva,
Até que enfim reconduziu-te Palas.”
     Eis Telêmaco: “É duro que as virtudes,
230 Sublime rei, da Parca o não livrassem,
Qual se tivesse um coração de ferro.
Mandai-nos ora aonde ambos logremos
As delícias do sono.” — Presto Helena
Desdobrar faz ao pórtico umas camas
235 De almofadas e espessos cobertores
E purpúreos tapetes: logo as servas
Aparecem de facho, e tudo aviam;
Conduz arauto os hóspedes; lá dormem
O herói Telêmaco e o Nestório egrégio.
240 Pernoita Menelau na interna alcova,
E a mais gentil mulher nos braços dele.
     Do éter gênita, surde a roxa aurora:
Desperta, veste-se o belaz Atrida;
Cingindo a espada, as nítidas sandálias
245 Calça, e ao pé do Ulisseida vem sentar-se:
“Que precisão, Telêmaco, rasgado
O equóreo dorso, te conduz a Esparta?
É pública ou privada? eia, franqueza.”
     Prudente o moço: “A ti, senhor, pujante,
250 Vim para de meu pai colher notícias.
Enchem-me a casa, arruínam-me a fazenda,
Matam-me negros bois, e ovelhas pingues
Os procos de Penélope, vorazes,
Arrogantes, violentos e importunos.
255 Conta-me, eu te suplico, a morte sua,
Se a viste ou referiu-te um forasteiro.
Foi no ventre materno à dor votado!
A minha tu não poupes, nada ocultes;
E, o caro genitor se em tudo e sempre
260 Te era fiel na desastrosa guerra,
Isso lembre-te agora e não me iludas.”
     O Espartano suspira: “Oh Céus! cobardes
Ao tálamo aspirar de herói tamanho!
Se, em covil de leão depondo acaso
265 Os filhinhos de mama, o vale e monte
Lustra a corça a pastar, entrando a fera
Os esgana cruel: destarte Ulisses
Lhes dará morte certa. Ele se ostente,
Ó Jove, Palas, Febo, como em Lestos
270 Quando com Filomelides em luta,
O prostrou com prazer dos bravos Gregos:
A boda em breve acerba lhe seria.
Satisfazer-te vou no que me imploras;
Dir-te-ei sem rebuço quanto arcano
275 Aclarou-me o veraz marinho velho.”
     “Os deuses, que nos punem, de olvidá-los,
Impaciente no Egito me retinham,
Porque faltei com justas hecatombes.
Lá Faro surge à flor da azul campina,
280 De foz em fora, quanto em singradura
Marcha popa a que vente aura sonora;
Tem um porto seguro e boa aguarda,
E ao pélago os baixéis dali descendem.
Uns vinte dias, não soprando Eolo,
285 Que pelo undoso ponto os nautas leva
E a planície lhe encrespa, eu demorado,
Com poucas provisões, lassa a companha,
Desesperava já, quando Idotéia,
Do potente Proteu marinha prole,
290 Ocorreu compassiva a mim sozinho;
Que os mais de curvo anzol, do ventre urgidos,
De toda a ilha em derredor pescavam.
Acometeu-me a deusa: — “Estulto ou fátuo,
Ficas-te, hóspede, em mágoas te apascentas,
295 E enquanto aqui sem termo estás detido,
Langue e definha o coração dos sócios.”
     “Ó deusa, contestei, seja qual fores,
Por meu gosto o não faço, mas suponho
A celícola algum ter ofendido.
300 Ora dize, a imortais é claro tudo,
Quem assim me proibe o mar piscoso. —
     “Ela ingênua me foi: — Do Egito o velho,
De Netuno ministro, aqui se aloja,
Proteu meu pai, que as úmidas entranhas
305 Tem sondado e conhece. Há de ensinar-te,
Se obténs prendê-lo, como a rota sigas,
E se o queres também, de Jove aluno,
Os maus ou bons domésticos sucessos
Durante errores teus no instável pego —
310 Eu porém: — Com que insídias surpreendê-lo
Poderei, sem que fuja ao pressentir-me?
Não é para mortais vencer a numes. —
     “A guapa ninfa continua: Atende.
Ao meridiano Sol, do salso abismo,
315 Hirtas sobre a cabeça as fuscas ondas,
Surde o ancião de Zéfiro aos sonidos;
Numa espelunca dorme, e em torno juntos
Ápodes focas de Halosidna bela,
A exalarem ascosa maresia.
320 N’alva, hei de colocarte em sítio azado,
Com três que elejas da valente frota.
Seus ardis eu te expendo. Cinco a cinco,
Ronda e enumera as focas, e no meio
Deita-se qual pastor com seu rebanho;
325 Sopita-se depois. De jeito e força
Os agarreis, bem que anele escapulir-se;
E em serpe ao converte-se, em água, em fogo
Tende-o mais duro e firme, até que o velho,
Já volto à prima forma, a interpelar-te
330 Comece. Inquire então que nume avesso
Te fecha o mar piscoso. — Ei-la mergulha;
N’alma comoto, às naus varadas corro.
Depois da ceia, inteira a noite amena
Pela praia arenosa adormecemos.
335 “Já vermelha a manhã, do imenso lago
À borda chego a suplicar os deuses,
Mais três seguros destemidos sócios.
