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Odisséia de Homero Livro XXIII

Às risadas a velha os joelhos move,
Celérrima a informar que é vindo Ulisses,
E a Penélope fala à cabeceira:
“Surge, anda, filha, a veres com teus olhos
5 O que tanto almejaste: eis bem que tardo,
Castigou teu marido os que, estragando
Casa e fazenda, o filho te oprimiam.”
     E ela: “O Céu, que à vontade, ama Euricléia,
Do louco um sábio faz, do sábio um louco,
10 Transtorna-te a razão que te assistia.
Como! zombas de mim, que hei tantas penas,
E as pálpebras do sono me descerras,
Sono o mais saboroso dês que Ulisses
Foi-se à nefanda Tróia? Desce e vai-te.
15 Se outra com tais anúncios me acordasse,
Eu mais dura e severa a despedira;
Mas vale-te essa idade.” — A escrava insiste:
“Filha, de ti não zombo; em casa o temos;
É o hóspede que todos insultavam.
20 Já sabia Telêmaco o segredo;
Ocultava-o prudente, a fim que Ulisses
A soberba e violência refreasse.”
     Leda salta Penélope do leito,
Em lágrimas a abraça: “Ama querida
25 Se isso é verdade, se ele aqui se alverga,
Os audazes, que sempre estavam juntos,
Como só derribou?” — E a nutriz: “Nada
Eu vi, nem mo contaram, mas ouvia
O estrondo, o pranto, os ais dos moribundos,
30 Lá nos retretes, a trancadas portas,
Em susto éramos todas, e teu filho
Por ordem paternal veio chamar-me.
Achei teu bravo Ulisses entre os mortos
Uns por cima dos outros: exultaras
35 De o ver leão sangrento e encarniçado!
Ele, fora os cadáveres em montes,
Fumiga o paço, e ordena que me sigas,
Anda, ambos de alegria abeberai-vos,
Depois de tantas mágoas; a tão longa
40 Saudade se mitigue. Ele nos torna
Vivo e são; cá te encontra e o filho vosso;
Puniu já desta casa os malfeitores.”
     Logo a rainha: “A rir não te glories.
Sim, grata a vinda sua a todos fora,
45 Mormente a mim e ao filho que geramos;
Porém, ama, não creio o que me afirmas:
Indignado algum nume de arrogâncias
E injúrias tais, livrou-nos de insolentes
Que a ninguém, por melhor, tinham respeito;
50 Mas longe Ulisses acabou decerto.”
     “Filha, insiste Euricléia, que proferes?
Duvidas inda, e ao lar já tens o esposo!
É muito. Ora um sinal te manifesto:
Ao lavá-lo, do cerdo conheci-lhe
55 A cicatriz. Eu ia anunciar-to,
Cauto a boca tapou-me. Vem; consinto,
Mata-me, se te engano.” — “É-te impossível,
Penélope argüiu, por mais ciente,
O arcano, amiga, perceber divino.
60 Contudo, ao filho corro; esses perversos,
Aquele que os prostou, meus olhos vejam.”
     Desce, do caro esposo revolvendo
Se as mãos e as faces beije, ou tão somente
O interrogue distante. Já transposto
65 O pétreo limiar, defronte, ao lume,
Noutra parede fica: ele, encostado
Numa coluna, arreda a vista, à espera
Que o fite e que lhe fale a mulher forte;
Ela, em silêncio estúpido, ora o encara,
70 Ora pelo seu trajo o desconhece.
Rompe e a censura o filho: “Que! tão dura
Esquivas a meu pai, nem dele inquires!
Que outra mulher assim desamorosa
Recebera um marido, após vinte anos
75 De ânsias cruéis? Tens coração de pedra.”
     Escusou-se a rainha: “De pasmada,
Meu Telêmaco, olhar nem falar posso.
A ser teu pai, a todo mundo ignotos,
Sinais temos que o provem.” — Tolerante
80 O herói sorriu-se: “A mãe consintas filho,
Que me tente e afinal se desengane;
Sujo e torpe, ela estranha-me e repugna.
Consultemos agora. Se alguém mata
Um popular de asseclas mal provido,
85 Foge, terra e parentes abandona:
De Ítaca a flor e esteios derribamos;
Deliberemos nós.” Cordato o jovem:
“Cabe-te isso, meu pai; fama é constante,
Mortal nenhum te iguala no conselho;
90 Seguir-te só me cumpre, e eu forças tenha,
Que outrem não há de em ânimo vencer-me.”
     E o cauteloso: “Pois meu voto escuta.
Primeiro vos lavais, mudai vestidos,
E ordenai-me às cativas que se enfeitem.
95 O músico na lira preludie
Dança amorosa, a fim que núpcias dentro
Haver pense ou vizinho ou viandante.
Fora a carniçaria não persintam,
Antes que os agros e vergéis busquemos:
100 Lá do Olimpo o senhor deve inspirar-nos.”
     Lavam-se, dóceis, de vestidos mudam,
Às mulheres prescrevem que se adornem.
Fênio na ebúrnea lira já consona
Dança ligeira e doce melodia:
105 Ao tropel toda a casa reboava
De esbeltos jovens e de airosas moças.
Cruzam vozes da rua: “Algum de tantos
A rainha esposou, que mais valera
Se fiel ao marido os bens guardasse.”
