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Odisséia de Homero - Livro XXIV

Dos procos o Cilênio evoca as almas,
De ouro empunhado o caduceu que os olhos
Mortais a gosto esperta e os adormece;
Elas ao toque ciciando o seguem.
5 Em divo antro profundo a revoarem,
Guincham morcegos, se um dos cachos tomba
Da rocha a que aderiram: tal se move
Trás Mercúrio benóvolo, em murmúrios
Pelo hediondo espaço, o tropel todo;
10 Vão-se ao fluido Oceano e à Pedra-Branca,
Do Sol às portas e ao dos Sonos povo.
Em prado verde, habitação dos manes,
Os do Pelides acham, de Pátraclo,
De Antíloco, de Ajax galhardo e forte,
15 Que os Dânaos superava, exceto Aquiles.
Eram deste em redor, quando Agamemnon
Surge dolente, e as sombras dos que Egisto
Em seu paço com ele assassinara.
     “Atrida, enceta Aquiles, ao Tonante
20 Nós julgávamos seres o mais caro,
Por dominares nos heróis que em Tróia
Padecemos sem conto. Ah! que o tributo
Não rendeste primeiro à Parca dura!
Naqueles campos com supremas honras
25 Tu falecesses! dos Aqueus ereto,
Glória a teu filho o monumento fora;
Era fatal misérrimo acabares!”
     E Agamemnon: “Beato herói divino,
Em torno a quem, longe da Grécia extinto,
30 Bravos Teucros e Argeus caíram tantos!
Em túrbida poeira amplo jazias,
Dos corcéis esquecido; e a combatermos
Ante o cadáver teu, só conturbados
Por um tufão de Júpiter, cessamos.
35 Posto em féretro a bordo o corpo egrégio,
Em quente água expurgado e ungido, os Gregos
Choravam, tonsa a coma. Eis, das Nereidas
Ouvida a grande voz, tremeram todos,
E nos porões iam meter-se, quando
40 Experiente Nestor, com douto aviso,
De grado concionou: — Tá! vem do pego
Tétis madre e as irmãs carpir seu filho. —
Coibida aos Grajúgenas a fuga,
Cercam-te as filhas do marinho velho,
45 Cobrem-te em ais de incorruptível manto.
As Musas nove alternam-se em lamentos:
Ninguém podia, à lugubre toada,
As lágrimas conter. Por dezassete
Noites e dias, de mortais e deuses
50 Regou-te o pranto e na seguinte aurora
Demos-te ao fogo, e ovelhas te imolamos
Gordas e negros bois; nas divas roupas,
Em óleo e doce mel, queimado foste;
Muitos peões e armados cavaleiros
55 Circundaram-te a pira estrepitosos.
De manhã, gasta a carne, os brancos ossos,
Em perfumes e vinho e ambalsamados,
Recolheu-te a mãe terna em urna de ouro,
Dom de Baco e trabalho de Vulcano.
60 Estão mistos aos teus os de Pátroclo,
Dos de Antíloco perto, a quem dos sócios,
Morto o Menécio, maiormente honravas.
E os do exército sacro te exalçamos,
Do amplo Helesponto em prominente riba
65 Um magnífico túmulo, que ao longe
Aos vivos manifeste-se e aos vindouros.
Prêmios obteve dos mais numes Tétis,
Que os pôs no circo aos príncipes Aquivos.
A régios funerais tenho assistido,
70 Onde o páreo mancebos disputavam;
Tu se os visses, Pelides, admiraras
Da mãe déia argentípede as ofertas.
Grato aos Céus, teu renome não perdeste,
Que de evo em evo troará no mundo.
75 Mas que valeu-me a guerra? Na tornada,
Júpiter propinou-me o copo amaro,
Por mãos de Egisto fero e da traidora.”
     Entretanto, o Argicida arrebanhava
As almas dos que Ulisses abatera,
80 A cujo encontro as mais com pasmo correm.
Agamemnon conhece incontinênti
O Melanteides ínclito Anfimédon,
Que em Ítaca o hospedara: “Que desastre,
Escolhidos e eqüevos, cá vos trouxe
85 Ao reino tenebroso? Não podia
Alguém numa cidade achar melhores.
Com soltos ventos e escarcéus furentes
Vos afundou Netuno? ou de inimigos
Preia fostes em terra, aos saqueardes
90 Armentos e rebanhos? ou pugnando
Pela pátria e família? Nada encubras;
Hóspede teu me chamo. Não te lembra
Que me acolheste e a Menelau divino,
Quando a embarcar-se para Tróia Ulisses
95 Fomos nós suadir? Um mês inteiro
O largo ponto aramos, e a bem custo
O eversor de muralhas demovemos.”
“Rei dos reis, Anfimédon respondeu-lhe,
Tudo me lembra, e franco vou narrar-te
100 Nosso funesto fim. Do ausente Ulisses
A esposa ambicionávamos; que, avessa
A morte a nos tramar, nos entrctinha
E, com sutil pretexto, imensa enrola
Teia fina ao tear, e assim discursa:
105 Amantes meus, depois de morto Ulisses,
Vós não me insteis, o meu lavor perdendo,
Sem que do herói Laertes a mortalha
Toda seja tecida, para quando
No sono longo o sopitar o fado:
110 Nenhuma Argiva exprobre-me um funéreo
Manto rico não ter quem teve tanto. —
Esta desculpa ingênuos aceitamos.
