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Odisséia de Homero - Livro XIX

A meditar com Palas na matança
Fica o divo Laércio, e diz: “Meu filho,
Agora as armas recolher te cumpre;
E caso algum o estranhe, assim te escuses:
5 Quais as deixou meu pai, já não luziam;
Do vapor do fogão fui preservá-las.
E outro medo o Satúrnio suscitou-me:
Entre os copos ferir-vos poderíeis,
Nosso convívio e os esponsais manchando;
10 Pois a força do ferro atrai o homem.”
     Telêmaco obedece ao pai querido,
Chama Euricléia à parte: “Eia, as mulheres
Retém, ama, lá dentro, enquanto acima
Reponho as pulcras armas, desprezadas
15 E do vapor do fogo denegridas
Na ausência de meu pai. Menino eu dantes,
Ora quero do fumo preservá-las.”
     A ama logo: “Oxalá com tal prudência
A casa rejas! Mas diante, filho,
20 Quem te há de alumiar, senão as servas?”
“Este hóspede, responde acautelado;
Que do meu coma ocioso, não tolero.”
     Ordem fútil não foi, porque os batentes
Fecha Euricléia. À pressa ambos carregam
25 Elmos, cavos broquéis e agudas lanças;
Precede-os Palas de lanterna de ouro.
“Meu pai, observa o moço, que milagre!
As paredes, as traves abietinas,
As grossas vigas, as colunas altas,
30 Em lume vivo aos olhos me lampejam:
Um deus parece dentro esclarecê-las.”
     “Tá! não tujas, o atalha o sábio Ulisses:
Os íncolas do Olimpo assim costumam.
Deita-te: à espreita eu fico das criadas;
35 Esperarei que em pranto me interrogue
Tua mãe.” — Ei-lo busca a própria alcova
No meio do esplendor, e em brando sono
Pega até que desponte a diva aurora;
Mas o herói permanece com Minerva,
40 A pensar no horroroso morticínio.
     Sai, qual Diana casta ou loura Vênus,
Penélope do tálamo, e lhe achegam
Ao lar o usado assento, obra de argênteas
E ebúrneas orlas, do famoso Icmálio,
45 De apto escabelo e forro de pelame.
As cativas gentis ali vieram
Erguer das mesas muito pão restante,
E a copa que servira aos convidados;
Em terra as brasas dos fogões depondo,
50 Lenha renovam, que ilumine e aqueça.
Doesta a Ulisses outra vez Melântia:
“À noite, malandrino, inda importunas?
Espias as mulheres? Farto e impando,
Fora, fora; ao contrário, atiçoadas
55 Eu te farei mais presto escafeder-te.”
     Averso a encara: “Insultas-me, demônio,
Por que, em vez de luzir, mesquinho e roto
A mendigar meu pão sou constrangido?
É de errabundos sina. Eu já palácio
60 Tive e escravos, e o mais que adita os homens,
E a quaisquer indigentes socorria:
Ora o querer de Jove arruninou-me!
Também murchar-te a formosura pode,
Que entre as servas te exorna; pode irada
65 Reprimir-te a rainha, e mesmo aquele
Que inda esperar se deve. Mas, se Ulisses
Perdeu-se enfim, outro ele e não criança,
De Apolo por favor, conhece o filho
Quantas mulheres esta casa infetam.”
70 Ouve-a e grita a rainha: “Descarada,
Em ti recairá tanta ousadia.
De mim triste soubeste que informar-me
Do esposo vem.” A Eurínoma virou-se;
“Traze-me, ecônoma, um forrado escano;
75 Em repouso, comigo ele converse.”
     À pressa o escano de tosões coberto,
Lhe trouxe a velha; ao divo herói sentado
Penélope interroga: “Hóspede, vamos
Quem és; de que família? de que pátria?”
80 E o circunspecto: “No orbe, alta senhora,
Ninguém te vitupera, e a glória tua
Penetra o céu; qual a de um rei sem pecha,
Que é pio e seus magnatas justo enfreia,
A quem do fruto as árvores se vergam,
85 O agro viça e engradece, a quem produzem
Greis e armentios, ferve o mar com peixes,
E cujos povos a bondade exercem.
De outra cousa me inquiras, não da pátria,
Não da família; ao recordá-las, custa
90 Gemer em casa alheia. Enfada o choro:
De alguma serva o escárneo atrairia,
Se o teu não fosse, e pode ser que ao vinho
Meu luto lagrimoso atribuíssem.”
     E ela: “O Céu me tirou beleza e forças,
95 Desde que a Tróia Ulisses me levaram.
Venha, mande-me e reja, e a minha glória
Mais resplendeceria: hoje um demônio
Me entristece e comprime. A flor dos Gregos
De Dulíquio, Zacinto, Ítaca e Same,
100 Requestando-me invita, os bens me estragam.
Já nos pobres nem hóspedes provejo,
Ou nos arautos, público ministros:
Saudosa a prantear consumo a vida;
Urgem-me os procos, e eu maquino enganos.
