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25 de maio de 2020

Abraão manda seu servo buscar uma mulher para Isaque - Gênesis capítulo 24

Abraão manda seu servo buscar uma mulher para Isaque
1 - E ERA Abraão já velho e adiantado em idade, e o SENHOR havia abençoado a Abraão em tudo.
2 - E disse Abraão ao seu servo, o mais velho da casa, que tinha o governo sobre tudo o que possuía: Põe agora a tua mão debaixo da minha coxa,
3 - Para que eu te faça jurar pelo SENHOR Deus dos céus e Deus da terra, que não tomarás para meu filho mulher das filhas dos cananeus, no meio dos quais eu habito.
4 - Mas que irás à minha terra e à minha parentela, e dali tomarás mulher para meu filho Isaque.
5 - E disse-lhe o servo: Se porventura não quiser seguir-me a mulher a esta terra, farei, pois, tornar o teu filho à terra donde saíste?
6 - E Abraão lhe disse: Guarda-te, que não faças lá tornar o meu filho.
7 - O SENHOR Deus dos céus, que me tomou da casa de meu pai e da terra da minha parentela, e que me falou, e que me jurou, dizendo: À tua descendência darei esta terra; ele enviará o seu anjo adiante da tua face, para que tomes mulher de lá para meu filho.
8 - Se a mulher, porém, não quiser seguir-te, serás livre deste meu juramento; somente não faças lá tornar a meu filho.
9 - Então pôs o servo a sua mão debaixo da coxa de Abraão seu senhor, e jurou-lhe sobre este negócio.
10 - E o servo tomou dez camelos, dos camelos do seu senhor, e partiu, pois que todos os bens de seu senhor estavam em sua mão, e levantou-se e partiu para Mesopotâmia, para a cidade de Naor.
11 - E fez ajoelhar os camelos fora da cidade, junto a um poço de água, pela tarde, ao tempo que as moças saíam a tirar água.
12 - E disse: Ó SENHOR, Deus de meu senhor Abraão, dá-me hoje bom encontro, e faze beneficência ao meu senhor Abraão!
13 - Eis que eu estou em pé junto à fonte de água e as filhas dos homens desta cidade saem para tirar água;
14 - Seja, pois, que a donzela, a quem eu disser: Abaixa agora o teu cântaro para que eu beba; e ela disser: Bebe, e também darei de beber aos teus camelos; esta seja a quem designaste ao teu servo Isaque, e que eu conheça nisso que usaste de benevolência com meu senhor.

O encontro com Rebeca
15 - E sucedeu que, antes que ele acabasse de falar, eis que Rebeca, que havia nascido a Betuel, filho de Milca, mulher de Naor, irmão de Abraão, saía com o seu cântaro sobre o seu ombro.
16 - E a donzela era mui formosa à vista, virgem, a quem homem não havia conhecido; e desceu à fonte, e encheu o seu cântaro e subiu.
17 - Então o servo correu-lhe ao encontro, e disse: Peço-te, deixa-me beber um pouco de água do teu cântaro.
18 - E ela disse: Bebe, meu senhor. E apressou-se e abaixou o seu cântaro sobre a sua mão e deu-lhe de beber.
19 - E, acabando ela de lhe dar de beber, disse: Tirarei também água para os teus camelos, até que acabem de beber.
20 - E apressou-se, e despejou o seu cântaro no bebedouro, e correu outra vez ao poço para tirar água, e tirou para todos os seus camelos.
21 - E o homem estava admirado de vê-la, calando-se, para saber se o SENHOR havia prosperado a sua jornada ou não.
22 - E aconteceu que, acabando os camelos de beber, tomou o homem um pendente de ouro de meio siclo de peso, e duas pulseiras para as suas mãos, do peso de dez siclos de ouro;
23 - E disse: De quem és filha? Faze-mo saber, peço-te. Há também em casa de teu pai lugar para nós pousarmos?
24 - E ela lhe disse: Eu sou a filha de Betuel, filho de Milca, o qual ela deu a Naor.