Para enganar o pai, do fundo a ninfa
De focas sai com frescas peles quatro;
340 Camas na areia escava, à espera tem-se;
Vê-nos enfim, nas camas nos concerta,
A cada qual em sua pele enfronha.
Tetra cilada! os focas trescalavam
Nutridos na salsugem: de um cetáceo
345 Quem pode ao pé jazer? útil a deusa,
Neutralizando o cheiro, doce ambrosia
Nos unta às ventas: A manhã passamos,
Com paciência os quatro; acima os focas
Surgindo, junto a nós se enfileiraram.
350 “Merídio vem Proteu; conta, examina,
Por nós principiando, o gado obeso,
E sem dar pelo engano ali se estende.
A vozearmos súbito o agarramos:
Sem lhe esquecer o ardil, muda-se o velho
355 Em jubado leão, drago, pantera,
Cerdo, riacho, ou tronco de alta copa;
Mas, com tenacidade urgido, o astuto
Lasso vociferou: — Que deus, Atrida,
A forçar-me instruiu-te? que pretendes? —
360 Mas eu: — porque me enganas, tu que sabes
Que ansioso estou sem termo aqui detido?
Ora dize, a imortais é claro tudo,
Quem assim me proíbe o mar piscoso? —
     “Devias, respondeu-me, antes do embarque
365 Sacrificar ao Padre e à corte sua,
Para alcançares próspera viagem.
Amigos não verás, nem pátrio alvergue,
Sem que ao Dial Egito rio volvas
E às divindades hecatombes sagres:
370 O teu desejo então será cumprido. —
     “Magoado por de novo irmos ao rio,
Longa árdua rota em borrascoso pego,
Inda insisti: “Proteu, quanto me ordenas
Preencherei; mas dize-me sincero
375 Se os Arquivos que em Tróia se apartaram
De Nestor e de mim respiram todos,
Se algum morte imprevista, após a guerra,
Teve a bordo ou nos braços dos amigos.
     Ele: — Indagas, Atrida, os meus segredos?
380 Olha que d’água os olhos não te banhem.
Dos livres da matança em que te achaste,
Só morreram dous chefes arnezados,
E um vivo está no meio do Oceano.
Ante as remeiras naus, bebendo as ondas,
385 Ajax de Oileu da Parca foi preado:
Primeiro às pedras o lançou de Giras
Favorável Netuno, onde escapara
Mal grado a Palas, se ímpio não bramasse
Que era salvo apesar dos mesmos deuses;
390 Eis, da blasmêmia azedo, o rei dos
Pega do seu tridente e fere a penha
Aos pés de Ajax, que se abismou no fundo
Com porção do rochedo. Em cavo bojo
Foi por Juno Agamemnon preservado;
395 Mas, ao dobrar o Maléia, uma tormenta
O arrojou pesaroso ao campo extremo,
De Fiestes morada, ora de Egisto:
Seguro cria-se, e mudado o vento,
Recolhidos os deuses, o chão pátrio
400 Beija alegre e o ensopa em quente choro.
Um vigia o avistou, que o ano inteiro,
De dous áureos talentos com promessa.
Pôs de atalaia Egisto, e que era atento,
Por temer que, aportando inopinado,
405 O herói do seu valor se recordasse;
Denunciá-lo foi. Súbito Egisto,
Insidioso, valentões da plebe
Vinte escolheu, que estavam de alcatéia,
Aprestado um banquete em outra sala.
410 O traidor, meditando, em coches parte
O Atrida a convidar, que à ceia incauto,
Como a rês no presepe, é trucidado;
Nem sócio deste, nem de Egisto mesmo
Poupam na régia os brutos matadores. —
415 “Cai na areia em pranto, e compungido
Viver nem ver queria ao Sol a face.
De prantear cansei-me e rebolcar-me,
E então Proteu: — O luto é sem remédio,
Basta; a Micenas corre; ou vivo ou morto
420 Ou de Orestes punido, ao menos chegues
Para os seus funerais. — Isto me acalma
O generoso peito, e veloz falo:
— Pois bem, doa-me embora, esse outro ou preso
Ou morto no Oceano me declares. —
425 “Prossegue o vate: — É o Ítaco Laércio.
Na ilha o vi desfeito em grossas lágrimas.
Por Calipso retido, e sem navio
Para vogar no páramo salgado.
Genro de Jove, tu de Helena esposo,
430 Morrer em campo Argólico não deves,
Mas, junto ao flavo Radamanto, o Elísio
Deleitoso habitar, confins da terra;
Onde os humanos docemente vivem,
De temporais, de neves, de invernadas
435 Sempre isentos, e de auras do Oceano
Fresco bafejo e respirar suave. —
Então sumiu-se no espumoso ponto.
     “Com meus divinos sócios, no embarcarmos,
Ia deliberando, e espessa a noite,
440 Finda a ceia, no seco repousamos.
No matutino albor, em nado os lenhos
De amuradas iguais, mastros eretos
E tendidas as velas, de seus bancos
Batem remeiros o espumoso pego.
445 De novo ao rio Egito navegamos,
E apaziguado o Céu com sacrifícios,
Do irmão levanto em honra um cenotáfio.
Prosperamente os ventos assoprando,
Mandam-me os deuses à querida pátria.