105 Um gênio me inspirou tramar imensa
Larga teia delgada, e assim lhes disse:
— Amantes meus depois de morto Ulisses,
Vós não me insteis, o meu lavor perdendo,
Sem que do herói Laertes a mortalha
110 Toda seja tecida, para quando
No sono longo o sopitar o fado:
Nenhuma Argiva exprobre-me um funéreo
Manto rico não ter quem teve tanto. —
A diurna obra desfazia à noite,
115 E os entretive ilusos por três anos;
Mas, gastas luas e horas, veio o quarto,
E então, por traça de impudentes servas
Apanhando-me, encheram-me de afrontas,
E a concluir a teia me forçaram.
120 Nem mais efúgio nem recurso tenho:
Muito a casar instigam-me os parentes;
Leva meu filho o mal que os bens lhe comam,
Pois, homem já, da casa tratar pode,
Como os que de honras Júpiter cumula.
125 Dize-me assim quem és; tu não das penhas,
Não do robre nascestes fabuloso.”
     E ele cortês: “Mulher de Ulisses digna,
Já que insistes, conhece-me a linhagem;
E, bem que obedecendo agrave as penas,
130 Inerentes aos tristes que erradios
Têm andado, como eu, de povo em povo,
Satisfazer-te vou. — De escuras vagas
Circúnflua jaz recunda e linda Creta,
Com cidades noventa e infindos homens
135 De língua mista: Aqueus, Cídones, Cressos
Indígenas de prol, divos Pelasgos,
Dórios cristados. Na ampla Gnosso Minos,
Cada nove anos comensal de Jove,
Pai de meu pai Deucalião brioso,
140 Os governava. Éton me chamam todos.
Meu régio irmão Idomeneu de Tróia
Foi-se à guerra, mais velho e mais valente.
Na mesma empresa, à força de procelas
Do Maleia a Creta Ulisses impelido,
145 Surgiu do Aniso num difícil porto,
Onde é das Ilitias, a espelunca.
Apenas salvo, a Idomeneu procura,
Que hóspedes seu dizia venerando;
Mas este era partido em naus rostadas,
150 Uns onze sóis talvez. Do porto a Ulisses
Escoltei mesmo, e na abundante casa
Amigo o recebi. Do povo obtidos,
Bois, pães e vinhos dei, por doze dias
Os seus provi de tudo, porque o Bóreas,
155 De um sevo deus movido, não deixava
Em pé ter-se ninguém; mas no trezeno,
Calmado o vento, o pano desferiram.”
     Assim fingia verossímeis contos,
E ela a chorar de ouví-lo definhava:
160 Qual, por Zéfiro a neve amolecida,
Liquesce do Euro ao sopro em celsos cumes,
Desata-se em arroios e incha os rios;
Tal inundava as rubicundas faces,
Anelando o marido ali sentado.
165 Compunge a Ulisses da consorte o pranto;
Mas, como ou ferro ou corno, firme e seco,
Por não trair-se, as pálpebras continha.
     De lágrimas saciada, continua:
“Quero, hóspede, sondar se na verdade
170 A Ulisses recolheste: qual seu trajo,
Qual seu porte, quais eram seus guerreiros?”
     O marido prossegue: “Árduo é, senhora,
Indo em vinte anos que saiu de Creta,
Exato ser; mas ouve o que me lembra.
175 De áureo firmal e duplo anel, seu manto
Era encorpado e mórbido e púrpureo,
De alto lavor: nas anteriores patas
Um cão tinha tremente corçozinho,
E ávido o sufocava; ele a escapar-se
180 Com palpitantes pés se debatia:
Foi pasmo a todos o recamo e a tela.
Notei-lhe ao corpo a túnica lustrosa,
Fina qual seca tona de cebola,
Alva imitante ao Sol, macia e leve,
185 Que espantava as melhores tecedeiras.
Toma sentido, ignoro se tais vestes
Houve-as de casa, ou deu-lhas em viagem
Hóspede ou matalote; pois de muitos
Era benquisto, e poucos o igualavam.
190 Eu doei-lhe ênea espada, roxo e duplo
Manto e roupa talar, e à despedida
À tabulada nau fui respeitoso.
Do arauto seu, mais velho alguma cousa,
Eu me recordo: Euríbato giboso
195 Era e trigueiro e de cabelo crespo;
Ulisses entre os sócios o estimava,
Por atinado concordar com ele.”
     A tão veros sinais, dobrou de pranto;
Mas acalmada: “Se eras um pedinte,
200 Ês, hóspede, hoje o amigo desta casa.
Trouxe eu mesma da câmara essas vestes,
Eu mesma do firmal ornei luzente.
Ah! não mais torna à pátria o caro esposo!
Fatal partida para a infame Tróia!”
205     “Bem que a dor justa seja, o herói contesta,
Real consorte, o corpo não maceres:
Nunca chorou mulher perdido um jovem
Pai amoroso de seus doces filhos
Melhor que Ulisses, comparado aos numes;
210 Porém sossega e atende, eu serei franco.
Tesprotes opulentos me contaram
Que, de riquezas o Laércio onusto,
Na praia ali sozinho aparecera;
Pois, ao vir da Trinácria, irado Jove
215 E o Sol, do armento seu pela matança,
No undoso ponto os sócios afundaram;
E ele, agarrado à quilha, enfim surgindo
Na Esquéria, aceito foi dos bons Feaces
Como um deus, e de ofertas carregado
220 Quiseram transportá-lo. Há muito Ulisses
Ileso fora aqui, se em outros climas
Não preferisse cumular tesouros;
Para o que ninguém há de astúcia tanta.