25 - Disse-lhe mais: Também temos palha e muito pasto, e lugar para passar a noite.
26 - Então inclinou-se aquele homem e adorou ao SENHOR,
27 - E disse: Bendito seja o SENHOR Deus de meu senhor Abraão, que não retirou a sua benevolência e a sua verdade de meu senhor; quanto a mim, o SENHOR me guiou no caminho à casa dos irmãos de meu senhor.
28 - E a donzela correu, e fez saber estas coisas na casa de sua mãe.
29 - E Rebeca tinha um irmão cujo nome era Labão, o qual correu ao encontro daquele homem até a fonte.
30 - E aconteceu que, quando ele viu o pendente, e as pulseiras sobre as mãos de sua irmã, e quando ouviu as palavras de sua irmã Rebeca, que dizia: Assim me falou aquele homem; foi ter com o homem, que estava em pé junto aos camelos, à fonte,
31 - E disse: Entra, bendito do SENHOR; por que estás fora? pois eu já preparei a casa, e o lugar para os camelos.
32 - Então veio aquele homem à casa, e desataram os camelos, e deram palha e pasto aos camelos, e água para lavar os pés dele, e os pés dos homens que estavam com ele.
33 - Depois puseram comida diante dele. Ele, porém, disse: Não comerei, até que tenha dito as minhas palavras. E ele disse: Fala.
34 - Então disse: Eu sou o servo de Abraão.
35 - E o SENHOR abençoou muito o meu senhor, de maneira que foi engrandecido, e deu-lhe ovelhas e vacas, e prata e ouro, e servos e servas, e camelos e jumentos.
36 - E Sara, a mulher do meu senhor, deu à luz um filho a meu senhor depois da sua velhice, e ele deu-lhe tudo quanto tem.
37 - E meu senhor me fez jurar, dizendo: Não tomarás mulher para meu filho das filhas dos cananeus, em cuja terra habito;
38 - Irás, porém, à casa de meu pai, e à minha família, e tomarás mulher para meu filho.
39 - Então disse eu ao meu senhor: Porventura não me seguirá a mulher.
40 - E ele me disse: O SENHOR, em cuja presença tenho andado, enviará o seu anjo contigo, e prosperará o teu caminho, para que tomes mulher para meu filho da minha família e da casa de meu pai;
41 - Então serás livre do meu juramento, quando fores à minha família; e se não te derem, livre serás do meu juramento.
42 - E hoje cheguei à fonte, e disse: Ó SENHOR, Deus de meu senhor Abraão, se tu agora prosperas o meu caminho, no qual eu ando,
43 - Eis que estou junto à fonte de água; seja, pois, que a donzela que sair para tirar água e à qual eu disser: Peço-te, dá-me um pouco de água do teu cântaro;
44 - E ela me disser: Bebe tu e também tirarei água para os teus camelos; esta seja a mulher que o SENHOR designou ao filho de meu senhor.
45 - E antes que eu acabasse de falar no meu coração, eis que Rebeca saía com o seu cântaro sobre o seu ombro, desceu à fonte e tirou água; e eu lhe disse: Peço-te, dá-me de beber.
46 - E ela se apressou, e abaixou o seu cântaro de sobre si, e disse: Bebe, e também darei de beber aos teus camelos; e bebi, e ela deu também de beber aos camelos.
47 - Então lhe perguntei, e disse: De quem és filha? E ela disse: Filha de Betuel, filho de Naor, que lhe deu Milca. Então eu pus o pendente no seu rosto, e as pulseiras sobre as suas mãos;
48 - E inclinando-me adorei ao SENHOR, e bendisse ao SENHOR, Deus do meu senhor Abraão, que me havia encaminhado pelo caminho da verdade, para tomar a filha do irmão de meu senhor para seu filho.
49 - Agora, pois, se vós haveis de fazer benevolência e verdade a meu senhor, fazei-mo saber; e se não, também mo fazei saber, para que eu vá à direita, ou à esquerda.
50 - Então responderam Labão e Betuel, e disseram: Do SENHOR procedeu este negócio; não podemos falar-te mal ou bem.