450 Agora, fica tu comigo uns dias,
Dez ou doze; haverás válido coche,
Três corcéis, linda copa, que, em sagradas
Libações, deste amigo te recorde.”
     “Não me detenhas replicou Telêmaco.
455 Um ano, deslembrado o lar paterno.
Dessa boca eloqüente aqui pendera;
Mas, já com tédio, na divina Pilos
Meus sócios, Menelau, por mim suspiram.
Dás-me um tesouro; eu deixo-te os cavalos
460 Nas mimosas campinas em que imperas,
Onde à larga germinam loto, junça,
Trigo, cevada e espelta; lá nem tenho
Vastos circos nem prados: só de cabras,
Não de poldros nutriz, me é cara a terra;
465 Pois, Ítaca mormente, em roda as ilhas
Do nosso mar em pastos não verdejam.”
     Ri-se o pugnaz Atrida, e a mão lhe cerra:
“És de bom sangue, acertas. Posso, filho,
Pela mais bela a dádiva trocar-te
470 Por argêntea cratera de áureas bordas,
Lavor exímio de Vulcano mesmo:
Foi do rei dos Sidônios glorioso
Prenda, ao nos despedirmos; de hoje é tua.”
E entanto em sala interna resplendente
475 Concorrem: quem ovelhas, quem trazia
O vigoroso vinho; o pão, de fitas
Ornadas moças. Lauta a ceia aprestam.
     Mas de Ulisses na régia, ao disco e dardo
Os procos num calçado se exerciam
480 Pátio, que da protérvia era o teatro;
E, ao pé de Antino e Euríniaco deiformes,
Indagou Noémon, de Frônio garfo:
“Sabe-se, Antino, da arenosa Pilos
Se Telêmaco é vindo? Em meu navio
485 Foi-se, e a Élide vasta ir necessito;
Éguas doze lá tenho e mus bravios,
E alguns desejo acostumar ao jugo”.
     Atônitos calaram, que o supunham
Em Pilos não, mas a velar nos prédios,
490 No pastor e na grei. De golpe Antino:
“Quando, como partiu? seletos jovens
De Ítaca tem consigo, ou tão somente
Mercenários e escravos? Que ardileza!
Fala a verdade; a nau, por força a deste,
495 Ou cedendo a seus rogos voluntário?”
     Súbito Noémon: “Fi-lo espontâneo.
A preces de homem tal quem não cedera,
E em tanta angústia? A gente mais luzida
E a Mentor vi no embarque, ou certo um nume,
500 Que em tudo o parecia. Mas, oh! pasmo,
O divino Mentor bem que embarcasse,
Na manhã de ontem me encontrei com ele.”
Disse, e à casa paterna recolheu-se.
     Os audazes, comotos e aterrados,
505 Se abstêm dos jogos. O Eupiteio ruge,
De rábido furor, olhos em brasa:
“Oh! que atrevida empresa! de acabá-la
Julgado era incapaz: mocinho, às ondas,
A despeito de nós, deitou navio,
510 E com gente escolhida foi-se impune.
Este começo nos agoura danos,
Se o não tolhe o Satúrnio. Já, ligeiro
Baixel de vinte remos; que, à passagem
De Ítaca e Samos numa espera, conto
515 Que a viagem por seu pai lhe seja amarga.”
Aprovam todos e ao palácio montam.
     Médon, que ouviu de fora o atroz conluio,
Pelo pátio açodou-se a anunciá-lo,
E Penélope indaga: “Eles te enviam,
520 Para que as servas do divino Ulisses
Terminem seu trabalho e a mesa ponham?
Basta de importunar-me e a quaisquer outros.
Esta lhes fosse a derradeira ceia!
Ó vós que ao meu Telêmaco amiúde
525 A substância esbanjais, nunca em meninos
Quem seu pai era aos vossos escutastes?
Brando ao povo, em palavras comedido,
Justo e humano, alguns reis não semelhava
Que ódio e favor dispensam caprichosos.
530 Ah! vós lho agradeceis com torpes feitos.”
     E o sensato Médon: “Fosse, ó rainha,
Esse o mal todo! os bárbaros meditam,
Jove o remova, assassinar teu filho
Ao regresso de Pilos e de Esparta,
535 Aonde foi colher de Ulisses novas.”
     Do abalo sufocada, esmorecida,
Joelhos frouxos, lágrimas nos olhos,
Estúpida soluça e balbucia:
“Que! nada urgindo, cavalgou meu filho
540 Num dos corcéis do mar que a salsa imensa
Via atravessam! Nem pretende ao menos
Renome entre os humanos!” — “Eu ignoro,
Torna Médon, se um deus, se impulso próprio
Fê-lo ir do pai no alcance, ou vivo ou morto.”
545 Nisto, o arauto a seu posto recolheu-se.
     Bem que a sala em cadeiras abundasse,
Atormentada ao limiar sentou-se
Da câmara custosa, a lastimar-se;
Em ais cercam-nas as servas quantas eram,
550 Velhas e moças, a quem diz chorando:
“O Céu me aflige, ó caras, mais que a todas
Que nasceram comigo e se criaram:
Meu marido perdi, leão no esforço
De virtudes complexo, espelho aos Dânaos,
555 De Hélade e Argos espanto; ora o só filho
Preia inglório será das tempestades.