Fídon rei dos Tesprotes me jurava,
225 Com libações, que a nau já tinha prestes
Para o trazer, e num baixel mercante
Remeteu-me a Dulíquio frumentária;
Mas primeiro mostrou-me hospitais brindes,
A uma dez gerações talvez sobejos,
230 Postos no erário, enquanto ia o Laércio
Ao de Dodona falador carvalho,
A indagar dos oráculos de Jove
Se, após tão largo tempo, cá regresse
Oculta ou claramente. Ele é pois salvo,
235 Nem da casa está longe; eu vou jurar-to:
Atesto o Padre sumo e o lar de Ulisses.
Onde me asilo, aqui virás sem falta,
Mesmo este ano, esta lua ou na seguinte.”
     “Oxalá, diz Penólope! Eu faria
240 Liberal que ditoso te aclamassem.
Mas temo, hóspede meu; nem ele volta,
Nem tu conseguirás daqui passagem.
Outro Ulisses não tenho (oh! se o tivesse!)
Que afague e expeça honrados forasteiros.
245 Depois de um pedilúvio, em cama, ó servas,
De mantas bem se aqueça e belas colchas;
E, assim que a manhã brilhe em trono de ouro,
Banhado e ungido com meu filho coma.
Ai do que ouse ofendê-lo petulante!
250 Sem trabalhar descanse, inda que raivem.
De sisuda mulher me louvarias,
A estares mal vestido à nossa mesa?
Duram breve os mortais: o iníquo e fero,
Sempre de imprecações coberto em vivo,
255 Maldizem-no defunto; o afetuoso
E de alma nobre, os hóspedes lhe estendem
A glória e fama, e todos o abençoam.”
     Opõe-se o herói: “De Ulisses digna esposa,
Mantas e moles colchas aborreço,
260 Dês que em remada nau de Creta os cimos
Deixei nevosos: deito-me, como antes
Noites passava insones, e outras muitas,
À espera da alva aurora, adormecia
No duro chão. De banhos eu prescindo,
265 Nem me toque nos pés, senão prudente
Anciã no mal provada e oficiosa.”
     E ela: “Nunca de amáveis peregrinos
Tive outrem como tu: quanto proferes
Siso respira. No infeliz conservo
270 A ama discreta, que, nascido apenas,
Da mãe o recebera e amamentara:
Inda que fraca, os pés lavar-te pode.
Anda, Euricléia, este coevo banha
De teu senhor: talvez que ele tal seja
275 E dos pés e das mãos; pois no infortúnio
Rapidamente os homens envelhecem.”
     Tapa a nutriz o lagrimoso rosto
A soluçar: “Ai filho, em vão te anseio!
Pio embora, és de Jove o detestado!
280 Ninguém tantas queimou sucosas coxas,
Nem lhe deu mais solenes hecatombes,
Viver quando rogava longa vida
E teu filho educar; mas o Tonante
Sumiu-te a luz da volta! Alhures, zombam
285 Ah! dele, amigo, em pórticos soberbos,
Outras como as que foges despejadas.
Lavo-te os pés, não só porque mo ordena
De Icário a boa filha, mas de grado,
Por mera compaixão. Têm vindo muitos
290 Peregrinantes cá; nenhum, te afirmo,
A Ulisses como tu se assemelhava,
No meneio e no andar, em voz e em gesto.”
     Cauteloso a atalhou: “Sim, todos eram
Desse teu mesmo aviso.” Reluzente
295 Bacia a velha toma, onde água fresca
Vaza e a fervente em cima. Ao lar no escuro
Senta-se vôlto Ulisses, receoso
Que a cicatriz o arcano revelasse.
Ela, o senhor banhando, essa conhece
300 Marca do alvo colmilho de um javardo,
Quando ao Parnaso visitou seus tios
E avô materno Autólico, entre os homens
No pilhar e jurar manhoso e mestre;
Por Mercúrio assistido, a quem de chibos
305 E anhos queimava as agradáveis coxas.
     Veio Autólico a Ítaca ubertosa
De seu neto ao nascer; e, mal cearam,
Põe-lhe o infante aos joelhos Euricléia:
“Tu o almejavas tanto, agora inventa
310 Um nome ao filho da querida filha.”
     Disse o avô: “Genro meu, minha Anticléia,
Eu ressentido contra muitos venho
De um e outro sexo na selvosa terra;
Um nome lhe imporei, chame-se Ulisses.
315 Crescido, a casa a visitar materna,
Vindo ao Parnaso, onde as riquezas tenho,
Hei de brindá-lo e despedir contente.”