51 - Eis que Rebeca está diante da tua face; toma-a, e vai-te; seja a mulher do filho de teu senhor, como tem dito o SENHOR.
52 - E aconteceu que, o servo de Abraão, ouvindo as suas palavras, inclinou-se à terra diante do SENHOR.
53 - E tirou o servo jóias de prata e jóias de ouro, e vestidos, e deu-os a Rebeca; também deu coisas preciosas a seu irmão e à sua mãe.
54 - Então comeram e beberam, ele e os homens que com ele estavam, e passaram a noite. E levantaram-se pela manhã, e disse: Deixai-me ir a meu senhor.
55 - Então disseram seu irmão e sua mãe: Fique a donzela conosco alguns dias, ou pelo menos dez dias, depois irá.
56 - Ele, porém, lhes disse: Não me detenhais, pois o SENHOR tem prosperado o meu caminho; deixai-me partir, para que eu volte a meu senhor.
57 - E disseram: Chamemos a donzela, e perguntemos-lho.

Rebeca consente em casar com Isaque
58 - E chamaram a Rebeca, e disseram-lhe: Irás tu com este homem? Ela respondeu: Irei.
59 - Então despediram a Rebeca, sua irmã, e sua ama, e o servo de Abraão, e seus homens.
60 - E abençoaram a Rebeca, e disseram-lhe: Ó nossa irmã, sê tu a mãe de milhares de milhares, e que a tua descendência possua a porta de seus aborrecedores!
61 - E Rebeca se levantou com as suas moças, e subiram sobre os camelos, e seguiram o homem; e tomou aquele servo a Rebeca, e partiu.
62 - Ora, Isaque vinha de onde se vem do poço de Beer-Laai-Rói; porque habitava na terra do sul.
63 - E Isaque saíra a orar no campo, à tarde; e levantou os seus olhos, e olhou, e eis que os camelos vinham.
64 - Rebeca também levantou seus olhos, e viu a Isaque, e desceu do camelo.
65 - E disse ao servo: Quem é aquele homem que vem pelo campo ao nosso encontro? E o servo disse: Este é meu senhor. Então tomou ela o véu e cobriu-se.
66 - E o servo contou a Isaque todas as coisas que fizera.
67E Isaque trouxe-a para a tenda de sua mãe Sara, e tomou a Rebeca, e foi-lhe por mulher, e amou-a. Assim Isaque foi consolado depois da morte de sua mãe.

27 de junho de 2018

Odisséia de Homero - Livro XXIV

Dos procos o Cilênio evoca as almas,
De ouro empunhado o caduceu que os olhos
Mortais a gosto esperta e os adormece;
Elas ao toque ciciando o seguem.
5 Em divo antro profundo a revoarem,
Guincham morcegos, se um dos cachos tomba
Da rocha a que aderiram: tal se move
Trás Mercúrio benóvolo, em murmúrios
Pelo hediondo espaço, o tropel todo;
10 Vão-se ao fluido Oceano e à Pedra-Branca,
Do Sol às portas e ao dos Sonos povo.
Em prado verde, habitação dos manes,
Os do Pelides acham, de Pátraclo,
De Antíloco, de Ajax galhardo e forte,
15 Que os Dânaos superava, exceto Aquiles.
Eram deste em redor, quando Agamemnon
Surge dolente, e as sombras dos que Egisto
Em seu paço com ele assassinara.
     “Atrida, enceta Aquiles, ao Tonante
20 Nós julgávamos seres o mais caro,
Por dominares nos heróis que em Tróia
Padecemos sem conto. Ah! que o tributo
Não rendeste primeiro à Parca dura!
Naqueles campos com supremas honras
25 Tu falecesses! dos Aqueus ereto,
Glória a teu filho o monumento fora;
Era fatal misérrimo acabares!”
     E Agamemnon: “Beato herói divino,
Em torno a quem, longe da Grécia extinto,
30 Bravos Teucros e Argeus caíram tantos!
Em túrbida poeira amplo jazias,
Dos corcéis esquecido; e a combatermos
Ante o cadáver teu, só conturbados
Por um tufão de Júpiter, cessamos.