Cruéis, vós que o sabíeis, à partida
Acordar-me do leito não viestes:
Se eu da sua intenção fosse inteirada,
560 Ele ou não ia ou morta me deixara.
Uma aqui chame a Dólio, o velho escravo.
Paterno dom, cultor dos meus pomares;
Corra, informe a Laertes, e este ao povo
Deplore a trama que extinguir a estirpe
565 Dele e de Ulisses divinal promove.”
     A ama Euricléia então: “Querida ninfa,
Mates-me a duro bronze, ou bem me poupes,
Não te oculto, ciente o pão e o vinho
Eu mesma forneci; jurei sagrado
570 Por doze dias, salvo ou pressentires
Ou vê-lo desejares: tinha medo
Que te ofendesse o pranto as faces belas.
Tu purifica-te e alvas roupas cinge,
No alto com tuas fâmulas implora
575 A Tritônia que o filho te conserve;
Não contristes o velho. Eu não presumo
Que o Céu deteste a geração de Arcésio:
Sequer nos restará quem nesta régia
Mande em longínquos ubertosos campos.”
580 Com isto aliviada, enxuga os olhos;
Sobe, e se purifica e se reveste,
Ora com suas fâmulas, esparso
De açafates o farro: “Ouve-me, ó gérmen
Do aluno e Amaltéia; se o prudente
585 Ulisses te queimou de ovelha ou touro
Gordas pernas, conserva-lhe o só ramo,
Daqui me afasta os arrogantes procos.”
Geme e ulula; aceitou-lhe os votos Palas.
     Pelos escuros átrios em tumulto,
590 Sem suspeita, os protervos se diziam:
“Certo, ignara do risco de seu filho,
Cobiçada a rainha apresta as bodas.”
Mas Antino os atalha: “Endiabrados,
Calai-vos, pode alguém denunciar-nos;
595 Tácitos nosso plano executemos.”
     Vinte escolhendo, lesto à praia os guia;
Eis, o baixel em nado, o mastro erigem,
Remos aos bordos em correias atam,
Armas carregam valorosos pajens,
600 E dos envergues fora as brancas velas,
Comem de largo, esperam que anoiteça.
     Penélope, em jejum, no andar cimeiro,
Só no inocente cuida, se ele escape,
Ou se aos golpes sucumba dos traidores:
605 Como temendo, em círculo doloso
De montanheses, o leão cogita,
Ela pensa e repensa, e recostada
Lhe amolenta as junturas meigo sono.
Palas, que isto aguardava, uma aparência
610 Da Icária Iftima, em Feres com Eumelo
Casada, aos paços de Laércio expede,
Porque o pranto a Penélope refreie;
Na câmara a visão, por entre o loro
Da fechadura entrando, à cabeceira:
615 “Adormeces, Penélope, lhe brada,
Aflita e mesta? Os numes não permitem
Essa tristeza; reverás teu filho,
Que nunca os ofendeu nem levemente.”
     Às portas já Penélope dos sonhos
620 Adormentada, fala: “A que vieste,
Irmã, que, ao longe moradora, nunca
Me visitavas? queres que eu deponha
As dores e aflições que n’alma sinto?
Perdi meu bom marido, exemplo aos Dânaos,
625 Honra da Grécia: agora o só renovo,
Inexperto em negócios e em trabalhos,
Meteu-se em cava nau. Mais choro a este;
Que se afunde, ou padeça em clima alheio,
Temo e tremo: inimigos o insidiam,
630 E antes que volte aqui matá-lo anseiam.”
     “Ânimo, ajunta, o fusco simulacro;
Não te assustes que o segue uma de todos
Aparecida: a consolar-te as penas
A potente Minerva a ti mandou-me.”
635 “Se és deusa, diz Penélope, ou da deusa
Ouviste a voz, do outro infeliz me informes:
À luz do Sol acaso inda respira,
Ou jaz defunto na Plutônia estância?”
     A sombra contestou: “Se é morto ou vivo
640 Omito, é vão discurso.” E como vento
Por entre a fechadura esvaeceu-se.
Desperta a Icária, exulta ao ver o sonho
Da noite na calada sobrevir-lhe.
     A úmida via os pérfidos sulcavam,
645 De Telêmaco o exício ruminando.
Fica entre Samos e Ítaca fragosas
Ásteris, ilha exígua, de pastagens,
De abras, de uma e outra banda, ao crime azadas,
Para a traição, de espreita, ali se escondem.


NOTAS AO LIVRO IV
9-21 - Diz Homero que uma serva, na ausência de Menelau, a este pariu um filho. Pretende M. Giguet que Megapentes nascera na velhice do pai; o que era impossível. Partido vinte anos antes e de fresco recolhido, ou Megapentes era gerado antes da expedição ou depois da vinda de Menelau: no primeiro caso, este era moço; no segundo caso, era Megapentes uma criança e não tinha idade para casar. Télugetos, segundo Hederico e os seus continuadores, significa: 1.º) e é o sentido próprio, nascido ao longe na ausência do pai; 2°) nascido na velhice; 3°) de mui tenra idade; 4.°) querido de seus pais. Pelo acima exposto, é evidente que o adotável é o primeiro. — Se, no verso 21, em vez de quiçá usasse eu de talvez, desagradável seria e duro: muito mau serviço fizeram os que afastaram da língua uma infinidade de palavras sonoras e expressivas.