110 Assim, néscios do caso, discorriam.
     Lava a cuidosa Eurínoma e perfuma
O brioso Laércio, e o paramenta.
Aformoseia-lhe a cabeça Palas;
Majestoso e maior, na espalda a coma
115 Cor de jacinto em ondas se lhe esparge;
Tamanha graça lhe vestiu Minerva,
Quantia infunde em lavor de prata e ouro
Dela e Vulcano artífice amestrado.
Como um deus sai do banho, torna ao posto
120 Fronteiro ao da consorte, e assim perora:
“Tão duro coração, femíneo monstro,
Nunca foi dos celícolas forjado!
Que outra mulher tão fria se portara
Ao chegar seu marido após vinte anos
125 De pena e dor? Sus, ama, um leito apresta,
Quero dormir. Sua alma é toda ferro.”
     “Monstro eu! retorque; nem te apouco altiva,
Nem me assombro demais: qual te embarcaste
No instruto galeão, me estás na mente.
130 Eia, fora da alcova alça, Euricléia,
O reforçado leito, obra de Ulisses,
Com mantas e tosões, com moles colchas.”
Tal foi para o marido a prova extrema.
     Ele à casta mulher gemendo exclama:
135 “Quem removeu-me o leito? oh! triste nova!
Isso nímio custara ao mais sabido,
Salvo intervindo um nume; empresa enorme
Fora a humano qualquer, por mais viçoso:
Fi-lo eu sozinho; este sinal te baste.
140 Grossa como coluna, vegetava
No pátio umbrosa e flórida oliveira:
Densas pedras em roda, em cima um teto,
Câmara edifiquei de unidas portas;
Já desgalhado, a bronze descasquei-lhe
145 Desde a raiz o tronco, e de esquadria
Artífice o puli, verrumei tudo,
Formando um pé, começo do meu leito;
Marfim neste embutindo e prata e ouro,
Táureas correias lhe teci vermelhas.
150 Esta a verdade. Ignoro se está firme
Esse leito, ou, serrando-se-lhe o tronco,
Por algum dos varões foi transplantado.”
     Aqui, tendo Penélope a certeza,
Desfaleceu; depois, toda alvoroço,
155 Em pranto o colo do marido abraça,
E o beija e diz: “Uilsses, foste aos homens
O exemplo da prudência, não te enfades.
Irmos juntos logrando os flóreos dias
O Céu nos invejou; perdão, se ao ver-te
160 Não fui logo lançar-me no teu seio:
De que outrem com discursos me iludisse
Tremia sempre; os dolos não falecem.
A Dial Grega Helena o toro nunca
Do estranho compartira, a ter previsto
165 Que à pátria e casa os belicosos Dânaos
Tinham de a reduzir: a tanto opróbrio,
Causa da nossa dor, cruel deidade
A infeliz arrastou, que o não cuidava.
Porém veros sinais manifestaste:
170 Outro nenhum varão viu nossa alcova,
Nós e a fiel Actóride somente,
Por meu pai concedida, e que é porteira.
Minha justa esquivança embrandeceste.”
     Ele com isto em lágrimas rebenta,
175 Mais ao peito cingindo a casta esposa.
Da praia quando à vista os naufragados,
Por Netuno e por vagas sacudidos,
Poucos no vasto pélago nadando,
Sujos da maresia, à morte escapam,
180 Não têm maior prazer do que a rainha
Teve ali. Não despega os alvos braços
Do colo do consorte; e a ruiva Aurora
Os encontrara, se não fosse Palas:
A olhicerúlea, prolongando as sombras,
185 No Oceano a retinha em áureo trono,
Sem que até ao coche alípides ginetes
Lampo e Faeton, que a luz no mundo espalham.
     “Mulher, diz-lhe o marido, não findaram
Nossas provas; uma árdua imensa empresa
190 Me cumpre executar: assim Tirésias,
De mim, dos sócios meus, soltando os fados,
Profetizou-me na Plutônia estância.
Mas vamos, doce amiga, ao leito nosso
Deleitar-nos em brando e meigo sono.”
195 Penélope acedeu: “Já que em meus braços
Pôs-te o Céu, no meu leito a gosto sejas.
Mas que perigo anunciou-te o vate?
Se hei de saber depois, que o saiba agora.”
     “Se o queres, anjo meu, responde Ulisses,
200 Não to escondo: ah! matéria é de tristeza
Para ti, para mim! Que peregrine
Remotas plagas me ordenou Tirésias,
E ágil remo sustendo, a povos ande
Que o mar ignoram, nem com sal temperam
205 Que amuradas puníceas não conhecem,
Nem remos, asas de baixéis velozes.
Deu-me o sinal: assim que um viandante
Pá creia o remo ser, eu do ombro o desça
Finque-o no chão, carneiro e touro imole,
210 Varrão que inça a pocilga, ao rei Netuno;
Mas na pátria hecatombes sacrifique
Aos imortais celícolas por ordem.
Do mar cá me virá mui lenta a morte,
Feliz velho entre gentes venturosas.
215 Certos me asseverou seus vaticínios.”
     Ela acudiu: “Se os deuses te prometem
Melhor velhice, espero que triunfes
Inda uma vez.” — Enquanto praticavam,
Eurínoma e a nutriz, de acesas tochas,
220 A cama afôfa e mórbida estendiam.
Isto acabado, a velha foi deitar-se,
E a camareira ao quarto alumiou-os
E retirou-se. Com delícias ambos
Do antigo toro o pacto repetiram.