     Foi-se do prometido em busca Ulisses:
Antólico e família o abraçam ternos;
320 Carinhosa Anfitéia avó beijou-lhe
A testa e olhos gentis. Ao pátrio mando,
Para o banquete opíparo, a preceito,
Qüinquene touro os príncipes esfolam,
Picam-no, assam de espeto, e em roda servem;
325 E, o dia inteiro à grande regalados,
Liga-os a noite opaca em brando sono.
     Ulisses, no arrebol, em montearia
Trilhando as selvas do íngreme Parnaso,
A ventosas fraguras segue os tios;
330 E, no arraiar o Sol do mudo Oceano,
Precedendo a matilha farejante,
Vibra o dardo num vale o divo moço.
Em brenha oculto um javali jazia,
Brenha à diurna torreira impenetrável,
335 Ao sopro aquoso, à desatada chuva,
Pleno o covil de bastas secas folhas:
Ao latir e ao tropel, sanhuda a fera
Sai, de eriçado pêlo e a vista em brasa,
Tem-se de perto; Ulisses o primeiro
340 Com forte ávida mão levanta o pinque;
Prevenindo-lhe o golpe, o dente o cerdo
Lhe aferra no joelho, mas oblíquo,
Sem osso lhe ofender, na carne o embebe:
De ênea cúspide o herói na destra espádua
345 O atravessa; ei-lo grunhe e tomba e morre.
Expertos a ferida ao bravo pensam,
Vedam-lhe por encantos o atro sangue;
Curam-no em casa, e dele satisfeitos,
Ledo com riscos dons à pátria o mandam.
350 Laertes e Antícléia, jubilosos,
Da cicatriz a causa e tudo inquirem;
No Parnaso ele conta que o mordera,
Junto a seus tios, javali terrível.
     Palpando, a cicatriz conhece a velha,
355 Nem pode o pé suster; cai dentro a perna,
E a bacia retine e se derrama.
Dor a assalta e prazer; nos olhos água,
Presa às fauces a voz, lhe afaga o mento,
E balbucia enfim: “Tu és, meu filho,
360 És Ulisses; depois que te hei palpado,
Ora por meu senhor te reconheço.”
     E olhou para Penélope, o dileto
Marido a lhe indicar; mas, por Minerva
Distraída, a senhora o não percebe.
365 Da destra ele sustendo-lhe a garganta,
A si da esquerda a puxa: “Ama, a teus peitos
Amamentado, queres tu perder-me?
Volto ao vigésimo ano, após mil transes;
Mas, já que um nume to mostrou, silêncio,
370 A ninguém me delates. No imo o estampes:
Se me der Jove debelar soberbos,
Não pouparei culpada a nutriz mesma,
Furioso a todas que o palácio infamem.”
     “Filho, acode Euricléia, que proferes
375 Do encerro desses dentes? Inflexível
Tu bem sabes que sou, qual pedra ou ferro.
Toma sentido: a permitir-te Jove
Soberbos debelar, as que te mancham
A casa apontarei.” — De pronto Ulisses:
380 “Ama, nem é mister, nem te isso cabe;
Toca-me descobri-las e julgá-las.
Guarda o segredo, e o mais aos deuses fique.”
     Sendo o primeiro banho extravasado,
Sai pela sala a velha em busca de outro,
385 E o lava e unge; o herói senta-se ao fogo
Se aquece e cobre a cicatriz com panos.
     Ata a rainha a prática: “Inda um pouco,
Hóspede meu, que a hora se apropinqua
Do meigo sono, alívio dos cuidados,
390 Menos dos que um demônio me pródiga.
Sequer de dia em choro desabafo,
Inspecionando as servas; mas de noite,
Ao reinar o sossego, eu só no leito
Sou de pungentes mágoas salteada.
395 A Pandareida verde Filomela,
Na doce quadra amena, entre a folhagem
Flébeis queixumes sonorosa trina
Pelo dela e de Zeto amado filho
Itilo, a quem matou por erro infando:
400 Assim lamento, a revolver incerta
Se ao pé do meu conserve, respeitosa
Ao toro conjugal e à voz do povo,
Servas, paço e riqueza; ou, bem dotada,
Siga o melhor de assíduos pretendentes.
405 Enquanto o meu Telêmaco era débil,
Não quis largar a marital vivenda;
Mas, púbere hoje, me insta que lha deixe,
Contra os vorazes procos irritado.
     “Explica-me ora um sonho. Gansos vinte
410 Folgo de ver comendo os grãos no pátio;
Porém de bico adunco montês águia
Sonhei que, tendo lhes quebrado os colos,
Amontoado no terreiro os mortos,
Pelo ar divino alou-se; e eu grito e choro,
415 E emadeixadas Gregas me circundam
Na minha dor, ao tempo que, voltando,
A águia fala da grimpa em voz humana:
— Ânimo, ó filha do pujante Icário!
Não é sonho, é visão realizável:
420 Gansos os procos são; eu, antes águia,
Sou teu marido, e castigá-los venho.
Nisto, acordo, olho em torno, e como é de uso,
Vejo os gansos na praia a comer trigo.”
     Pausado o herói: “Interpretar o sonho
425 De outro modo que Ulisses me é defeso:
Iminente é dos príncipes a perda;
Nenhum tem de esquivar-se à morte escura.”