Ela, um triênio, desmanchava à noite
À luz da lâmpada o lavor diurno;
115 Ao depois, avisou-nos uma escrava,
E a destecer a teia a surpreendemos:
Então viu-se obrigada a concluí-la,
E aos olhos despregou-nos a luzente
Obra insigne, imitante ao Sol e à Lua.
120 Não sei donde um mau gênio trouxe Ulisses
Ao campo que habitava o guarda-porcos:
Nesses confins se reuniu seu filho,
Já da arenosa Pilos aportado;
E ambos, disposto o plano da matança,
125 Para a nobre cidade caminharam,
O herói depois, Telêmaco primeiro.
Eumeu guiava o pai, que abordoou-se
Em trajo de um decrépito mendigo,
E era tão roto e sujo e mal vestido,
130 Que aos mais idosos conservou-se ignoto.
A golpes e baldões o acometemos;
Tudo curtiu paciente em seu palácio.
Mas, do Egíaco Jove espiritado,
As armas com Telêmaco afastando,
135 Em cima as tranca, e pela astuta esposa
O arco nos apresenta e o claro ferro,
Donde se derivou nosso infortúnio.
Nenhum de nós dobrou-lhe o forte nervo,
Baldo o esforço; e, ao momento que o Laércio
140 Dessa arma ia apossar-se, blasfemamos
Que, apesar das instâncias, não lha dessem;
Mas Telêmaco insiste, e o pai, seu arco
Fácil dobrando, enfia as machadinhas.
Ao limiar, derrama a pronta aljava,
145 E gira a vista horrendo e frecha Antino;
A lutíferas setas rechinantes
(Um deus o protegia) uns após outros
Seu furor em cardumes nos prostrava:
Aos gemidos, aos botes, muge a casa
150 E se inunda em cruor. Tal fim tivemos!
No pátio os corpos nossos, ora, Atrida,
Isso amigos não sabem, que chorando,
Enxuto o negro sangue, nos sepultem;
Honra devida aos míseros finados.”
155     Grita Agamemnon: “Venturoso Ulisses,
Possuis mulher de uma virtude rara!
Do varão que pudica amou primeiro
Nunca olvidou-se; obtém perene glória,
Que hão de inspirados celebrar cantores.
160 Quão diversa a Tindárida ao marido,
Que houve-a donzela! odiosa nas balatas
Será do povo, e nódoa às mais sisudas.”
     Enquanto as almas de Plutão conversam
No vácuo reino, Ulisses e companha
165 De Laertes entravam pelo enxido,
Que a muito preço e lidas o comprara:
Tinha ali casa, e da varanda em roda
Os servos, com prazer cultivadores,
Comiam, repousavam; diligente
170 Do amo tratava, em rústico retiro,
Sícula velha. Aos três voltou-se Ulisses:
“Preparai para o almoço um bom cevado.
Verei se o pai me reconhece ainda,
Ou se ignoto me faz tamanha ausência.”
175 E as armas dando aos sócios, que partiram,
Ao pomar foi-se logo para o intento:
Não topa a Dólio e filhos e os mais servos
No grã vergel, do velho conduzidos
A colher espinheiros para sebes;
180 Só acha o pai no amanho de uma planta:
Sórdida a capa e remendada a roupa,
Luvas grosseiras, borzeguins de coiro,
Para evitar esfoladuras, tinha;
Gorra caprina o luto lhe aumentava.
185 Desde que o divo sofredor o enxerga
Dos anos e desgostos combalido,
Quedo pranteia à sombra de um pereiro;
Hesita se o abrace e o beije e informe,
Ou se antes com perguntas o exprimente.
190 Mordaz sondá-lo preferindo, avança
Quando, baixa a cabeça, ele de roda
Cavava um tronco, e lhe bradou: “Meu velho,
Não és inábil; a pereira, a vide,
A oliveira, a figueira, o estão mostrando,
195 Nem há palmo de terra sem cultura;
Mas não te agastes, se o desleixo noto
Com que trapento afeias essa idade.
O amo não te maltrata pela incúria,
Nem tens servil presença; um rei no vulto
200 Semelhas ao que, já banhado, come
Para em mole dormir, jus da velhice.
Mas de quem és? o prédio a quem pertence?
Em Ítaca em verdade agora estamos,
Como um certo em caminho asseverou-me?
205 Brusco foi-se e imprudente, sem dizer-me
Se o meu hóspede é vivo, ou se entre os manes.
Na pátria, escuta, recebi festivo
O herói primeiro que a meu lar sentou-se:
De Ítaca era nativo, e se aclamava
210 Por filho do Arcebíades Laertes.
Com bondade acolhi-o, e generoso
Dons hospitais lhe presentei condignos:
De ouro talentos sete bem cunhados,
Copa argêntea florida, capas doze,
215 Doze mantos louçãos, e iguais tapetes
E túnicas iguais; por cima, à escolha,
Quatro prendadas e gentis mulheres.”