35 Posto em féretro a bordo o corpo egrégio,
Em quente água expurgado e ungido, os Gregos
Choravam, tonsa a coma. Eis, das Nereidas
Ouvida a grande voz, tremeram todos,
E nos porões iam meter-se, quando
40 Experiente Nestor, com douto aviso,
De grado concionou: — Tá! vem do pego
Tétis madre e as irmãs carpir seu filho. —
Coibida aos Grajúgenas a fuga,
Cercam-te as filhas do marinho velho,
45 Cobrem-te em ais de incorruptível manto.
As Musas nove alternam-se em lamentos:
Ninguém podia, à lugubre toada,
As lágrimas conter. Por dezassete
Noites e dias, de mortais e deuses
50 Regou-te o pranto e na seguinte aurora
Demos-te ao fogo, e ovelhas te imolamos
Gordas e negros bois; nas divas roupas,
Em óleo e doce mel, queimado foste;
Muitos peões e armados cavaleiros
55 Circundaram-te a pira estrepitosos.
De manhã, gasta a carne, os brancos ossos,
Em perfumes e vinho e ambalsamados,
Recolheu-te a mãe terna em urna de ouro,
Dom de Baco e trabalho de Vulcano.
60 Estão mistos aos teus os de Pátroclo,
Dos de Antíloco perto, a quem dos sócios,
Morto o Menécio, maiormente honravas.
E os do exército sacro te exalçamos,
Do amplo Helesponto em prominente riba
65 Um magnífico túmulo, que ao longe
Aos vivos manifeste-se e aos vindouros.
Prêmios obteve dos mais numes Tétis,
Que os pôs no circo aos príncipes Aquivos.
A régios funerais tenho assistido,
70 Onde o páreo mancebos disputavam;
Tu se os visses, Pelides, admiraras
Da mãe déia argentípede as ofertas.
Grato aos Céus, teu renome não perdeste,
Que de evo em evo troará no mundo.
75 Mas que valeu-me a guerra? Na tornada,
Júpiter propinou-me o copo amaro,
Por mãos de Egisto fero e da traidora.”
     Entretanto, o Argicida arrebanhava
As almas dos que Ulisses abatera,
80 A cujo encontro as mais com pasmo correm.
Agamemnon conhece incontinênti
O Melanteides ínclito Anfimédon,
Que em Ítaca o hospedara: “Que desastre,
Escolhidos e eqüevos, cá vos trouxe
85 Ao reino tenebroso? Não podia
Alguém numa cidade achar melhores.
Com soltos ventos e escarcéus furentes
Vos afundou Netuno? ou de inimigos
Preia fostes em terra, aos saqueardes
90 Armentos e rebanhos? ou pugnando
Pela pátria e família? Nada encubras;
Hóspede teu me chamo. Não te lembra
Que me acolheste e a Menelau divino,
Quando a embarcar-se para Tróia Ulisses
95 Fomos nós suadir? Um mês inteiro
O largo ponto aramos, e a bem custo
O eversor de muralhas demovemos.”
“Rei dos reis, Anfimédon respondeu-lhe,
Tudo me lembra, e franco vou narrar-te
100 Nosso funesto fim. Do ausente Ulisses
A esposa ambicionávamos; que, avessa
A morte a nos tramar, nos entrctinha
E, com sutil pretexto, imensa enrola
Teia fina ao tear, e assim discursa:
105 Amantes meus, depois de morto Ulisses,
Vós não me insteis, o meu lavor perdendo,
Sem que do herói Laertes a mortalha
Toda seja tecida, para quando
No sono longo o sopitar o fado:
110 Nenhuma Argiva exprobre-me um funéreo
Manto rico não ter quem teve tanto. —
Esta desculpa ingênuos aceitamos.