     Ela acrescenta: “Os sonhos são difíceis;
Muitos, hóspede, nunca se efetuam.
430 Têm eles dous portões, ebúrneo e córneo:
Os do ebúrneo, falazes, mentem sempre;
Nunca os do córneo falham. Que o meu, deste
Vindo, a mim e a Telêmaco aproveite,
Não me lisonjo. Agora sê-me atento.
435 O albor nefasto aponta em que dos paços
Me apartarei de Ulisses, e um certame
Vou propor. Inda em casa há meu marido
Secures doze, que erigia em hastes,
E por seus olhos doze em direitura
440 De longe a frecha rápida enfiava:
Seguirei quem mais fácil o arco estenda
E as secures traspasse, abandonando
Ah! tão saudosa e farta e bela estância,
Da qual me lembrarei té nos meus sonhos.”
445     E Ulisses: “Do Laércio augusta esposa,
Não retardes a prova. Hás de o consorte
Aqui ter, antes que eles o arco verguem
E, tesa a corda, os ferros atravessem.”
     Inda Penélope: “Hóspede, a quereres
450 Junto a mim conversar, de ouvir-te o gosto
Me estancaria o sono; mas não devem
Os mortais velar sempre, e na alma terra
Lei sobre tudo os numes impuseram.
Subo a deitar-me enfim no amargo leito
455 Que de contínuas lágrimas ensopo,
Dês que Ulisses partiu para essa Tróia
De execranda memória. Tu repousa
A teu prazer, no solho ou numa cama
Que se te aprestará”: Disse, e montando
460 Não só, com duas fâmulas, na excelsa
Maravilhosa câmara pranteia
Seu caro esposo, até que amigo sono
Lhe infunde pelas pálpebras Minerva.

NOTAS AO LIVRO XIX
94-98 — Não me atrevo a suprimir esta passagem, que vem nas diferentes edições, não obstante pensar com Rochefort, que há interpolação. Com efeito, falando o falso mendigo só da glória da rainha, parece-me inconveniente que ela de mão fale da sua própria formosura. Estes versos vêm mais a propósito no livro antecedente, como diz o mesmo Rochefort.
134 — Homero dá sempre a Creta cem cidades, menos aqui, onde só lhe dá noventa. Os Críticos dizem que o redondo número de cem é para encarecer; outros cuidam que, tendo sido cem, Idomeneu destruiu dez numa sedição.
166 — A Clavis Homerica de muitos seguida, acha ótima a comparação com o ferro ou com o corno por causa da sua natural secura; mas Rochefort, sempre fiel ao seu sistema, achando corno matéria indigna de uma epopéia, o substituiu por marfim.
309-312 — O nome Ulisses ou Odusseus vem do verbo odussó, irar-se. Querem muitos que a história da ferida, a qual vai seguindo, seja uma interpolação. Pode ser que haja acrescentamentos; porém Homero, em ambos os seus poemas, não perde ocasião de contar-nos sucessos ainda mais longos, e estes, interessantes como pertencentes ao seu herói, é provável que os não quisesse omitir.
439 — Olho chama-se o buraco por onde se introduz o cabo do machado e de outros instrumentos. Ir ao índice do livro

Odisséia de Homero - Livro VII

Ora o sofrido herói; marcha a carroça,
Pára Nausica ao pórtico soberbo:
Os irmãos seus deiformes, que a rodeiam,
Os mus disjungem, dentro a carga levam.
5 Ela à câmara sobe: o fogo acende
E a ceia lhe concerta Eurimedusa,
Do Epiro transportada em naus remeiras,
Pelo povo escolhida em recompensa
Para o potente Alcino, dos Feaces
10 Como um deus adorado; a qual na régia
Nutriz foi da donzela, e é camareira.
Ergue-se Ulisses, e a propícia déia
O embuça em névoa grossa, que insultá-lo
E ofender ninguém possa, nem detê-lo
15 Ou quem seja inquirir; mas, da risonha
Cidade ao começar, vem Palas como
Rapariga de cântaro à cabeça,
E o Laércio a interroga: “Filha, queres
Conduzir-me de Alcino aos reais paços?
20 Estrangeiro e infeliz, de longe arribo;
Nem do lugar um morador conheço.”
     “Sim, respeitável hóspede, responde;
Meu bom pai fica perto. Abro o caminho;
Tu cala-te, que a turba hostil e acerba
25 Não sofre nem festeja os forasteiros.
Tal gente, ousada nas talhantes quilhas,
Os mares trana, pois lhas deu Satúrnio
Velozes qual a pluma e o pensamento.”
     Ela avança, ele a segue. À chusma oculto
30 Marítima perpassa, que Minerva
Lhe difundia divinal caligem:
Os portos vai mirando e as alterosas
Naus e o foro e as muralhas estupendas
Com valos guarnecidas. Mas, vizinhos
35 Ao paço, adverte a guia olhicerúlea:
“Dentro, hóspede e senhor, de Jove alunos
À mesa encontrarás. Anda e não temas;
O audaz e franco, donde quer que chegue,
Vence embaraços. A rainha busques,
40 A quem de Areta cabe o grato nome,
E é da real prosápia do marido.