     Em choro o pai: “Chegaste, forasteiro,
À terra que me indicas, velhacouto
220 De malvados cruéis. Teus dons frustraste:
Se ele aqui fosse, em câmbio encontrarias
Também dons e benévolo agasalho.
Sê franco, esse infeliz, que era meu filho,
Em que ano o recebeste?. .. Oh! fútil sonho!
225 Dos seus longe e da pátria, no profundo
Foi mantimento a peixes, a terrestres
Aves ou feras! Na mortalha envolto,
Da mãe, do genitor, não foi carpido,
Nem a casta mulher fechou-lhe os olhos,
230 A lamentar no féretro o consorte;
Sacro dever, dos mortos recompensa.
Mas quem és, me declares, de que povo,
De que família? A nau veloz e os nautas
Onde os tens? ou vieste em vaso alheio,
235 Que te largou, na rota prosseguindo.”
     Pronto Ulisses: “Eu tudo vou narrar-te.
Prole de Afidas rei Polipemônio,
Sou de Alibas, em nobre alcáçar moro,
Eperito é meu nome; da Sicânia
240 Fez-me arribar um nume, e tenho surto
Na costa o meu navio. Quanto a Ulisses,
Anda em cinco anos que saiu de Alibas:
Voláteis à direita lhe adejavam;
Ao despedir-nos, ambos nós contentes
245 Rever-nos esperávamos, e um dia
Riquezas mutuar, doce amizade.”
     Um negrume de mágoas tolda o velho;
Pega da ardente cinza, a encanecida
Cabeça asperge, do íntimo soluça.
250 Comoto o herói, das ventas resfolgando,
Olha o dileto pai, salta-lhe ao colo,
E o beija e abraça: “Ó pai, sou quem suspiras,
Vindo ao vigésimo ano à pátria amada;
Essas penas e lágrimas reprime.
255 Atende-me, urge o tempo; em nossos paços
Vinguei-me já de injúrias e insolência.”
     A quem Laertes: “Se és meu próprio Ulisses,
Dá-me um claro sinal que mo comprove.”
“Na cicatriz repara (ao pai mostrou-a)
260 Do alvo dente suíno, indo eu, por ordem
Materna e tua, às abas do Parnaso,
Pelas promessas que anuiu teu sogro.
As árvores direi que tu, rogado
Por mim que infante os passos te seguia
265 Pelo vergel, me deste, a nomeá-las
Uma a uma: pereiras foram treze,
Macieiras dez, em quádruplo as figueiras;
Marcaste-me também cinqüenta renques
De uvas de toda casta, que maduram
270 Quando nelas de Jove as horas pesam.”
     Do velho, a provas tais, frouxas as pernas,
Desmaia o coração; mas lança os braços
Ao filho, que nos seus o estreita e cinge.
O pai já cobra alento: “Ó sumo Jove,
275 Desses procos o crime a estar punido,
Certo no Olimpo há deuses. Mas hei medo
Que a turba assalte e invoque os Cefalenes.”
Ulisses o acalmou: “Receios bane.
À casa andemos do jardim vizinha:
280 Telêmaco, Filétio e Eumeu, diante
Mandei que à pressa o almoço nos preparem.”
     Já na mansão formosa aos três encontram,
Partindo as carnes, misturando os vinhos.
Lava primeiro e unge, orna e reveste
285 Ao bom Laertes a Sicana serva;
Porém Minerva os membros lhe engrandece,
Majestoso e divino sai do banho.
O filho o admira: “Gentileza e talhe,
Ó pai, te aumenta um nume!” E o velho: “Ó Jove,
290 Palas e Apolo, eu fosse o mesmo que era
Quando rendi, com Cefalênias hostes,
No continente a Nérico soberba!
Arnesado e brioso os vis intrusos
Também contigo repelira; a muitos
295 Os joelhos solvera, e tu folgaras.”
     Entanto, prestes o festim, por ordem
Em camilhas e tronos se abancavam;
Eis chega Dólio do labor e os filhos.
A eles corre a Sícula, que anosa
300 Todos nutria e do ancião tratava;
Mudos pasmaram de rever seu amo,
Que afável os convida: “À mesa, ó velho,
À mesa, o espanto cesse; à vossa espera,
Ávidas mãos retínhamos dos pratos.”
305 Braços abertos, se lhe atira Dólio,
Do amo os pulsos oscula: “Amigo, os votos
Nos enches de improviso, e pois os deuses
Te restituem, salve! alegre exultes
No grêmio da ventura! À esposa a nova
310 É já notória, ou cumpre anunciarmos?”
“Ela o sabe, responde o astuto e cauto;
Mas nisso que te vai?” Tornado ao posto,
Beijam-lhe a destra os moços e o saúdam,
E junto ao pai em ordem se colocam.
315 O trabalho do almoço ocupa a todos.
     Na cidade se espalha a triste fama
Da vingança: ante o paço estrepitosa
Carpe a gente, os cadáveres enterra;
Embarca em leves bojos os que à pátria
320 Ir deviam por mar; com dor se ajunta
O parlamento. Em luto inexprimível
Eupiteu se levanta, a cujo filho
Antimo o divo herói matou primeiro,
E em soluços e lágrimas acusa:
325 “Amigos, oh! que horror, que atroz maldade!