Ela, um triênio, desmanchava à noite
À luz da lâmpada o lavor diurno;
115 Ao depois, avisou-nos uma escrava,
E a destecer a teia a surpreendemos:
Então viu-se obrigada a concluí-la,
E aos olhos despregou-nos a luzente
Obra insigne, imitante ao Sol e à Lua.
120 Não sei donde um mau gênio trouxe Ulisses
Ao campo que habitava o guarda-porcos:
Nesses confins se reuniu seu filho,
Já da arenosa Pilos aportado;
E ambos, disposto o plano da matança,
125 Para a nobre cidade caminharam,
O herói depois, Telêmaco primeiro.
Eumeu guiava o pai, que abordoou-se
Em trajo de um decrépito mendigo,
E era tão roto e sujo e mal vestido,
130 Que aos mais idosos conservou-se ignoto.
A golpes e baldões o acometemos;
Tudo curtiu paciente em seu palácio.
Mas, do Egíaco Jove espiritado,
As armas com Telêmaco afastando,
135 Em cima as tranca, e pela astuta esposa
O arco nos apresenta e o claro ferro,
Donde se derivou nosso infortúnio.
Nenhum de nós dobrou-lhe o forte nervo,
Baldo o esforço; e, ao momento que o Laércio
140 Dessa arma ia apossar-se, blasfemamos
Que, apesar das instâncias, não lha dessem;
Mas Telêmaco insiste, e o pai, seu arco
Fácil dobrando, enfia as machadinhas.
Ao limiar, derrama a pronta aljava,
145 E gira a vista horrendo e frecha Antino;
A lutíferas setas rechinantes
(Um deus o protegia) uns após outros
Seu furor em cardumes nos prostrava:
Aos gemidos, aos botes, muge a casa
150 E se inunda em cruor. Tal fim tivemos!
No pátio os corpos nossos, ora, Atrida,
Isso amigos não sabem, que chorando,
Enxuto o negro sangue, nos sepultem;
Honra devida aos míseros finados.”
155     Grita Agamemnon: “Venturoso Ulisses,
Possuis mulher de uma virtude rara!
Do varão que pudica amou primeiro
Nunca olvidou-se; obtém perene glória,
Que hão de inspirados celebrar cantores.
160 Quão diversa a Tindárida ao marido,
Que houve-a donzela! odiosa nas balatas
Será do povo, e nódoa às mais sisudas.”
     Enquanto as almas de Plutão conversam
No vácuo reino, Ulisses e companha
165 De Laertes entravam pelo enxido,
Que a muito preço e lidas o comprara:
Tinha ali casa, e da varanda em roda
Os servos, com prazer cultivadores,
Comiam, repousavam; diligente
170 Do amo tratava, em rústico retiro,
Sícula velha. Aos três voltou-se Ulisses:
“Preparai para o almoço um bom cevado.
Verei se o pai me reconhece ainda,
Ou se ignoto me faz tamanha ausência.”
175 E as armas dando aos sócios, que partiram,
Ao pomar foi-se logo para o intento:
Não topa a Dólio e filhos e os mais servos
No grã vergel, do velho conduzidos
A colher espinheiros para sebes;
180 Só acha o pai no amanho de uma planta:
Sórdida a capa e remendada a roupa,
Luvas grosseiras, borzeguins de coiro,
Para evitar esfoladuras, tinha;
Gorra caprina o luto lhe aumentava.
185 Desde que o divo sofredor o enxerga
Dos anos e desgostos combalido,
Quedo pranteia à sombra de um pereiro;
Hesita se o abrace e o beije e informe,
Ou se antes com perguntas o exprimente.
190 Mordaz sondá-lo preferindo, avança
Quando, baixa a cabeça, ele de roda
Cavava um tronco, e lhe bradou: “Meu velho,
Não és inábil; a pereira, a vide,
A oliveira, a figueira, o estão mostrando,
195 Nem há palmo de terra sem cultura;
Mas não te agastes, se o desleixo noto
Com que trapento afeias essa idade.
O amo não te maltrata pela incúria,
Nem tens servil presença; um rei no vulto
200 Semelhas ao que, já banhado, come
Para em mole dormir, jus da velhice.