32 - Espelta, de que já me servi em outras obras, spelta ou zea em latim, é uma espécie de trigo, e tem o mesmo nome em italiano, em castelhano e em português, posto que não venha em dicionário nosso: em francês, épeautre.
176 - Nepentes, adjetivo que significa sem dor ou que dissipa a dor, é tomado substantivamente por certa erva ou remédio que produzia o mesmo efeito.
219-221 - Cava insidia, significando o bojo do cavalo, é uma arrojada expressão, que eu não quis apoucar. - Acho razão em Rochefort quando opina que há interpolação nesta passagem, por ser indigno de Homero que Helena fosse contrafazer a voz das mulheres dos que estavam dentro do cavalo; e é tanto mais ridículo quanto é certo que essas mulheres não estavam em Tróia, nem os maridos podiam acreditar que elas, de um dia para outro, chegassem todas para os excitar. Conservo a passagem, não querendo ser tachado de omisso; mas não creio que tal qual fosse escrita pelo poeta.
299 - Algum, posto que venha posposto a celícola, não é em sentido negativo. Constâncio categoricamente afirma que homem algum significa homem nenhum; mas este erro grosseiro é um dos seus frequentes caprichos; nem ele cita, nem se podem citar exemplos, de autor que faça fé, em justificação do seu parecer: o único de Barros, onde houve a omissão de um non, está longe de contrabalançar os inumeráveis de Camões, Ferreira, Sá de Miranda, Côrte-Real Bernardes, Leão, Mausinho, Ordenações do Reino, e outros que alega Morais.
368-448 — O rio Egito que deu nome à região, ainda não se chamava Nilo no tempo de Homero; e esta é uma das razões que provam ter sido o poeta anterior a Hesíodo, que já usa do nome Nilo. — O verso 448 é um de Camões no seu episódio de Adamastor.
600-601 — Alguns vertem que os pretendentes amararam-se logo, soltaram as velas e esperaram pela noite: ora, eles esperavam que anoitecesse para partirem; não soltaram as velas, somente as desenvergaram e as tiveram prestes para à noite saírem imprevistamente; nem se amararam, somente se puseram de largo, o que é diferente: os navios, antes de largarem, costumam colocar-se um tanto afastados do porto. Ir para índice do livro.

A Odisséia de Homero - Livro I

Canta, ó Musa, o varão que astucioso,
Rasa Ílion santa, errou de clima em clima,

Viu de muitas nações costumes vários.
Mil transes padeceu no equóreo ponto,
5 Por segurar a vida e aos seus a volta;
Baldo afã! pereceram, tendo insanos
Ao claro Hiperiônio os bois comido,
Que não quis para a pátria alumiá-los.
Tudo, ó prole Dial, me aponta e lembra.
10 Da guerra e do mar sevo recolhidos
Os que eram salvos, um por seu consorte
Calipso, ninfa augusta, apetecendo,
Separava-o da esposa em cava gruta.
O céu, porém, traçou, volvendo-se anos,
15 De Ítaca reduzi-lo ao seio amigo,
Onde novos trabalhos o aguardavam:
De Ulisses condoíam-se as deidades;
Mas, sempre infenso, obstava-lhe Netuno,
Este era entre os Etíopes longínquos,
20 Do oriente e ocidente últimos homens,
Num de touros e ovelhas sacrifício
A deleitar-se; e estavam já no alcáçar
Do Olimpo os habitantes em concílio.
O soberano, a recordar Egisto
25 Do Agamenônio Orestes imolado,
Principia: “Os mortais ah! nos imputam,
Os males seus, que ao fado e à própria incúria
Devem somente. Contra o fado mesmo,
Do porvir não cuidoso, há pouco Egisto,
30 Em seu regresso o Atrida assassinando,
Esposou-lhe a mulher, bem que enviado
O Argicida sutil o dissuadisse:
— De o matar foge e poluir seu leito;
Senão, tem de vingá-lo, adolescente
35 Sendo investido no seu reino Orestes. —
Mercúrio o amoestou, mas surdo Egisto,
Os delitos por junto expia agora”.
A quem Minerva: “Sumo pai Satúrnio,
Jaz com razão punido esse perverso;
40 Todo que o imitar, com ele acabe!
Mas a aflição de Ulisses me compunge,
Que, há tanto longe dos amenos lares,
Em ilha está circúnflua e nemorosa,
Lá no embigo do mar; onde é retido
45 Pela filha de Atlante onisciente,
Que o salso abismo sonda, o peso atura
Das colunas que a terra e o céu demarcam.
A deusa com blandícias o acarinha;
De Ítaca ele saudoso, o pátrio fumo
50 Ver deseja e morrer. Não te comoves?
Irritou-te faltando, em sua amada
E em Tróia, com ofertas e holocaustos?”
E o Junta-nuvens: “Que proferes, filha,
Do encerro dessa boca? eu deslembrar-me
55 Do mortal mais sisudo, o mais devoto,
Aos celícolas pio e dadivoso!
Da terra o abarcador é quem o avexa,
Por ter do olho privado a Polifemo,
O mor Ciclope, que, num antro unida
60 A Netuno, pariu Toosa, estirpe
De Fórcis deus do pego insemeável.