Esse homem naus levou, levou guerreiros;
Frota e nautas perdeu: na volta, agora,
Deu cabo dos melhores Cefalenes.
Eia, antes que ele a Pilos se recolha,
330 Ou busque a dos Epeus Élide santa,
Vamos; ou torpe vida e eterno opróbrio
Tem de caber-nos: se de irmãos e filhos
Não punimos os brutos matadores,
Sombra unir-me anteponho a sombras caras.
335 Vamos, vamos, os bárbaros não fujam.”
     Seu lastimar os corações comove;
Mas do palácio, em que os deteve o sono,
Chegam Médon e o músico divino;
Médon pondera: “Aquivos, nunca Ulisses
340 Tanto obrara sem nume: um vi que avante,
Na forma de Mentor, na sala o instava,
E o tropel todo em ruma ia caindo.”
Palor súbito invade os circunstantes.
     Ergueu-se o herói Mastórida Haliterse,
345 No passado o mais douto e no futuro,
E orou sisudo: “Cidadãos e amigos,
Do feito a culpa tendes; não quisestes,
Surdos aos de Mentor e aos meus conselhos,
Flagício enorme sopear dos filhos,
350 Que, os bens roendo, injuriando a esposa,
Com tão potente rei já não contavam.
É sem remédio. Ouvi-me agora ao menos:
Mores desastres atalhai, não vamos.”
     A assembléia divide-se em tumulto:
355 Uns de Haliterse à voz se aquietaram;
Mas outros, ao combate persuadidos,
Em corpo avançam, reluzindo em bronze,
Por vastas ruas, de Eupiteu sequazes,
Que cego ou desagravo ou morte anela.
360 Consulta ao pai Minerva: “Ó soberano,
Que tens na mente? Guerra ou congraçá-los?”
E o Nubícogo: “Filha, que perguntas?
Não traçaste que à volta se vingasse?
Pois bem. Direi contudo o que é decente:
365 Vingado o herói divino, assente as pazes;
Reine em povos leais; de irmãos e filhos
O castigo apaguemos sanguinoso;
Renove-se a amizade, haja abundância.”
Disse, o ardor a Minerva acrescentando,
370 Que do jugoso Olimpo se arremessa.
     Apaziguada a fome, aos companheiros
Adverte Ulisses: “Veja alguém se perto
Já nos atacam.” Sai de Dólio um filho,
E enxerga logo da soleira a turba:
375 “Arma, arma, grita, a gente se aproxima.”
Armam-se os quatro, e os seis irmãos com eles;
E Laertes e Dólio, encanecidos,
No perigo urgentíssimo se arnesam.
De ponto em branco, as portas escancaram,
380 Precipitam-se fora, e os manda Ulisses;
Disfarçada em Mentor, veio ampará-los
A Tritônia, de Jove augusta prole.
     Ledo o chefe do auxílio: “Hoje, meu caro
Telêmaco, aos mais fortes investindo,
385 Mostres brio e vigor; nem me envergonhes,
Nem dos caros maiores degeneres.”
E Telêmaco: “À frente, ó pai dileto,
Ver-mes-ás honrando sempre a estirpe tua.”
     Regozijou-se o avô: “Propícios deuses,
390 Rivais são na virtude o filho e o neto!
Que dia! que prazer!” — E a gázea Palas:
“Arcesíades, sócio o mais querido,
Roga a Minerva e ao Padre, afouto vibres.”
Ela ânimo e denodo aqui lhe infunde;
395 O herói, finda a oração, de Eupiteu rompe
De lança o elmo, à queda o arnês ressoa.
Ulisses e Telêmaco os mais bravos
Talham de espada e pique, e total fora
O estrago e perda, se a gritar Minerva
400 Não contivesse o povo: “Ítacos, basta,
Já já da da crua guerra separai-vos.”
     Pálido susto, à voz divina, os toma;
Das mãos voando as armas, ansiosos
De resguardar as vidas, se retiram:
405 Furente Ulisses a bramir os segue,
Tal como águia altaneira as nuvens rasga.
Então fulmina Júpiter, e o raio
Cai ante Palas, que ao Laércio intima:
“Dial cordato aluno, abster-te cumpre
410 Da discórdia civil, para que infesto
Não te seja o Tonante onipotente.”
     Gostoso à deusa Ulisses obedece.
A Mentor semelhando em som e em vulto,
Sela a paz a do Egífero progênie.

NOTAS AO LIVRO XXIV
6-17 — Cacho, correspondente ao latim uva neste sentido, é o grupo em que se englobam certos animais, como as abelhas e os morcegos. — Homero chama eurõenta; isto é, podres ou hediondos, os caminhos por onde se conduzem os mortos. — Pedra-Branca é o nome de certo lugar por onde passavam as almas. — Dolente, posto que não venha em dicionário, é usado por Francisco Manuel.