Mas de quem és? o prédio a quem pertence?
Em Ítaca em verdade agora estamos,
Como um certo em caminho asseverou-me?
205 Brusco foi-se e imprudente, sem dizer-me
Se o meu hóspede é vivo, ou se entre os manes.
Na pátria, escuta, recebi festivo
O herói primeiro que a meu lar sentou-se:
De Ítaca era nativo, e se aclamava
210 Por filho do Arcebíades Laertes.
Com bondade acolhi-o, e generoso
Dons hospitais lhe presentei condignos:
De ouro talentos sete bem cunhados,
Copa argêntea florida, capas doze,
215 Doze mantos louçãos, e iguais tapetes
E túnicas iguais; por cima, à escolha,
Quatro prendadas e gentis mulheres.”
     Em choro o pai: “Chegaste, forasteiro,
À terra que me indicas, velhacouto
220 De malvados cruéis. Teus dons frustraste:
Se ele aqui fosse, em câmbio encontrarias
Também dons e benévolo agasalho.
Sê franco, esse infeliz, que era meu filho,
Em que ano o recebeste?. .. Oh! fútil sonho!
225 Dos seus longe e da pátria, no profundo
Foi mantimento a peixes, a terrestres
Aves ou feras! Na mortalha envolto,
Da mãe, do genitor, não foi carpido,
Nem a casta mulher fechou-lhe os olhos,
230 A lamentar no féretro o consorte;
Sacro dever, dos mortos recompensa.
Mas quem és, me declares, de que povo,
De que família? A nau veloz e os nautas
Onde os tens? ou vieste em vaso alheio,
235 Que te largou, na rota prosseguindo.”
     Pronto Ulisses: “Eu tudo vou narrar-te.
Prole de Afidas rei Polipemônio,
Sou de Alibas, em nobre alcáçar moro,
Eperito é meu nome; da Sicânia
240 Fez-me arribar um nume, e tenho surto
Na costa o meu navio. Quanto a Ulisses,
Anda em cinco anos que saiu de Alibas:
Voláteis à direita lhe adejavam;
Ao despedir-nos, ambos nós contentes
245 Rever-nos esperávamos, e um dia
Riquezas mutuar, doce amizade.”
     Um negrume de mágoas tolda o velho;
Pega da ardente cinza, a encanecida
Cabeça asperge, do íntimo soluça.
250 Comoto o herói, das ventas resfolgando,
Olha o dileto pai, salta-lhe ao colo,
E o beija e abraça: “Ó pai, sou quem suspiras,
Vindo ao vigésimo ano à pátria amada;
Essas penas e lágrimas reprime.
255 Atende-me, urge o tempo; em nossos paços
Vinguei-me já de injúrias e insolência.”
     A quem Laertes: “Se és meu próprio Ulisses,
Dá-me um claro sinal que mo comprove.”
“Na cicatriz repara (ao pai mostrou-a)
260 Do alvo dente suíno, indo eu, por ordem
Materna e tua, às abas do Parnaso,
Pelas promessas que anuiu teu sogro.
As árvores direi que tu, rogado
Por mim que infante os passos te seguia
265 Pelo vergel, me deste, a nomeá-las
Uma a uma: pereiras foram treze,
Macieiras dez, em quádruplo as figueiras;
Marcaste-me também cinqüenta renques
De uvas de toda casta, que maduram
270 Quando nelas de Jove as horas pesam.”
     Do velho, a provas tais, frouxas as pernas,
Desmaia o coração; mas lança os braços
Ao filho, que nos seus o estreita e cinge.
O pai já cobra alento: “Ó sumo Jove,
275 Desses procos o crime a estar punido,
Certo no Olimpo há deuses. Mas hei medo
Que a turba assalte e invoque os Cefalenes.”
Ulisses o acalmou: “Receios bane.
À casa andemos do jardim vizinha:
280 Telêmaco, Filétio e Eumeu, diante
Mandei que à pressa o almoço nos preparem.”