O Enosigeu d’então lhe poupa a vida,
Mas de Ítaca o arreda. Provejamos
Na vinda sua; aplaque-se Netuno:
65 Só contra todos contender não pode”.
A Olhicerúlea: “Ó padre, ó rei supremo,
Se vos praz que à família torne Ulisses,
Da ínsula Ogígia à ninfa emadeixada
Mercúrio o intime, o herói prudente parta.
70 A Ítaca baixo a confortar o filho:
Os comantes Argeus convoque ousado;
Suste aos vorazes procos a carnagem
De flexípedes bois e ovelhas pingues.
Dali, na Esparta e na arenosa Pilos,
75 Do amado genitor se informe e indague,
E entre humanos obtenha ilustre fama”.
Já liga alparcas de ouro incorruptíveis,
Que a propelem como aura pelas ondas
Ou pelo amplo terreno; a lança empunha
80 De érea afiada ponta e desmedida,
Com que turmas de heróis desfaz metuenda,
Progênie de tal pai. Do Olimpo frecha;
Em Ítaca, ao vestíbulo de Ulisses
Tem-se, e de hasta na destra, parecia
85 O hóspede Mentes campeão dos Táfios.
Ao pórtico acha intrusos pretendentes
Sobre coiros de bois que morto haviam,
Os dados a jogar. Servos e arautos
Misturam nas crateras água e vinho,
90 Ou com povosa esponja as mesas pulem,
E partem nelas abundantes carnes.
Distante a vê Telêmaco deiforme:
No meio, taciturno e consternado
No genitor pensava, que expulsá-los
95 E reger venha o leme do governo.
Entrementes a avista, e não sofrendo
Por mais tempo de fora um peregrino,
Corre, aperta-lhe a mão, sua arma toma:
“Hóspede amigo, salve; o que precisas,
100 Depois do teu repasto o saberemos”.
Ei-lo encaminha a déia, e já na sala
Ante celsa coluna encosta a lança
À nítida hastaria, onde em fileira
As de Ulisses valente em pé dormiam.
105 Num trono a põe dedáleo de alcatifa
E de escabelo aos pés, senta-se perto
Em variegada sela; à parte ficam,
Para que, à bulha e ao trato com soberbos,
O hóspede o apetite não perdesse,
110 E do pai ele a folgo o interrogasse.
De gomil de ouro às mãos verte uma serva
Água em bacia argêntea, a mesa lustra,
Que enche a modesta afável despenseira
De pães e das presentes iguarias;
115 Escudelas de várias novas carnes
O trinchante apresenta e copos de ouro,
Que arrasa de almo vinho arauto assíduo.
Suspenso o jogo, os feros pretendentes
Ocupam já cadeiras e camilhas;
120 Dão água às mãos arautos, pão comulam
Servas em canistréis; atiram-se eles
Aos regalados pratos, e as crateras
Lhes coroam mancebos. Farta a sede,
Farta a fome, em prazer os embriagam
125 Música, dança, adornos de banquetes:
Cítara ebúrnea entrega um dos arautos
A Fêmio, que forçado ali tangia
E o cântico ajustava ao som das cordas.
Inclinou-se Telêmaco a Minerva,
130 Dizendo à puridade: “Hóspede caro,
Vou talvez enfadar-te? Eles só curam
De cantigas e danças, porque impunes
Comem do alheio, os bens do herói consumem.
Cuja ossada ou jaz podre em longes terras,
135 Ou rola entre maretas; ah! se o vissem
Cá reaparecer, mais que ouro e galas,
Planta leve amariam. Fado acerbo
Urge-o porém, e embora algum terrestre
A volta sua afirme, as esperanças
140 Murchas estão, nem luzirá tal dia.
Ora, quem és? de que família e pátria?
Com que gente vieste e em que navio?
Vindo a pé não te creio. Uses franqueza,
Hóspede me és recente ou já paterno?
145 A muitos nosso teto agasalhava,
E meu pai atraía os forasteiros”.
A de azuis claros olhos: “Não duvides,
Mentes sou, de ser nado me glorio
De Anquíale belaz, e os Táfios mando
150 Náuticos hábeis. Vim, com meus remeiros
Sulcando o negro pélago, a Temeses
De estranha língua permutar meu ferro
Pelo seu cobre: o vaso tenho surto
No Retro porto, fora da cidade,
155 Junto ao Neio frondoso. Antigo hospício
Me une a teu pai, e o diga o bom Laertes;
Herói que, é fama, a corte mesto esquiva
Em campo solitário, onde ama idosa
Lhe apresta a mesa, ao vir cansado e lasso
160 De amanhar fertilíssimos vinhedos.
Cuidei, corria voz, tornado Ulisses;
Mas os deuses o impedem, que inda vive
Em ilha de mar vasto circunfusa,
Por bárbaros detido e involuntário.
165 O que o Céu sugeriu-me, eu to assevero,
Se bem áugur não seja ou grã-profeta:
Não tardará; que, embora o tenham ferros,
Ardis cogita. Sê sincero; os olhos
E a cabeça tens dele, és tu seu filho?
170 Como agora freqüentes conversávamos;
Desde que para Tróia, entre os mais cabos,
Se embarcou, nunca mais nos avistamos”.
E o príncipe modesto: “Hóspede, é certo
Que minha mãe de Ulisses me diz prole;
175 Por si mesmo ninguém seu pai descobre.
Oh! gerado fosse eu de um mais ditoso,
Que em suas possessões envelhecesse!