247-270 — Depois de tantos reconhecimentos que há na Odisséia, é para louvar que Homero guardasse os toques mais belos e maviosos para este reconhecimento de Laertes, que era o último, comprovando sempre a sua pasmosa fecundidade.
315 — Este repasto é um almoço, não obstante prandium e cœna de que usa neste livro a interpretação latina.
342 — Dizemos rima ou ruma: preferi neste verso ruma, para não repetir a vogal i que vem nele muitas vezes.
370 — Jugoso, tirado do latim, significa cheio de cumes ou picos.

ADVERTÊNCIA
Nas notas aos dous poemas de Homero, sou mais parco de reflexões gerais, do que o fui nas feitas a Virgílio; e a razão é que, aparecendo em verso português a primeira tradução completa da Ilíada e da Odisséia, julguei útil que as notas versassem principalmente sobre o sentido que dei a várias passagens dificultosas, contra o parecer de eruditos e de tradutores. — Quando falo, em toda esta obra, de interpretação latina, entenda-se da que é mais espalhada nas nossas escolas, reimpressa em Paris em 1747. Ir ao índice do livro
FIM

Odisséia de Homero - Livro XXII

Despe os trapos o herói, pula à soleira
De arco e de aljava, e aos pés derrama as frechas,
Dizendo aos procos: “A árdua empresa é finda;
Num alvo nunca dantes alcançado
5 A mira tenho, e dê-me glória Febo.”
     A Antino aqui dispara o tiro acerbo,
Quando ele as duas asas d’áurea taça
Maneava, e o licor ia empinando,
Não cuidoso da morte. Quem previra
10 Que entre muitos um só, famoso embora,
À Parca o renderia? A ponta o vara
Da goela à cerviz tenra; ao golpe, Antino
Deixa a taça cair, de ilharga tomba;
Sangue das ventas jorra, e a pés convulso
15 A mesa empurra; espalha-se a comida,
Suja-se a carne e o pão. Ferve o tumulto;
Erguem-se alvorotados, procurando
Em vão, pelas paredes esculpidas,
Escudo ou lança, em cólera fremiam:
20 “Que! forasteiro, aos homens é que apontas!
Final proeza: abutres vão tragar-te;
Mataste a flor dos Ítacos mancebos.
     Louco! acidental suponho o caso,
Nenhum tão iminente o fado cria”;
25 Mas carrancudo Ulisses: “Cães! julgando
Que eu de Ílio não viesse, consumida
Nossa fazenda, as servas estupráveis,
E de um vivo a consorte pretendíeis,
Sem pejo nem temor de homens e deuses!
30 Agora transporei o umbral da morte.”
     Susto e palor os cobre; olhando buscam
Algum refúgio, e Eurímaco responde:
“Se és na verdade Ulisses Itacense,
Tens razão, porque os Dânoas cometeram
35 Neste paço e no campo iniquidades.
Mas ali jaz quem foi de tudo causa,
Antino: a tais ofensas induziu-nos,
Por amor não das núpcias, por cobiça
E ambição de reinar; quis de teu filho,
40 O que o Satúrnio lhe tolheu, dar cabo.
As traições expiou; poupa teus povos.
Será pública a emenda, e prometemos,
Pagando quanto aqui te consumimos,
Cada um com vinte bois satisfazer-te,
45 Com ouro e bronze que teu peito alegrem.
O desagravo aplaque-te os furores.”
     Tétrico o herói: “Toda a paterna herança
E muito mais, Eurímaco, me désseis,
A desforra cruenta era infalível.
50 Só vos pode salvar combate ou fuga;
Nenhum cuido porém que a Parca evite.”
     Esmoreceu com isto, os joelhos frouxam,
E Eurímaco replica: “Aljava e arco
Ele não deporá das mãos invictas,
55 Sem que do limiar nos prostre, amigos.
Sus, dos gládios puxai, fazer das mesas
Reparo aos tiros seus; num grupo unidos,
O expilamos do ingresso, e reclamemos
Pela cidade auxílio: último o dia
60 Seja em que setas rápidas jacule.”
     O bronze afiado arranca de dous gumes,
Salta horrendo a rugir contra o Laércio;
Que lesto à mama o fere, e a veloz farpa
No fígado lhe prega: a espada vai-se;
65 Revolto em cerco à mesa, donde rola
Comida e louça, de cabeça em terra
Bate, e a pés, convulsivo e agonizante,
Sacode o assento; a vista se lhe entrava.
     Corre Anfínomo a Ulisses glorioso,
70 De alfanje nu, para o expelir da entrada;
Mas o pique Telêmaco entre os ombros
Atrás lhe enterra e os peitos lhe traspassa;
Só não lho extrai, de medo que, ao sacá-lo,
Prono o apunhalem. Súbito recorre
75 A seu pai: “Vou trazer-te aêneo casco,
Dous dardos e um broquel. Tempo é de armar-me
E os pastores fiéis.” — “Sim, volve Ulisses,
Não tardes, filho; enquanto as frechas durem,
Todos eles das portas não me arredam.”
80 À voz do caro pai, despede aonde
Recolheram-se as armas; oito escudos,
Hastas oito, quatro elmos traz cristados,
E ao campeão de pronto vem juntar-se;
Arneza-se primeiro e os dous pastores,
85 Com quem de Ulisses em redor se posta.
Do cauto herói cada frechada abate
Um dos procos, e em pilha iam caindo.