225 Também Telêmaco e os leais pastores
Suspensa a dança, despedindo as servas,
Pelos sombrios paços repousaram.
     Ao desejado amor depois de entregues,
Em colóquios os dous se regozijam:
230 Conta a mulher divina os dissabores
De olhar contínuo a turba dissoluta,
Que, bois, cabras e ovelhas degolando,
E os tonéis exaurindo, a requestava;
Ele, as dores impostas ou sofridas.
235 Leda a esposa de ouvir, só depois dorme.
     Primeiro expôs o estrago dos Cícones,
E a terra dos Lotófagos ubérrima;
Como vingou-se do feroz Ciclope,
Que os sócios lhe comeu; como, inda à pátria
240 Ir não sendo seu fado, com doçura
De Eolo aceito, mais por fim repulso;
Jogo ah! foi da procela em mar piscoso;
Como, aportado à Lestrigônia, tantos
Perdeu, salvando seu baixel apenas.
245 Expôs os dolos e dobrez de Circe;
Como, a Plutão vogando em nau compacta,
Viu, do Tebano vate após consulta,
Irmãos de armas e a mãe que amamentou-o;
Como as Sereias lhe cantaram; como
250 Chegou-se a instáveis rochas e a Caríbdis,
E a Cila que sem perdas não se evita.
Expôs que, a raio o Altíssono a matança
Dos bois do Sol punindo, a nau ligeira
E os demais soçobrou; que, à ilha Ogígia
255 Arribando ele só, foi por Calipso
Detido em cava gruta e acarinhado;
Que a ninfa, de esposá-lo cobiçosa,
Prometeu-lhe uma eterna juventude,
Sem jamais demovê-lo da constância.
260 Findou pelos Feaces, que de um nume
A par o honrando, em nau de cobre e alfaias
E de ouro onusta, a Ítaca o mandaram.
     Do sono aqui dulcíssimo assaltado,
Solve os pesares; e, julgando-o Palas
265 De repouso e de amores satisfeito,
Chama a fulgente Aurora do Oceano,
E na alvorada o sábio herói desperto
Se endereça à mulher: “Sobejas penas
Tivemos: tu, chorando a minha ausência;
270 Eu, delongas e empeços que o Satúrnio
E outros deuses à vinda me opuseram.
Ora, que o nosso tálamo ansiado
Já tocamos, dos bens restantes cura:
Para suprir os meus currais e enchê-los,
275 Hei de apresar, e parte haver do povo.
Aos bosques vou-me e campos, as saudades
Aliviar do genitor. Consorte,
Bem que discreta, observa os meus preceitos:
Alto o Sol, desses procos a matança
280 Ressoará; com tuas servas monta,
Sem comunicação lá permaneças.”
     Vestindo logo as suas, manda que armas
Também Telêmaco e os pastores peguem.
Arnesando-se os quatro, as portas abrem;
285 Ulisses marcha à frente. Era já dia;
Mas enublados os dirige Palas.

NOTAS AO LIVRO XXIII
152 — Os intérpretes e tradutores não viram nesta passagem um rápido movimento de ciúme, que nela parece-me existir: Ulisses, à nova de que o leito fora mudado, leito cujo segredo só ele e Penélope conheciam, pasmou de que tal houvesse acontecido; isto, sendo combinado com a tristeza que lhe causou a nova, segundo se colhe do verso 135, e com o toque da mulher no 170, torna provável a minha observação. Na dúvida, contudo, não quis aclarar a passagem mais do que o fez o autor, nem tampouco seguir interpretação contrária, como o fez M. Giguet, traduzindo Andrõn por quelque artisan: ao menos deve conservar-se o termo varões, que favorece a minha opinião. Este leve movimento de ciúme, em um homem tão suspeitoso, seria interessante nesta cena.
184-187 — Aqui temos um milagre, operado por Minerva, igual ao de Josué: este fez parar o Sol acima do horizonte para aumentar o dia; Minerva também o faz parar, mas abaixo do horizonte, para aumentar a noite. Josué porém é mais antigo do que Homero. Ir ao índice do livro.

Odisséia de Homero - Livro XX

Ulisses ao vestíbulo descansa:
Em cru taurino coiro estende peles
De imoladas ovelhas, e por cima
Eurínoma lhe deita espessa manta;
5 Lá, na vingança meditando, vela.
Eis risonhas de cara e delambidas
As que davam-se aos procos vêm saindo:
Vivamente comoto, em si ventila
Se de súbito as mate, ou lhes consinta
10 A extrema vez coabitar com eles;
E o coração lateja-lhe apressado,
Como a galga, a cercar seus cachorrinhos,
Ladra investindo a estranho. A ira enfreia,
Bate nos peitos e cogita: ”Cala,
15 Meu coração! mais suportaste quando
O atroz Ciclope devorou-me os sócios:
Com prudência da cova te livraste,
Onde supunhas trucidado seres.”
     Assim reprime o palpitar interno,
20 Tem-se; mas anda pela cama às voltas.
Qual de um brasido ao lume o esfomeado
Vira um gordo ventrículo sangüento
Com desejos de assá-lo; inquieto Ulisses
Assim de toda parte se remexe,
25 Traçando o meio de bastar a tantos
Insolentes rivais. Em vulto humano,
Palas se lhe oferece à cabeceira:
“Por que velas, misérrimo dos homens?