A porvir de um herói, já que o perguntas,
Esse é desgraçadíssimo dos homens”.
180 E Palas: “Deu-te o Céu preclaro berço,
És da casta Penélope nascido.
Mas, dize, que festim, que turba é esta?
Para que a tens? são núpcias? é banquete?
Por escote o não fazem. Que insolência!
185 Qualquer homem de siso há de irritar-se
De os ver assim”. — Telêmaco prudente:
“Hóspede, honesta e rica era esta casa,
Quando aquele varão conosco estava;
Mas obscuro ocultá-lo aprouve aos deuses.
190 Menos dor fora se acabasse em Ílion,
Ou no meio de amigos triunfante:
Erigindo-lhe a Grécia um monumento,
Ao filho seu legara imensa glória.
As Harpias cruéis mo arrebataram;
195 Sem brilho algum morreu, só lutos, herdo.
Outros prantos o fado nos suscita:
Os chefes de Dulíquio ambiciosos,
De Ítaca rude e Samos e Zacinto
Pretendem minha mãe, que os não repulsa,
200 Bem que fiel tais himeneus deteste;
Famélicos o haver me dilapidam,
E malvados a morte me aparelham”.
Palas com dó: “Precisas de que Ulisses
A mão carregue sobre audácia tanta.
205 Oh! de seu paço à entrada aparecesse
De elmo, adarga e hastas duas, qual chegando
O vi de Éfira e de Ilo Mermérida,
Aonde fora numa nau veleira
Comprar veneno para ervar as setas;
210 Mas, como Ilo o negou temendo os numes,
Lho deu meu pai, que amigo em nossa casa
O regalou de saborosos vinhos:
Surdisse, e a boda amargaria aos procos.
Se cá deva o Laércio ou não vingar-se,
215 Arcano é divinal; tu considera
De enxotá-los o modo, eu to aconselho:
Em assembléia aos teus amanhã fala,
Atesta o Céu, despede esses intrusos;
A desejar Penélope outro esposo,
220 Torne a seu pai, que as núpcias lá celebre,
E um dote para a filha haja condigno.
Se outro cordato aviso adotar queres,
Navegues, a indagar de Ulisses novas,
Em ótimo baixel de vinte remos:
225 Talvez alguém te informe, ou soe o brado
Com que Jove aos mortais gradua a fama.
Interroga a Nestor primeiro em Pilos,
Na Esparta ao louro Atrida, que o postremo
Dos lorigados reis entrou na Grécia.
230 Vivo Ulisses, paciente um ano esperes;
Morto, regressa, um monumento exalça
E consagra-lhe exéquias dignas dele;
De ti novo marido a mãe receba.
Isto acabado, às claras ou por fraude,
235 Sério dos procos desfazer-te busca:
De brincos pueris não é mais tempo.
Ouves de Orestes o renome honroso,
Por ter vingado o pai no infame Egisto?
Sê no valor qual és no garbo e talhe;
240 Gabem-te, filho, as gerações futuras.
Vou-me à inquieta nau por minha ausência:
Tudo observes, amigo, e nada esqueças”.
E o moço: “Hóspede, os sábios teus conselhos
Preceitos são de pai, que eu n’alma guardo.
245 Mas demora-te ainda, a fim que um banho
O coração te alegre, e prenda exímia
Aceites hospital, que tu conserves,
Doce memória da amizade nossa”.
“Não me estorves, replica, ansioso parto.
250 A tua oferta para a volta aceito;
A Tafo hei de levá-la, e dignamente
Retribuir”. Eis voa a gázea deusa,
Águia Anopéia, infunde-lhe coragem,
Na alma avivando o pai. Crendo-a celeste,
255 O deiforme assombrado aos mais se agrega.
Mudos a Fêmio atendem, que o de Tróia
Triste regresso dos Aqueus modula,
*Pom Minerva disposto. A nobre Icária
Penélope a divina cantilena
260 Do alto percebe, e desce pela escada.
Não só, com duas servas; ante os procos,
À porta, o véu de pejo ao rosto abaixa,
Entre as servas lágrima, ao vale fala:
Fêmio, outros carmes e trabalhos sabes
265 De homens e deuses, da poesia assunto;
Escolhe um que a beber te escutem ledos:
Suspende esse cantar, que amargo sempre
O coração me rala e mo entristece,
À lembrança do herói, cuja alta glória
270 Por toda Hélade e Argólida ressoa”.
“Reprovas, minha mãe, contesta o filho,
Que nos deleite a impulsos do seu gênio?
Os poetas não culpes, culpa a Jove
Que a prazer os inspira e o estro acende.
275 Não peca em celebrar de Aqueus os males,
E se é nova a canção, mais prende os homens:
Reforça o ânimo teu para sustê-la.
Se luz não teve para a volta Ulisses,
Em Tróia outros heróis também ficaram.
280 Mas dentro as servas atarefa, intende
Na roca e no tear: varões discorram,
E eu mormente que sou da casa o dono”.
Recolheu-se com pasmo, na prudência
Do filho meditando, pela escada,
285 Mais as fâmulas duas, vai carpindo
O amado ausente esposo, até que em sono
Boa Minerva as pálpebras lhe fecha.