Esgotado o carcás, à ombreira o encosta
E o válido arco à nítida fachada;
90 Quádruple escudo embraça, rígido elmo
Nutante enfia de cocar eqüino,
Éreos dardos fortíssimos apunha.
     Alta janela havia na parede,
E ao cabo do vestíbulo de tábuas
95 Estreita rampa, a única subida:
Manda Ulisses a Eumeu que ali vigie.
Agelau, que o percebe: “Amigos, disse,
Não há quem monte à superior janela,
Pelo povo a bradar? com sua ajuda,
100 Este homem nunca mais dardejaria.”
     Melântio refletiu: “Não é possível,
Divo Agelau; que a rampa, junta ao pátio,
Por empinada e angusta, um só valente
Basta a guardá-la. Acima eu vou pôr armas,
105 Ânimo! estão, suponho, em celsa estância,
Onde Ulisses e o filho as depuseram.”
     Por interior escada ei-lo que passa
À câmara de Ulisses, donde aos procos
Doze dardos fornece e broquéis doze,
110 Doze êneos cascos de camada crista.
O herói tituba um tanto, ao ver arnêses
Fugir aos peitos e nas mãos remessos;
Maior a empresa então se lhe afigura,
E grita: “Armou-nos, filho, uma das servas
115 Cruel certame, se não foi Melantio.”
     “A culpa é minha, o príncipe confessa,
A câmara, meu pai, deixando aberta;
Eles desse descuido se valeram.
Anda a fechá-la, e observa, Eumeu, se alguma
120 Escrava é quem nos trai, ou, como julgo,
De Dólio o filho.” — Entanto, Eumeu lobriga
Melântio a remontar: “Solerte Ulisses,
O traidor é o ruim que suspeitamos.
Se o venço, hei de matá-lo, ou conduzir-to
125 Por que pene os excessos perpetrados?”
     E o rei prudente: “A lhes conter a fúria
Eu basto com Telêmaco. Vós ambos
Na câmara o tranqueis: atai-lhe às costas
Mãos e pés; ao pilar da corda o extremo
130 O ice; da trave atormentado penda.”
     Apressuram-se os dous. Sem que os bispasse
Já dentro, armas catando, o guarda-cabras,
De sentinela ao patamar ficaram;
Até que sai, com reluzente casco
135 Na esquerda, na direita um ressequido
Largo e velho broquel do bom Laertes,
Que estava ali de loros despegados.
Com juvenil ardor, no solho interno
Rojam-no preso, amarram-no e penduram,
140 De seu senhor executando as ordens.
Mordaz, Eumeu, clamaste: “Ora, Melântio,
Na mole veles merecida cama;
E, ao raiar do Oceano a matutina
Aurora em trono de ouro, não te esqueças
145 De lhes trazer para os banquetes cabras.”
     Arrouchado e suspenso, o abandonaram,
Fechando a porta; e em bronze reluzindo,
A respirar vigor, juntam-se ao divo
Sábio guerreiro: à entrada apenas quatro,
150 São muitos os da sala e não cobardes.
Em Mentor se disfarça e vem Minerva;
Ulisses a folgar: “Mentor, socorro;
Amigo teu fui sempre, e me és coevo.”
Ora assim, mas suspeita ser Tritônia.
155 Rompem logo em doestos, e é primeiro
Agelau Damastórides: “Ulisses
Contra os procos, Mentor, não te seduza;
Ou com teu sangue expiarás a culpa,
Assim que ele e Telêmaco sucumbam,
160 Como é de crer. Depois que o bronze expires,
Teus bens de fora e urbanos confundidos
E os do Laércio, de Ítaca a família,
Os filhos teus, as filhas, casta esposa,
Nós surdos à piedade expulsaremos.”
165     Em mais cólera a déia: “Já te falta,
Ulisses, o valor que, da alva e nobre
Helena a pró, nove anos despregaste,
Varões tantos rendendo em graves prélios,
Ílion por teus conselhos derrocada:
170 Como! nas tuas possessões recusas
A insolentes punir! Ânimo, filho;
O Alcimides verás como te é grato.”
E a fim de comprovar o esforço dele
E do excelso Telêmaco, a vitória
175 Inda balança, e em resplendente poste,
A revoar, qual andorinha, pousa.
Eurínomo, Agelau, Demoptólemo,
Anfimédon, Pisandro Politório,
Pólibo armiperito, aos seus roboram;
180 Os fortes são que vivos pleiteavam,
Pois o arco assíduo os outros já domara.
“Vêde-o, grita Agelau, que as mãos invictas
Retêm; Mentor jactancioso foi-se;
À entrada, amigos, sós pelejam quatro.
185 Eia, brandi, não todos, mas seis dardos:
Jove nos glorifique, o herói firamos;
Dos mais não se nos dê, se ele é vencido.”