Tens casa, tens mulher, tens nobre filho,
30 Filho que outro qualquer te invejaria.”
     “Sempre acertas, responde, onisciente;
Mas posso haver-me, ó deusa, contra a chusma
Que infesta o meu palácio? Inda rumino
Outro cuidado: se os vencer, por graça
35 De Jove e tua, escaparei com vida?
Rogo-te me aconselhes.” — “Insensato!
Grita Minerva, um homem noutro néscio
Homem se fia, e tu de mim duvidas?
Guardo-te sempre, e deusa te protejo.
40 Eu to declaro: embora multilíngües
Cinqüenta batalhões, a rodear-nos,
O exício teu conspirem, bois e ovelhas
Tu lhes depredarias. Dorme, é grave
Passar a noite em claro, e o teu mal finda.”
45 E espreme-lhe nas pálpebras o sono,
E ao céu volve no instante em que o sossego
Lhe absorve as penas e amolenta os membros.
     Cedo acorda, e sentada ao fofo leito,
Lassa do pranto, ora a Diana a diva,
50 Das mulheres modelo, honesta esposa:
“De Jove augusta prole, ou tu me arranques
Esta alma a tiros, ou tufão me jogue,
Arrebatada pelos ares cegos,
Às fauces do retrógrado Oceano;
55 Sorte que outrora às Pandareidas coube.
Órfãs, sozinhas, por querer supremo,
De leite e mel suave e doce vinho
Citeréia as nutria, deu-lhes Juno
Formosura e juízo incomparáveis,
60 O talhe Délia, os dotes seus Minerva;
Mas, remontando Vênus ao Tonante,
Que a fundo a sina dos mortais conhece,
A pedir flóreas núpcias para as virgens,
As Harpias, roubando-as, ao serviço
65 Das medonhas Erínies as puseram.
Levem-me assim do Olimpo os moradores,
Freche-me Artêmide; eu no abismo horrendo,
Ulisses, te contemple, nem se goze
De mim outro varão que não te iguala.
70 Geme o infeliz no dia, à noite ao menos
Esquece adormecido os bens e os males;
A mim sempre um demônio me persegue:
Acaba de antolhar-se-me a figura
De Ulisses tal qual era; cria eu leda
75 Isto visão real, não mero sonho.”
     Atento o herói divino a tais queixumes,
Ao reluzir da Aurora em trono de ouro,
Cuida-se descoberto e que ela o busca;
Veste o manto, em cadeira os tosões pousa,
80 Remove o coiro, em preces alça as palmas:
“Júpiter, se por seca e úmida via
A Ítaca imortais me conduziram,
Dentro ouça de um desperto o bom presságio,
Fora algum teu prodígio mo confirme.”
85 De Ulisses com prazer, fulgure e toa
De resplendida nuvem; perto, o agouro
Solta uma escrava do pastor dos povos.
Das doze que ao moinho o trigo e azeite,
Medula de homens, preparar soíam,
90 Fraca ela só, deitadas as parceiras,
Não findava a tarefa: “Ó sumo Jove,
Clamou, do éter sereno assim trovejas?
Anúncio é para alguém. De mim coitada
Os votos cumpre: o dia extremo seja
95 Que à mesa de meu amo se regalem
Esses a quem, de afã desfalecida,
Eu môo esta farinha; acabem todos.”
     Do agouro e do trovão contente Ulisses,
Os réus conta punir. Vêm logo as servas
100 Acender o fogão da pulcra sala;
O deiforme Telêmaco vestido
Vem da alcova, de nítidas sandálias,
No bálteo a espada, aguda lança em punho,
E ao limiar com Euricléia fala:
105 “Ama, honrastes meu hóspede vós outras,
Ou maltrado jaz? Embora sábia,
Minha mãe de um parleiro às vezes cura
E despede um melhor.” — Mas Euricléia:
“Injusto a acusas, filho. A gosto o velho
110 Bebeu sentado, abstendo-se da ceia,
Que ela ofertou-lhe mesma. À hora própria
Mandou cama estender; mas ele, afeito
À pena e dor, não quis macias colchas,
E ao vestíbulo em coiro e ovinas peles,
115 Com manta que lhe demos, repousou-se.”
     Hasta na mão, Telêmaco atravessa
A grande sala, com dous cães ligeiros,
Aos grevados Aqueus indo juntar-se.
De Opes de Pisenor zelosa a filha
120 Esperta as mais cativas: “Borrifada,
Já já, varrei-me a casa, e de tapetes
Forrai purpúreos as louçãs poltronas;
Lustre as mesas a esponja, a copa e a frasca
Purifiquem-se, e lestes ide à fonte:
125 Eles madrugam sempre, e o dia de hoje
A todos é festivo.” — Obedeceram:
Ao profundo olho d’água partem vinte;
As mais dentro o serviço desempenham.
A preceito, chegando, a lenha racham
130 Os soberbões; da fonte as servas tornam;
O porqueiro também com três cevados
Entra, em vastas pocilgas escolhidos,
E brandamente fala: “Hóspede, os Gregos
Te menoscabam sempre, ou já te poupam?”