Eurimédon feríssimos gigantes
Altivo dominava, e o duro povo
Com ele pereceu; de Peribéia,
45 Menor filha e a mais guapa, houve Netuno
O bravo Nausítoo, aqui reinante,
O qual foi pai de Rexenor e Alcino;
A Rexenor matando o Arcitenente,
Ele deixou, casado era de fresco,
50 Não masculina prole, única Areta;
Com Areta esposou-se o tio Alcino.
Mais honrada não há matrona alguma
Dos caros filhos, do consorte mesmo;
Quando passeia, divindade a julgam
55 E de seus lábios as palavras colhem;
Boa e inspirada, os cidadãos congraça.
Rever esperes, se te for benigna,
Os amigos e a pátria e a celsa casa.”
     Pelo ponto infrugífero, eis Minerva
60 Da Esquéria amena parte, e se dirige
A Maratona e Atenas de amplas ruas,
De Erecteu sobe o alcáçar. Ao de Alcino,
Sem que o límen transponha, tem-se Ulisses
A cogitar. Magnífico palácio
65 Como o Sol fulge e a Lua: éreas paredes
Firmam-se em torno, da soleira adentro,
Com seus frisos de esmalte, áureas as portas,
Argênteos os portais ao brônzeo ingresso,
Argênteas vergas, a cornija de ouro;
70 De ouro e de prata uns cães, de lado a lado,
Com alma e coração, Vulcânio invento,
São de Alcino os custódios vigilantes,
Imortais e à velhice não sujeitos;
Para o interior há tronos desde a entrada,
75 Com finos véus de mãos femíneas obra,
Onde em redor assentam-se os magnatas
A comer e beber, durante o ano;
Com primor fabricados, junto às aras
Mancebo de ouro estão, de acesos fachos
80 A alumiar de noite os conviventes.
Servem cinqüenta moças: quais, em pedra
Flavo trigo a moer; quais, aos teares;
Quais, a virar num rodopio os fusos,
Como do álamo as folhas buliçosas.
85 Untado e bem tecido o linho estila:
Tanto os Feaces navegando excelem,
Quanto as mulheres têm, mercê de Palas,
Para a teia e o lavor engenho e arte.
     Não distante, há vergel de quatro jeiras,
90 Onde florentes árvores viçosas,
De inverno e de verão, perene brotam;
Zéfiro meigo lhes sazona os frutos,
Um pula, outro arregoa, outro envelhece.
Nova sucede à pêra já madura;
95 À escachada romã sucede nova;
Esta oliva é de vez, rebenta aquela;
Junto à maçã vermelha a verde cresce;
Figo após figo, mela, uva após uva.
Medra abundante vinha: em área cachos
100 Estão secando ao Sol, quais se vindimam,
Quais pisam-se em lagar; doces roxeiam,
Ou no desflorescer acerbos travam.
O arruado pomar fenece em horta,
De verduras mimosa em toda quadra.
105 Pelo inteiro jardim corre uma fonte;
Jorra ao pátio a maior ante o palácio,
Donde bebe a cidade. Eis quanto os numes
Ao nobre Alcino em casa prodigaram.
     Ulisses mira e pasma, e na caligem
110 Paládia envolta, a limiar transpondo,
Acha-os libando a Hermes negocioso,
Brinde final dos que do leito curam;
E mal, vizinho ao rei, da augusta esposa
Às plantas cai, a nuvem se dissipa.
115 Todos o encaram mudos, e ele exclama:
“Filha de Rexenor, divina Areta,
Mísero eu te suplico e a teu marido
E aos mais senhores: oxalá que extensa
Vida obtenhais e transmitir à prole
120 Bens e fortunas que vos der o povo!
Breve porém mandai-me à pátria minha;
Fora dos meus padeço há largos anos.”
     Nisto, ao fogão sentou-se no cinzeiro.
O silêncio reinava, até rompê-lo
125 Equeneu venerando, o mais idoso
Dos Feaces heróis, mais eloqüente,
Mais douto no passado, e orou sisudo:
“O hóspede, Alcino, ali jazer na cinza
É pouco honesto; o aceno os mais te aguardam
130 Em sede claviargêntea, eia, o coloques;
Vinho manda infundir, para ao Fulmíneo,
Que assiste a honrados hóspedes, libarmos;
Já, ministrei-lhe ceia, a despenseira.”
     E o rei pega do sábio, em trono o assenta
135 Resplendido, que próximo ocupava
O forte e amado filho seu Laodamas.
Serva em bacia argêntea às mãos verte água
De áureo gomil, desdobra e espana a mesa;
Pão traz modesta ecônoma e iguarias
140 Novas, que às encetadas acrescenta.
Come Ulisses e bebe, e o rei com força:
“Mistura, tu Pontono, e da cratera
O vinho distribui, para ao Fulmíneo,
Que assiste a honrados hóspedes, libarmos.”
145 O arauto o brando vinho que mistura.
Em copos vaza e o distribui aos chefes.
Depois Alcino: “Egrégios conselheiros,
Ide saciados repousar, vos digo.