     Frustra Minerva os dardos seis que voam:
Prega-se à porta um freixo de érea choupa,
190 Outro ao grosso alizar, outro à parede.
Malogrados os tiros, manda Ulisses
Paciente e firme: “Toca-nos, ó caros,
Punir os que ardem consumar seus crimes
Com nossa morte.” Lanças quatro zunem:
195 Ele a Demoptólemo, o filho a Euríade,
A Élato Eumeu, Filétio ao Politório,
Morder o vasto pavimento fazem.
Recua ao fundo a chusma, e os quatro os freixos
De chofre dos cadáveres desprendem.
200 De novo os procos a vibrar forcejam,
E as hastas quase inutiliza Palas:
No portal finca-se uma, outra num poste,
Ou num lanço da sala; mas o corpo
A Telêmaco esfola a de Anfimédon,
205 E a de Ctesipo, a Eumeu roçando a espádua,
Salva o escudo e baqueia. Em torno ao chefe
Mantêm-se inda mais bravos: a Eurídamas
O eversor de muralhas, a Anfimédon
Fere Telêmaco, o porqueiro a Pólibo;
210 A Ctesipo Filétio os peitos vara,
E ufaneia: “Insultante Politérside,
Cessas de encher a boca de estultícias;
Cabe o discurso aos poderosos numes.
Pago és do pé de boi com que hospedaste
215 O divo herói mendigo em seu palácio.”
     Ao falar o vaqueiro, fronte a fronte
Seu amo a Damastórides lanceia;
Por Telêmaco a bronze roto o ventre,
Se debruça Leócrito Evenório,
220 Bate no solo a testa . Eis do fastígio
Alça Tritônia a égide homicida:
Vagam todos atônitos, qual fogem
Do vário ágil tavão picadas reses
Nos vernais longos dias. Da montanha,
225 De garra e bico adunco, abutres saltam
Sobre aves, que tremendo alam-se às nuvens;
Eles porém, folgando os campesinos,
Sem mais refúgio, alcançam devorá-las:
Assim de cabo a cabo a turba acossam,
230 Rompem, vulneram; mestos ais ressoam,
E todo o pavimento em sangue ondeia.
     Súbito abraça a Ulisses os joelhos
Suplicante Liodes: “Compassivo
Me sê, Laércio. Nunca obrei, nem disse
235 Cousa que as servas tuas ofendesse;
Antes continha os sócios, que emperrados
O mal purgaram já com morte feia.
Vate e inocente, padecer não devo:
Recompensa futura aos bons compete.”
240 Sombrio o rei troveja: “Eras seu vate,
Longe me ansiavas dos queridos lares,
Ter de minha mulher quisestes filhos;
Trago amargo haverás.” E, erguendo a espada
Que ao morrer Agelau deixara em terra,
245 Com mão forte a Liodes, que ainda orava,
A cabeça mutila e em pó lha envolve.
     O Terpíades Fêmio, dos intrusos
Cantor coato, esquiva-se ao trespasso;
E, em punho a lira arguta, considera,
250 À superior saída, se abrigar-se
Na ara de Jove iria, onde o Laércio
E o pai queimaram coxas mil taurinas,
Se deitar-se-lhe aos pés: foi deste aviso.
Entre a cratera e a sede clavi-argêntea
255 Pondo o cavo instrumento, implora e estreita
Os joelhos do herói: “Príncipe augusto,
Perdão! há de pesar-te se exterminas
Vate que humanos e imortais celebra.
Eu doutrinei-me, o Céu me inspirou mesmo
260 Onígenas canções; posso entoar-tas,
Qual a um deus: no meu sangue ah! não te manches.
Por indigência não, teu filho o sabe,
Dos procos aos festins forçado vinha;
Tantos e mais potentes me obrigavam.”
265     Enérgico Telêmaco: “Este insonte,
Nem o arauto castigues, pois na infância
De mim curava, se é que Eumeu, Filétio,
Ou golpes teus letais o não prostraram.”
     Ouve-o Médon alerta, que medroso,
270 De baixo do seu trono, em fresca pele
Bovina se escondera; e, sacudindo-a,
Ajoelha-se a Telêmaco: “O paterno
Cru bronze, amigo, aos loucos não me iguale
Que, esbanjados os bens, te desonravam.”
275 Sorrindo o herói: “Telêmaco salvou-te
Sus, apregoa que vantagem leva
Sempre a virtude ao vício. Ao pátio aguarda
Mais o cantor famoso, que eu preencha
Quanto me cumpre.” — Da carnagem fora,
280 Ambos da ara de Jove tudo espreitam.
Na sala, circunspecto, ele examina
Se inda algum respirava, e em pó sangrento
Jaziam todos: qual à praia curva
Arrasta a malha os peixes, que, empilhados
285 Na areia, mudos cobiçando as vagas,
À luz do Sol em breve o alento exalem;
Tais os procos ali se amontoavam.
E Ulisses: “Da nutriz já já preciso,
Telêmaco.” O postigo o moço volve:
290 “Olá, quer-te meu pai, não tardes, ama,
Que és das fâmulas todas superiora.”
Fútil mando não foi; que, abrindo as portas,
Caminha após Telêmaco Euricléia:
De mãos e pés imundo encontra a Ulisses
295 De fresca mortualha circundado;
Como o leão, que, tendo a rês comido,
Cruento o peito e a cara, avulta horrível.