135 “Eumeu, responde o herói, provera aos deuses
Os insultos punir e os maus desígnios
Desses que estão, sem pinga de vergonha,
Maquinando um alheio domicílio.”
     Entrementes, Melântio se aproxima,
140 Com dous ajudas, conduzindo cabras
As melhores do fato aos pretendentes,
E amarrando-as ao pórtico sonoro,
Pica a Ulisses de novo: “Inda importunas
A todos pedinchando, e não te safas?
145 Sem estas mãos provares, vil mendigo,
Cuido que insistirás. Há comezaina
Entre os outros Aqueus.” Tácito a fronte
Sacode o herói, vinganças ruminando.
     Presenta-se Filétio, o mor vaqueiro,
150 Uma toura guiando e gordas cabras,
Que as passaram barqueiros do costume,
E ao ligá-las ao pórtico, pergunta:
“Que estranho é este, Eumeu? que gente a sua?
Donde veio? O mesquinho um rei parece:
155 Em dor o Céu mergulha os vagabundos,
Mesmo a reis enovela os infortúnios.”
Vôlto ao mendigo então, lhe cerra a destra:
“Hóspede padre, salve! hoje em miséria,
Inda sejas ditoso! Ó tu Satúrnio,
160 Ó deus o mais cruel, não te comovem
As mágoas dos varões por ti criados.
Choro e suor agora me rebentam,
Lembrando-me de Ulisses, que afiguro
Assim roto a vagar, se é que o Sol goza.
165 Mas se ele no Orco jaz, ai de mim triste!
A quem tão bom senhor, ainda eu menino,
Aos armentos prepôs-me em Cefalênia.
Inúmeros os bois de larga fronte
Medram mais que a nenhum: cá trago deles
170 A gulosos, que o filho desfalcando,
A punição dos numes nem receiam;
Do ausente os bens tragar é quanto anelam.
Dupla aflição me rói: com meus bois todos,
Vivo Telêmaco, emigrar é feio;
175 Mas dói muito engordá-lo para intrusos.
Longe outro herói buscado eu já teria,
Nesta angústia insofrível, se esperança
De vir não me alentasse o miserando
A profligar infames insolentes.”
180 Ulisses respondeu: “Nem mau nem lerdo
Pareces-me, pastor; eu pois to juro,
Por Jove, pela mesa hospitaleira,
Por este lar e asilo: com teus olhos
Teu bravo amo verás, se o tu quiseres,
185 Usurpadores crus mandar a Dite.”
     O vaqueiro ajuntou: “Permita-o Jove!
Meu braço e minha fé conhecerias.”
E Eumeu também rogava aos deuses todos
Que de seu rei a vinda apressurassem.
190 A Telêmaco, entanto, os corpos tecem
Morte e ruína. Altívola à sinistra
Pávida pomba uma águia eis traz nas garras
E branda Anfínomo: “Ao convívio, amigos;
O plano de matá-lo está frustrado.”
195 Eles dóceis na sala sobre escanos
E camilhas os mantos depuseram.
Cabras e ovelhas, porcos sacrificam,
E a grã novilha: as vísceras assadas
Repartem, mesclam nas crateras vinho;
200 Eumeu taças ministra; o pão, Filétio;
Escanceia Melântio: o bodo encetam.
     À soleira, mas dentro, baixa mesa
E tosco assento o filho pôs a Ulisses,
Que astúcias combinava, e das entranhas
205 O serve e entorna o vinho em áureo copo:
“A gosto, hóspede, bebe entre os guerreiros;
Salvar-te-ei de golpes e convícios:
A casa não é pública; é de Ulisses,
E herdeiro eu sou. Vós procos, refreai-vos,
210 Ou lide cá teremos infalível.”
     Todos pasmam da audácia e os beiços mordem;
Mas o Eupitéio: “Amigos, suportemos
De Telêmaco as fúteis ameaças.
A querer o Satúrnio, ora açaimado
215 Aqui seria o parlador canoro.”
Cala Antino, e Telêmaco o desdenha.
     Pela cidade arautos hecatombe
Guiam sacra, e no umbroso Febeu luco
Reúnem-se os Grajúgenas crinitos;
220 Ao tempo que, do fogo assadas carnes
Os príncipes tirando, as distribuem,
E o festim saboreiam: coube a Ulisses,
Como ordenara seu dileto filho,
Igual porção, que os servos lhe ministram.
225 Não consente Minerva que arrogantes
Abstenham-se de afrontas, para o anôjo
Mais do Laércio profundar no seio.
De Same habitador, iníquo e duro
Ctesipo, que alistou-se entre os amantes
230 No rico pai fiado, assim vozeia:
“Rivais extremos, é decente, é justo,
Aquinhoá-lo bem; nada faleça
De Telêmaco aos hóspedes, quais forem:
Meu dom receba amável, com que brinde
235 A quem, nos paços do imortal ausente,
O banha ou trata.” Aqui, toma de um cesto
E arroja um pé de boi; mas a cabeça
Ulisses, com sardônico sorriso,
Desvia, e o osso na parede bate.
240 Em cólera Telêmaco lho exprobra:
“Melhor te foi, Ctesipo, que evitasse
O hóspede o golpe teu; senão, tu foras
Desta lança varado, e em vez de núpcias
Teu pai te aprestaria a sepultura.