Os antigos do povo amanhã venham;
150 Em festejo hospital ofereçamos
Completo sacrifício às divindades;
Em seguida curemos de que alegre
Ele, por mais remota, à pátria aborde,
Sem moléstia nem danos; acautelemos
155 Qualquer mal no caminho. Já na terra,
Sofra as penas que as Parcas lhe fiaram
Desde o materno ventre. E a ser do Olimpo
Habitador, mistério aqui se encobre:
Deuses muito há que a nós se manifestam;
160 Conosco, nas solenes hecatombes,
Demoram-se ao banquete; e se um Feace
Os depara viandante, não se escondem,
Pois neles entrocamos, como as tribos
De Ciclopes cruéis, gigantes rudes.”
165 “Alcino, o herói tornou, perde essa idéia:
Aos celícolas tu não me confrontes
Em índole e presença; humano e frágil,
Ao mais triste mortal sou comparável,
Nem te posso explanar quanto infortúnio
170 Tem sobre mim os deuses carregado.
Mas, da mágoa apesar, deixa que eu ceie;
O estômago importuno se aguilhoa,
No meio da aflição me pica e lembra
O comer e o beber, dá trégua às penas.
175 N’alva expedi-me: ao ver, pós tantas lidas,
Minha terra e família e doces lares,
Acabe-se esta luz ali comigo.”
     Aplaudem-no os Feaces, confiando
Que o disserto orador o intento logre,
180 E trás farto libar foram-se ao leito.
O herói fica-se e Areta e o rei divino,
E as servas a baixela entanto arrumam.
Logo Areta, que as obras reconhece
Dela e da gente sua: “A interrogar-te
185 Primeira, hóspede, sou. Quem és e donde?
Como houveste essa túnica e esse manto?
Não dizes tu que náufrago abordaste?”
     “Narrar-te já, responde, quantos males,
Senhora, o Céu vibrou-me, é mui difícil;
190 Mas ao que me perguntas satisfaço.
De humanos e mortais mora apartada,
Na Ogígia ilha do alto mar, Calipso,
De Atlante gérmen, de encrespada coma,
Ardilosa e tremenda; ali mau gênio
195 Lançou-me só, desfeito havendo Jove
A raio a embarcação no escuro abismo,
Onde os meus nautas soçobraram todos.
Por nove dias, aferrado à quilha,
De vaga em vaga, ao décimo de noite
200 A praia toco. A ninfa carinhosa
Me tratou, me nutriu, velhice e morte
Quis tolher-me, e abalar-me nunca pôde.
Firme reguei de choro as dadas roupas
Incorruptíveis; mas, de Jove ao mando
205 Ou volúvel, no curso do ano oitavo
A partir me exortou numa jangada,
Pão forneceu-me e vinho e odoras vestes,
Favônias a invocar-me auras suaves.
Aos oito sóis de undívaga derrota,
210 Vossa alta umbrosa terra apareceu-me,
E no peito exultei. Mas ai! Netuno,
Insensível ao pranto, em furor sempre,
Com vastas brenhas de surdir me impede,
E a barca um vagalhão me desconjunta.
215 As ondas meço a braço, té que à ilha
Sanhudas nuns penedos me remessam
Inacessíveis. Novamente nado,
A foz emboco enfim de um rio ameno,
Tuto e limpo de escolhos e abrigado;
220 Em salvo, ânimo cobro. A tarde assoma,
Deixo o rio Dial; em selva opaca,
Inda que atribulado, acamo folhas,
E um deus noite e manhã me embebe em sono.
Ao declinar do Sol, acordo e avisto
225 A filha tua às imortais parelha,
N’alva praia, entre as fâmulas brincando;
Suplico, admiro o tento que, ó rainha,
Esperar não puderas dos seus anos
De imprudência e loucura: fez banhar-me,
230 De vestidos proveu-me e de alimento.
Nesta angústia, senhora, eis a verdade.”
     “Hóspede, acode Alcino, a filha minha
Ao decoro faltou, que ao nosso alvergue
De antemão suplicada, lhe cumpria
235 Na comitiva sua conduzir-te.”
     O manhoso atalhou: “Tu não censures
A inocente princesa; ela mandou-me
Acompanhar as servas, e eu neguei-me.
Temi quiçá, que ao vê-lo te irritasses:
240 À suspeita é propensa a espécie humana.”
     “Temerário não sou, replica Alcino,
Ou pronto em me irritar; o honesto e justo,
Hóspede, em mim domina. Oh! queira o Padre,
Minerva e Apolo, tal qual és, de acordo
245 Com meu sentir, que genro meu te fiques!
Dôo-te casa e bens. Mas por violência
Ninguém te reterá: condena-o Jove.
Dorme em sossego, disporei seguro
Teu regresso amanhã: durante as calmas
250 Os nautas remarão, se além de Eubéia
Mesma o desejes, ilha a mais remota,
Segundo os que de Télus navegaram
Ao filho Tício o flavo Radamanto;
Porém num dia aqui se recolheram.
255 Conhecerás que chusma e naus possuo
Para à voga arrancada o mar fenderem.”
     Folga e depreca Ulisses: “Padre excelso!
Cumpra Alcino a promessa; a glória sua
Encha a terra fecunda, e eu veja a minha.”