     Já na mansão formosa aos três encontram,
Partindo as carnes, misturando os vinhos.
Lava primeiro e unge, orna e reveste
285 Ao bom Laertes a Sicana serva;
Porém Minerva os membros lhe engrandece,
Majestoso e divino sai do banho.
O filho o admira: “Gentileza e talhe,
Ó pai, te aumenta um nume!” E o velho: “Ó Jove,
290 Palas e Apolo, eu fosse o mesmo que era
Quando rendi, com Cefalênias hostes,
No continente a Nérico soberba!
Arnesado e brioso os vis intrusos
Também contigo repelira; a muitos
295 Os joelhos solvera, e tu folgaras.”
     Entanto, prestes o festim, por ordem
Em camilhas e tronos se abancavam;
Eis chega Dólio do labor e os filhos.
A eles corre a Sícula, que anosa
300 Todos nutria e do ancião tratava;
Mudos pasmaram de rever seu amo,
Que afável os convida: “À mesa, ó velho,
À mesa, o espanto cesse; à vossa espera,
Ávidas mãos retínhamos dos pratos.”
305 Braços abertos, se lhe atira Dólio,
Do amo os pulsos oscula: “Amigo, os votos
Nos enches de improviso, e pois os deuses
Te restituem, salve! alegre exultes
No grêmio da ventura! À esposa a nova
310 É já notória, ou cumpre anunciarmos?”
“Ela o sabe, responde o astuto e cauto;
Mas nisso que te vai?” Tornado ao posto,
Beijam-lhe a destra os moços e o saúdam,
E junto ao pai em ordem se colocam.
315 O trabalho do almoço ocupa a todos.
     Na cidade se espalha a triste fama
Da vingança: ante o paço estrepitosa
Carpe a gente, os cadáveres enterra;
Embarca em leves bojos os que à pátria
320 Ir deviam por mar; com dor se ajunta
O parlamento. Em luto inexprimível
Eupiteu se levanta, a cujo filho
Antimo o divo herói matou primeiro,
E em soluços e lágrimas acusa:
325 “Amigos, oh! que horror, que atroz maldade!
Esse homem naus levou, levou guerreiros;
Frota e nautas perdeu: na volta, agora,
Deu cabo dos melhores Cefalenes.
Eia, antes que ele a Pilos se recolha,
330 Ou busque a dos Epeus Élide santa,
Vamos; ou torpe vida e eterno opróbrio
Tem de caber-nos: se de irmãos e filhos
Não punimos os brutos matadores,
Sombra unir-me anteponho a sombras caras.
335 Vamos, vamos, os bárbaros não fujam.”
     Seu lastimar os corações comove;
Mas do palácio, em que os deteve o sono,
Chegam Médon e o músico divino;
Médon pondera: “Aquivos, nunca Ulisses
340 Tanto obrara sem nume: um vi que avante,
Na forma de Mentor, na sala o instava,
E o tropel todo em ruma ia caindo.”
Palor súbito invade os circunstantes.
     Ergueu-se o herói Mastórida Haliterse,
345 No passado o mais douto e no futuro,
E orou sisudo: “Cidadãos e amigos,
Do feito a culpa tendes; não quisestes,
Surdos aos de Mentor e aos meus conselhos,
Flagício enorme sopear dos filhos,
350 Que, os bens roendo, injuriando a esposa,
Com tão potente rei já não contavam.
É sem remédio. Ouvi-me agora ao menos:
Mores desastres atalhai, não vamos.”
     A assembléia divide-se em tumulto:
355 Uns de Haliterse à voz se aquietaram;
Mas outros, ao combate persuadidos,
Em corpo avançam, reluzindo em bronze,
Por vastas ruas, de Eupiteu sequazes,
Que cego ou desagravo ou morte anela.
360 Consulta ao pai Minerva: “Ó soberano,
Que tens na mente? Guerra ou congraçá-los?”
E o Nubícogo: “Filha, que perguntas?
Não traçaste que à volta se vingasse?