245 Proíbo em minha casa iniquidades;
Não mais criança, o bem do mal distingo:
Só contra muitos, passo os desperdícios
Do meu pão, do meu vinho, do meu gado;
Mas cesse a hostilidade. E a bronze frio
250 Se desejais matar-me, antes a morte
Que ver-nos espancar meus protegidos,
Na honrosa casa viciar as servas.”
     Lavra em roda o silêncio, até que o rompe
Agelau Damastórides: “Amigos,
255 Não braveje nenhum contra a justiça;
Nem se maltrate o hóspede, nem outrem
Que habite na mansão do nobre Ulisses.
Grato seja a Telêmaco e à rainha
O que tranqüilo exponho. Enquanto a vinda
260 Esperáveis do grande e sábio Ulisses,
Causa havia de aqui nos demorardes,
E era justificável a constância;
Mas que ele está perdido é manifesto.
Pede pois a Penélope que eleja
265 Quem lhe aprouver e a dote com largueza;
Em paz a herança paternal desfrutes,
E tua mãe do noivo orne o palácio.”
     Cauteloso Telêmaco: “Por Jove,
Agelau, to assevero, pelas dores
270 De meu pai, que está morto ou longe vaga:
Minha mãe não coíbo, antes a empenho
A esposar quem lhe agrade e muito oferte;
Mas hei pejo e temor, tolham-me os deuses
Desta casa bani-la ou violentá-la.”
275 Aqui, Minerva os procos enlouquece,
Um riso inestinguível excitando,
Riso que erra nas bocas louquejantes:
Comem cruentas carnes; de água os olhos
Se lhes arrasa; n’alma o luto versa.
280 Teoclímeno a vozes profetiza:
“Misérrimos, que noite vos rodeia
De alto a baixo! que lúgubre ululado!
Estou já vendo lagrimosas faces,
Em sangue estas paredes e estes postes,
285 Cheio o vestíbulo e a brilhante sala
De espectros, que ao profundo Érebo descem!
Morre o Sol, e se esparge e adensa a treva!”
     Eles às gargalhadas o chasqueiam,
E o de Pólibo grita: “O forasteiro,
290 Cá vindo não sei donde, é mentecapto.
Moços, ponde-o na rua; ande-se ao foro
Quem por noite hoje toma o dia claro.”
     Mas o adivinho: “Eurímaco, retorque,
Não hei mister escolta; olhos e orelhas,
295 Bons pés tenho, e alma sã no peito alojo;
Vou-me donde um mal grave está pendente:
Nenhum se livrará dos que este asilo
Manchais de insultos e de ações infames.”
Disse, e foi-se a Pireu, que pronto o acolhe.
300 Olhando-se e às risadas, mofam todos,
E um moteja a Telêmaco: “És na escolha
De hóspedes infeliz: tens um mendigo
Sitibundo e famélico e vadio,
Sem préstimo e valor, da terra peso;
305 Outro a vaticinar pouco há surdiu-nos.
Mais útil, eu proponho, é que à Sicília,
Porque hajas pingue lucro, os embarquemos.”
     Desdenhoso o mancebo, taciturno
Fita os olhos no pai, à espera sempre
310 Do funesto sinal. De cima a Icária
Prudente, em belo escano recostada,
Os escutava. E rindo e zombeteiros,
Tendo eles bastas reses abatido,
Em festim novo e lauto iam cuidando;
315 Mas, da injustiça em troca, lhes dispunham
Uma deusa e um varão mais agra ceia.

NOTAS AO LIVRO XX
120-156 — Como é antiquíssimo o borrifar as casas para as varrer! Assim o fazem na Itália aos pavimentos de tijolos, gerais ainda nas maiores cidades; assim o fazem no Brasil, onde o uso desses pavimentos é muito menor. — Frasca é o que os afrancesados chamam bateria de cozinha. — Os mesmos senhores é que rachavam a lenha, por ser a festa solene de Apolo: é o que diz o original, apesar dos que traduzem que os servos dos procos é que o faziam. — Enovelar ou dobrar o fio dos infortúnios é o que propriamente exprime o verbo grego.
313-315 — Os pretendentes acabavam de jantar, e iam já preparando outro repasto; o autor acrescenta que ceia menos agradável lhes tinham de preparar Minerva e Ulisses. Pindemonte seguia passo a passo a Homero; mas M. Giguet, omitindo a circunstância da ceia, diz: “Mais bientôt une déesse et un invencible héros vont dissiper leur joie par des exploits terribles”. Esta última versão está longe de ser fiel, nem tem a energia do original. Ir ao índice do livro

Odisséia de Homero - Livro XI

Deitado ao mar divino o fresco lenho,
Dentro as hóstias, o mastro e o pano armados,
Em tristíssimas lágrimas partimos.
Bom sócio, enfuna e sopra o vento em popa,
5 Que invoca a deusa de anelado crino.
Tudo a ponto, abancamo-nos entregues
Às auras e ao piloto; sempre à vela,
Sobre a tarde, os caminhos se obumbravam,
E aos fins chegamos do profundo Oceano.
10 Lá dos Cimérios de caligem feia
Cidade jaz, do Sol ao olho oculta,
Quer ao pólo estelífero se eleve,
Quer descambe na terra: intensa noite
Aos mesquinhos mortais perpétua reina.