260 Inda assim praticavam, quando Areta
Albinitente ao pórtico uma cama
Estender manda, com purpúreas colchas,
Com tapetes, e espessos cobertores;
Vão de facho na mão fazê-la as servas,
265 E o paciente herói depois avisam:
“Hóspede, vem dormir, que é pronta a cama.”
Ulisses com prazer no recortado
Catre ao sonoro pórtico se estira.
Foi dentro Alcino se gozar do sono,
270 Com sua esposa o leito compartindo.

NOTAS AO LIVRO VII
13-15 - Imitou Virgílio esta passagem no I da Eneida. Pope, Rochefort e outros, bem entendido, acham Homero muito superior. A honra da invenção cabe certamente ao Grego; mas, no executar e no escolher a situação, tenho que o Latino é pelo menos igual. Minerva cobre de uma nuvem a Ulisses para o salvar dos insolentes marujos de Esquéria; Vênus cobre de uma nuvem Enéias para sem perigo atravessar Cartago, onde, por confissão de Dido a Ilioneu, ela mesma deixa o povo ser áspero com os estrangeiros: por mais que Minerva amasse a Ulisses, não o amava tanto como Vênus a Enéias, que era seu filho; e a cautela da mãe, que opinam ser inútil, é plenamente justificada. A melhoria que alguns deparam sempre em Homero, é paixão de tradutores: eu, que o sou de ambos os poetas, não tenho o amor próprio empenhado por um deles. Muito realça a imitação o estar ouvindo Enéias do encerro nebuloso os gabos que os Troianos lhe prodigalizavam: que situação! E quanto não é dramático o desfazer-se a nuvem no momento em que Dido se propunha mandá-lo procurar! Preferir sempre Homero a Virgílio, presta ao crítico um ar de sapiência e recôndita erudição, e apascenta a vaidade de poder penetrar os mistérios de uma língua menos conhecida.
40 - Assentava bem o nome na virtuosa Areta, ou porque signifique desejada, ou porque são como areté, que significa virtude.
70-85 - Os cães do portão de Alcino, segundo Homero, bem que de ouro, tinham voz e inteligência; mas por timidez, alguns acrescentam em sua tradução um antipoético parecem. Era isso uma das maravilhas de Vulcano; maravilha igual à das trípodes que iam por seus pés ao congresso dos deuses, e à das moças também de ouro que andavam com o mestre, como se lê no livro XVIII da Ilíada. — Fala-se em moer os grãos: pensa-se que isto é cousa do tempo de Homero emprestada ao dos seus heróis; ou que a moedura era imperfeita, sendo o grão apenas quebrado na pedra, frangere saxo, como diz Virgílio; ou então que os Feaces, povo navegador, possuíam maior indústria que os sócios de Enéias, que eram de Tróia, menos civilizada. — O verso correspondente ao meu 85 não diz que as teias eram luzidias como azeite, à maneira de Pindemonte; nem tão bem tecidas que o azeite as não penetrava, segundo a Clavis Homerica: acertou M. Giguet em dizer que as teias destilavam óleo. Cá em Pisa, onde escrevo esta nota, uma camponesa grande fiandeira ensinou-me que, ao tecer, untava-se o linho com unto para o tornar menos seco e de trabalhar melhor: Homero nos memora um costume antigo, ainda hoje conservado.
[N.E.: Um exemplar da Clavis Homerica existente na Biblioteca da Universidade de Michigan foi digitalizado pelo Google e encontra-se disponível para download no Google Books (Clavis Homerica sive Lexicon Vocabularum Omnium, quæ continentur in Homeri Iliade et potissima parte Odysseæ, ... — Edinburgi, 1815)]
96-98 - Fruta de vez é a que, não bem madura, contudo já pode ser colhida: esta locução comum falta nos dicionários; e também falta o verbo melar, que significa escorrer a fruta o seu suco, e aos figos aplica-se frequentemente. — Alguns põem laranjas no pomar de Alcino; mas nada vejo no texto que os justifique: as palavras méleai áglaokarpoi querem dizer macieiras que dão boa fruta, e não laranjeiras. A exatidão é de interesse histórico.
177 - Folguei de poder aqui servir-me de um dos melhores versos do patriota Camões.
224-270 - Digo declinar e não cair o Sol, como dizem alguns; porque, se ele já estivesse no ocaso, Ulisses não tivera tempo de ver as moças a jogar, de lhes falar e suplicar, de banhar-se no rio, ungir-se e vestir-se, de comer e beber, antes que Nausica partisse para a cidade. — No verso 245, vê-se que Alcino ofereceu a filha extemporaneamente: por mais que se esforcem os críticos em desculpar o poeta, confesso que não gosto do oferecimento. — Homero não afirma que a Eubéia é a mais longínqua das terras, como afirmam não poucas versões; apenas a denomina a ilha mais afastada da Esquéria, e o que se segue mais comprova esta opinião. — Quanto ao último verso, tenho como razoável o que diz Rochefort, contra o parecer de muitos, isto é, que dormia Areta, não ao pé, sim no mesmo leito do marido. Ir para índice do livro.