De compartir seu leito ávidos eles,
Na escurecida sala tumultuam;
290 A quem Telêmaco: “O alarido cesse
De Penélope amantes ultrajosos:
Ora à mesa o cantor saboreemos,
Na harmonia parelho às divindades.
Amanhã sem rebouço, em parlamento,
295 Exporei meu desejo de expulsar-vos:
Mutuando os festins, comei do vosso.
A preferirdes consumir sem termo
Os bens de um só, recorro aos Sempiternos:
Júpiter o castigo vos fulmine,
300 E nestes paços expireis inultos”.
Aqui, mordendo os beiços, da ousadia
Pasmavam do mancebo; a Antino, garfo
De Eupiteu, rebentou: “Do Olimpo, certo,
A sublime linguagem te ensinaram;
305 Se és audaz, é que de Ítaca circúnflua
Oh! destinam-te o cetro hereditário”.
Mui ponderoso o príncipe: “O que ajunto
Não te exaspere, Antino: eu de vontade
Granjeara de Júpiter o cetro.
310 Mau reputas reinar? quem reina goza
Opulenta morada e as mores honras.
Na ilha há jovens e anciãos que aspiram,
Morto Ulisses, ao mando: quero apenas
O rei ser desta casa, e dos meus servos
315 Pelo braço paterno conquistados”.
E Eurímaco de Pólibo: “Quem seja
De Ítaca rei, no grêmio está dos numes:
Senhor és do palácio, e enquanto a pátria
For habitada, príncipe, não temas
320 Que da riqueza tua alguém te esbulhe.
Mas conta-nos, amigo, donde veio,
Que herdades o teu hóspede cultiva,
Qual é sua prosápia. Anunciou-te
Perto Ulisses, ou dívida reclama?
325 Foi-se rapidamente e se encobria;
Porém no aspecto seu nobreza inculca”.
“Eurimaco, responde o cauto moço,
Ah! não verei meu pai, nem creio anúncios,
Nem curo de adivinhos que na régia
330 Consulta minha mãe. Aquele é Mentes
Hóspede meu paterno, que se jacta
Filho do ilustre Anquíale; é de Tafo,
Governa os Táfios navegantes hábeis”.
Fala assim, mas conhece a divindade.
335 Na dança e melodia eles se enleiam,
Té que Vésper assoma, e fusca a noite
Vão-se à casa lograr do mole sono.
Cuidados cem Telêmaco rolando,
Um pátio busca interno, onde aposento
340 Soberbo tinha; avante, aceso um facho
Ia a castíssima Euricléia, filha
De Opes de Pisenor, que, enrubescida,
Por vinte bois comprada, igual da esposa
A estimava Laertes, mas honesto
345 Nem lhe tocou, para forrar ciúmes;
De Telêmaco a serva era dileta,
Porque infante o pensara. Esta é quem abre
O camarim formoso: ele na cama
Despe a macia túnica; dobrada
350 Em cabide a pendura junto ao leito
A boa velha, que ao sair, a porta
Por um anel de prata a si puxando,
Corre da aldrava o loro. De ovelhuna
Lã coberto, a cismar despende a noite
355 Na viagem que a deusa lhe ordenara.


NOTAS AO LIVRO I
43-88 — Circúnfluo quer dizer cercado de ondas, e já é nosso. — Embigo do mar, versão literal do grego, significa o lugar mais elevado do mar: não quis diminuir a força do texto. — Pesoissi, interpretado calculis, indica o xadrez, que, segundo a tradição, pouco havia que Palamedes o tinha inventado, e devera ser o jogo da moda; mas parece que o termo grego indica antes o jogo de dados.
104-114 — A expressão em pé dormiam, aplicada às lanças, é de Pindemonte, e parece-me ter lido em Francisco Manuel cousa parecida. — Das palavras a que faço corresponder presentes iguarias, vê-se que a serva pôs à mesa de Minerva alguns dos pratos que estavam na dos príncipes, e ao depois veio o cozinheiro trinchante com outros quentes: os primeiros deviam ser daqueles que, ainda entre os modernos, se costumam guardar, v. g. fiambres, doces, etc. Assim opinam comentadores, mas em várias traduções omite-se esta circunstância, que aliás mostra um uso da antiguidade.
221 — Não é claro se o dote seria dado pelo pai ou pelo noivo preferido: há diferentes opiniões, e eu sou mais da segunda.
274 — Diz M. Giguet: “Les poètes ne sont pas coupables; mais Jupiter, qui dispose à son gré du sort des humains.” Penso que o sentido é que Penélope não culpe a Fêmio o cantar aqueles versos, porque Júpiter é que inspira os poetas a seu prazer.
302-311 — Digo Antino e não Antinôo, assim como Camões dizia Alcino e não Alcinôo. — Do verso 308-311, opina-se que o reinar não é um mal; o meu bom Ferreira, numa cena belíssima da Castro, é de voto contrário: a experiência contudo favorece o do poeta grego. Se fosse mau o reinar, não se teriam cometido tantos crimes para se obter um cetro. Ao momento de escrever isto, os próprios gregos lutam atrapalhados com a candidatura de muitos que aspiram a carregar sobre eles o mesmo cetro que o trágico lusitano qualifica de pesado para os que o trazem; e os três animais ferozes da Europa estão vibrando o olhar sanguíneo, uns contra os outros, por causa da presa.