15 Da nau varada os animais tirando,
O Oceano abeiramos até onde
Nos indicara Circe. Perimedes,
Mais Euríloco, as vítimas sustinha;
De espada a cova cubital escavo;
20 De mulso e leite libações vazamos
Às mãos ambas, depois de mero vinho,
Terceiras de água, e branco farro mesclo.
Imploro aos oucos manes e prometo,
Em Ítaca imolada a melhor toura,
25 De dons a pira encher, e ao só Tirésias
Preto carneiro consagrar sem mancha,
Flor dos nossos rebanhos. Evocados
Os defuntos, as vítimas degolo,
Flui na cova o cruor: do Érebo as almas
30 Congregavam-se em turmas, noivas, moços,
Melancólicos velhos, virgenzinhas
Do luto prematuro angustiadas,
Muitos guerreiros em sangrentas armas
De êneas lanças passados; ante a cova,
35 Num confuso rumor, se atropelavam.
Pálido e em susto, exorto a que esfoladas
Queimem-se as reses pelo bronze troncas;
Voto a Plutão pujante e à seva esposa.
De espada arredo os mortos, que não bebam
40 Sem que eu tenha o adivinho interrogado.
     Veio primeiro de Elpenor a sombra.
Que nos paços de Circe, pela urgência,
Não chorado e insepulto abandonamos.
Lagrimo, ao vê-lo, comovido clamo:
45 “Como, Elpenor, mais presto ao reino escuro,
Que eu no alado navio, a pé chegaste?”
     Ele em suspiros: “Sábio e grã Laércio,
Um nocivo demônio embebedou-me:
Do terraço de Circe, entontecido,
50 Pela escada não dei, caí do teto;
Fraturou-se-me o colo, eis-me no inferno.
Sei que do Orco irás inda à ilha Eéia:
Por teus caros ausentes, pela esposa,
Pelo pai que de ti cuidou na infância,
55 Por Telêmaco exoro, único filho
Que tens no doce lar, de mim te lembres:
Teme os numes, enterra-me e pranteia;
Comigo, tais quais são, me queima as armas,
N’alva praia o sepulcro, por memória
60 De um miserável, planta em cima o remo
Que entre os meus camaradas me servia.”
     “Tudo, infeliz, bradei, será cumprido.”
E alternamos quietos mil tristezas,
De espada eu sobre a cova, e o simulacro
65 A derramar queixumes. Ao da madre
Minha, filha de Antolico, Anticléia,
Que ao ir-me a Tróia a luz inda gozava,
Vedo, a gemer com dor, que loque o sangue
Primeiro que Tirésias. De áureo cetro,
70 A alma aparece do Tebano cego,
Reconheceu-me: “Ao claro Sol fugindo,
Ai! vens a estância visitar funesta?
Pois da cova te arreda e o gume esconde,
Para que eu beba o sangue e profetize.”
75 Dês que embainho a espada claviargêntea,
Bebe o vate infalível e começa:
“O mel da volta, nobre Ulisses, buscas?
Netuno irado, a quem cegaste o filho
To embarga. A seu pesar, tens de alcançá-lo,
80 A seres comedido e os companheiros,
Do atro pego arribados à Trinácria,
Onde achareis pastando bois e ovelhas
Do Sol, que tudo vê, que exouve tudo:
Ileso o gado, a custo ireis à pátria;
85 Ofendido, ao navio agouro a perda,
E a te salvares, tornarás tardeiro,
Só dos consócios teus, em vaso estranho.
Depararás no interno uns prepotentes,
Que estragam-te a fazenda, e requestando
90 A diva esposa tua, a presenteiam;
Mas, por tamanha audácia, a bronze agudo
Às claras ou por dolo hás de puni-los.
Depois toma ágil remo, a povos anda
Que o mar ignoram, nem com sal temperam,
95 Que amuradas puníceas não conhecem,
Nem remos, asas de baixéis velozes.
Guarda o sinal: assim que um viandante
Pá creia o remo ser que ao ombro tenhas,
Finca-o no chão; carneiro e touro imoles,
100 Varrão que inça a pocilga, ao rei Netuno;
Em Ítaca, aos celícolas por ordem
Hecatombes completas sacrifiques
Ali do mar vir-te-á mais lenta a morte,
Feliz velho, entre gentes venturosas.
105 Preenchidos serão meus vaticinios.”
     “Tirésias, prossegui, tal é meu fado.
Lá, do sangue remota, olhar seu filho
Nem ousa tácita a materna imagem:
Como há de perceber-me, ó rei, me ensina.”
110 E ele: “É simples: sincero, a quem permitas
Provar do sangue, falará; contidos,
Os mais recuarão”. Nisto, o profeta
Pela estância Plutônia esvaeceu-se.
     Aguardei minha mãe, que o negro sangue
115 Beber veio, e bradou-me lamentosa:
“Que! filho meu, chegaste à escura treva!
É difícil aos vivos, entre enormes
E válidas correntes; nau compacta
Há mister o Oceano invadeável.
120 De Ílio, há muito errabundo, os sócios trazes?
Ítaca inda não viste, a esposa tua?”
     “Ah! minha mãe, respondo, urgiu-me a sorte
A vir ao Orco interrogar Tirésias.
Não fui à nossa terra, ou mesmo à Grécia;
125 Desde essa expedição, vagueio aflito.
Conta-me, adormeceste em sono eterno
Por doença aturada, ou pelas doces
Farpas da sagitífera Diana?