Pois bem. Direi contudo o que é decente:
365 Vingado o herói divino, assente as pazes;
Reine em povos leais; de irmãos e filhos
O castigo apaguemos sanguinoso;
Renove-se a amizade, haja abundância.”
Disse, o ardor a Minerva acrescentando,
370 Que do jugoso Olimpo se arremessa.
     Apaziguada a fome, aos companheiros
Adverte Ulisses: “Veja alguém se perto
Já nos atacam.” Sai de Dólio um filho,
E enxerga logo da soleira a turba:
375 “Arma, arma, grita, a gente se aproxima.”
Armam-se os quatro, e os seis irmãos com eles;
E Laertes e Dólio, encanecidos,
No perigo urgentíssimo se arnesam.
De ponto em branco, as portas escancaram,
380 Precipitam-se fora, e os manda Ulisses;
Disfarçada em Mentor, veio ampará-los
A Tritônia, de Jove augusta prole.
     Ledo o chefe do auxílio: “Hoje, meu caro
Telêmaco, aos mais fortes investindo,
385 Mostres brio e vigor; nem me envergonhes,
Nem dos caros maiores degeneres.”
E Telêmaco: “À frente, ó pai dileto,
Ver-mes-ás honrando sempre a estirpe tua.”
     Regozijou-se o avô: “Propícios deuses,
390 Rivais são na virtude o filho e o neto!
Que dia! que prazer!” — E a gázea Palas:
“Arcesíades, sócio o mais querido,
Roga a Minerva e ao Padre, afouto vibres.”
Ela ânimo e denodo aqui lhe infunde;
395 O herói, finda a oração, de Eupiteu rompe
De lança o elmo, à queda o arnês ressoa.
Ulisses e Telêmaco os mais bravos
Talham de espada e pique, e total fora
O estrago e perda, se a gritar Minerva
400 Não contivesse o povo: “Ítacos, basta,
Já já da da crua guerra separai-vos.”
     Pálido susto, à voz divina, os toma;
Das mãos voando as armas, ansiosos
De resguardar as vidas, se retiram:
405 Furente Ulisses a bramir os segue,
Tal como águia altaneira as nuvens rasga.
Então fulmina Júpiter, e o raio
Cai ante Palas, que ao Laércio intima:
“Dial cordato aluno, abster-te cumpre
410 Da discórdia civil, para que infesto
Não te seja o Tonante onipotente.”
     Gostoso à deusa Ulisses obedece.
A Mentor semelhando em som e em vulto,
Sela a paz a do Egífero progênie.

NOTAS AO LIVRO XXIV
6-17 — Cacho, correspondente ao latim uva neste sentido, é o grupo em que se englobam certos animais, como as abelhas e os morcegos. — Homero chama eurõenta; isto é, podres ou hediondos, os caminhos por onde se conduzem os mortos. — Pedra-Branca é o nome de certo lugar por onde passavam as almas. — Dolente, posto que não venha em dicionário, é usado por Francisco Manuel.
247-270 — Depois de tantos reconhecimentos que há na Odisséia, é para louvar que Homero guardasse os toques mais belos e maviosos para este reconhecimento de Laertes, que era o último, comprovando sempre a sua pasmosa fecundidade.
315 — Este repasto é um almoço, não obstante prandium e cœna de que usa neste livro a interpretação latina.
342 — Dizemos rima ou ruma: preferi neste verso ruma, para não repetir a vogal i que vem nele muitas vezes.
370 — Jugoso, tirado do latim, significa cheio de cumes ou picos.

ADVERTÊNCIA
Nas notas aos dous poemas de Homero, sou mais parco de reflexões gerais, do que o fui nas feitas a Virgílio; e a razão é que, aparecendo em verso português a primeira tradução completa da Ilíada e da Odisséia, julguei útil que as notas versassem principalmente sobre o sentido que dei a várias passagens dificultosas, contra o parecer de eruditos e de tradutores. — Quando falo, em toda esta obra, de interpretação latina, entenda-se da que é mais espalhada nas nossas escolas, reimpressa em Paris em 1747. Ir ao índice do livro
FIM