Nos mortos atentando e no alto feito,
Ia a velha gritar; seu amo o atalha:
300 “Folgues embora em ti, mas não jubiles;
Cousa é torpe exultar por homicídios.
Cru destino os domou, sua impiedade:
Sem respeito a ninguém, por bom que fosse,
Pecados seus à Parca os devotaram.
305 Agora as delinquentes me enumera,
Que esta casa honestíssima desdouram.”
E a dileta nutriz: “Meu filho, escuta.
Fâmulas tens cinqüenta, que ensinamos
A lavrar, a cardar, a submeter-se
310 À escravidão: na impudicícia doze,
De mim não se lhes dá, nem dá senhora
Telêmaco, inda há pouco adolescente,
Que a mulheres governe a mãe proíbe.
Eu já subo a falar com tua esposa,
315 Por divino favor adormecida.”
Mas ele: “Não é tempo de acordá-la.
Aqui me chama as impudentes servas.”
Apressura-se a velha mensageira.
     A Telêmaco o rei e aos dous pastores
320 Juntos prescreve: “A transferir os mortos
Começai, das mulheres ajudados;
Expurguem-se depois com água e esponja
Tronos e mesas. Toda a sala em ordem,
As rês daqui levai; de espada a fios
325 Da cerca do átrio em meio e da rotunda,
Expire uma por uma, e esqueçam Vênus
Que furtivas as ligava aos pretendentes.”
     Elas em pranto e ais chegadas foram;
Soluçando, os cadáveres às costas,
330 Ao pórtico do pátio os depuseram,
Mútuo auxílio a prestar-se; o mesmo Ulisses
As concitava, e a custo prosseguiam.
Limpos à esponja os móveis elegantes,
O solo os três com pás iam raspando,
335 O lixo as criminosas carregavam.
E concertada a sala, as conduziram
Da cerca do átrio ao meio e da rotunda,
Augusto sítio, impedimento à fuga.
     Lá Telêmaco disse aos companheiros:
340 “Não morram simples morte as que, nos braços
De infames tais, enchiam-me de opróbrio
E a minha casta mãe.” Nisto, um calabre
Naval de uma coluna atando, em roda
No alto passa da torre, que nenhuma
345 O chão de pés tocasse. Qual, entrando
Pombas ou tordos num vergel, da moita
Em rede caem de estendidas asas,
Triste poleiro e cama; assim, por ordem
Elas em laços, curto esperneando.
350 Cessam de palpitar estranguladas.
Ao vestíbulo e átrio, a sevo bronze,
Ventas e orelhas a Melântio cortam,
Lançam-lhe os genitais a cães famintos,
Pés decepam-lhe e mãos. — Completa a obra,
355 Vão-se purificados ao Laércio,
Que determina: “Salutar enxofre
Traze e fogo, Euricléia; defumada
Seja a casa. Ao depois a vir exortes
A rainha e as escravas.” — Mas a velha:
360 “Otimamente, filho meu, discorres;
Outras vestes porém dar-te-ei primeiro:
Decoroso não é que em teu palácio
Forres de andrajos os robustos membros.”
     Insta o senhor: “O fogo é já preciso.”
365 Fogo e enxofre sem réplica ela trouxe.
Com que Ulisses defuma a sala e o pátio.
Sobe a ama de novo e intima as ordens:
As servas em tropel sustendo fachos,
Ledas em torno, abraçam-no e saúdam,
370 Beijando-lhe a cabeça e as mãos e espáduas;
E ele, que n’alma as reconhece, um doce
Desejo tem de choro e de suspiros.

NOTAS AO LIVRO XXII
93-98 — A posição desta janela e subida não se pode bem determinar; os comentadores não explicam o lugar satisfatoriamente, nem eu me lisonjeio de ter acertado.
141-145 — Nesta passagem, principalmente no fim, apartei-me um pouco do sentido literal, para melhor exprimir a zombaria de Eumeu.
155 — Doesto significa injúria ou vitupário; sem embargo de alguns diários e folhas o tomarem erradamente por dor ou pesadume.
210 — Advirto que, sempre que vem o nome Ctsipo com duas sílabas, eu o faço de três Ctesipo, como o fez Pindemonte; porque na língua portuguesa, que foge de muitas consoantes seguidas, o dissílabo seria áspero em qualquer verso.
342-354 — Toda esta cena de serralho, como a nomeia M. Giguet, é horribilíssima; e acrescenta o horror o suplício de Melântio, sobre quem se exerce uma vingança brutal. Não é mau que Homero nos pintasse um tal quadro, para avaliarmos os costumes daqueles tempos. Contudo, se fosse Virgílio que o fizesse, quantas pragas não choveriam das bocas e penas de certos críticos modernos!
368-372 — Depois da cruel carniçaria, Homero desenluta o seu ouvinte ou leitor com a ternura das servas inocentes, e com o desejo de chorar que teve o senhor ao reconhecê-las; mas, não obstante a habilidade com que traça este novo quadro, o primeiro não se apaga e nos deixa uma dolorosa impressão. Ir ao índice do livro.