Conta-me de meu pai; se o caro herdeiro
130 Dos meus haveres goza, ou tem-nos outrem,
E cuidam que não volto. A esposa minha
Mora com nosso filho, os bens zelando,
Ou já foi por um grande conduzida?”
     E a veneranda mãe: “Constante em casa,
135 Dia e noite suspira atribulada.
Ninguém dos teus domínios apossou-se;
Lavra-os Telêmaco, e a festins o atraem
Próprios de quem justiça aos povos rende.
Só teu pai, da cidade sempre fora,
140 Sem macios colchões, tapetes, mantas,
Como os escravos, deita-se de inverno
Ao pé da cinza, veste humildes roupas;
De outono e de verão, na fértil vinha,
Em cama dorme de caídas folhas;
145 Por ti chora, e é dos anos molestado,
Em contínua tristeza. Tal finei-me,
Não da frecheira deusa a tiros brandos,
Não de mal que definha e roi a vida,
Mas de dor, meu bom filho; a tua ausência
150 E as lembranças de ti me sepultaram.”
     Três vezes ao materno simulacro
Fui me abraçar, três vezes dissipou-se
Igual ao vento leve ao sono alado.
Mágoa pungiu-me acerba: “A meus desejos
155 Te esquivas, minha mãe? ao colo os braços,
Ambos nos deleitássemos de pranto
Pela casa Plutônia! És vácuo espectro,
Pela augusta Prosérpina enviado
Para agravar meus ais? — “Não, contestou-me,
160 Filho amado, oh! misérrimo dos homens,
Não te engana a de Júpiter progênie;
É nossa condição depois da morte:
Os nervos carnes e ossos não mais ligam,
A fogueira os consome irresistível;
165 Tanto que a vida os órgãos desampara,
A alma como visão remonta e voa.
Quanto antes volve à luz, e tudo aprendas
Para à casta Penélope o narrares.”
     Durante a nossa prática, incitadas
170 Pela ínclita Prosérpina, se apinham
De heróis muitas ou filhas ou mulheres:
A fim de uma por uma interrogá-las,
Sacar prefiro o gume dante o fêmur,
Para juntas o sangue não beberem;
175 Todas à espera, a cada qual pergunto,
E ia-me de seus casos informando.
     Tiro primeira vi, que se aclamava
Do temerário Salmoneu vergôntea,
E de Creteu Eólides consorte.
180 Amorosa do fresco Enipeu divo,
Da pulcra veia à borda se entretinha:
Disfarçado no rio verticoso,
À foz se encosta o Enosigeu, cambiante
Curvo aqueu monte empina, que em seu grêmio
185 Sorve a mortal e o nume; o cinto à virgem
Ele desata, em êxtase embebida.
Cumulado o prazer, da mão lhe trava:
“Alegra-te, mulher, no giro do ano
Lindos gêmeos terás, que terna cries;
190 Ósculo de imortais sempre é fecundo.
Anda, cala contigo, eu sou Netuno.”
E se afundou no flutuante pego.
Tiro houve a Pélias e Neleu, de Jove
Régios ministros, na arenosa pilos
195 Neleu, Pélias na fértil em manadas
Ampla Iaolcos. A Creteu marido
Pariu também a guapa soberana
O éqüite Amitáon e Éson e Feres.
     Antíope de Asopo eu vi: nos braços
200 Concebeu do Satúrnio Anfion e Zeto,
Que alcançaram Tebas a de sete portas
E a muniram de torres, pois sem elas,
Bem que heróis, habitá-la não podiam.
     Alcmena Anfitriônia eu vi, que, ilusa
205 Unindo-se ao Tonante, Hércules teve
De ânimo de leão; depois, Megara,
Do semideus mulher, de Créon prole.
     Epicasta eu vi bela, em cujo toro,
Fatal engano! entrou seu filho Édipo,
210 Ignaro parricida. O fato horrível
Tendo o Céu revelado, ele, por dura
Sentença divinal curtindo penas,
Os Cadmeus regeu na amena Tebas;
Ela em agro pesar, suspenso um laço
215 De Celsa trave, do Orco às portas baixa,
Ao cúmplice legando quantas fúrias
Sabe evocar do inferno a dor materna.
     A de Anfíon Iásides mais jovem,
Clóris vi, que Neleu com pingue dote
220 Esposou por formosa, herói que em Pilos
E na Miniéia Orcômeno imperava;
Do qual teve os gentis Nestor e Crômio,
Periclímeno ilustre, e aquela Pero
De todos maravilha ambicionada.
225 Por Neleu prometida a quem furtasse
De Íficlo as negras vacas largifrontes,
Só tentou vate exímio essa árdua empresa;
Mas, por destino austero, o agrilhoaram
Em Fílace os boeiros. Já corridos
230 Meses e dias e estações de um ano,
Tendo agouros solvido ao rei potente,
Libertou-se, de Jove por vontade.
     A Leda eu vi, que a Tíndaro excelentes
Filhos pariu, Castor na picaria,
235 No pugilato Pólux: vivos ambos.
No térreo bojo, alternam vida e morte;
Por turno o Padre sumo os diviniza.
Vi de Aloeu a cônjuge Ifimedia,
Fera de concebido haver dous filhos
240 De Netuno, Efialtes e Otogemeos,
Da alma terra pulquérrimos gigantes,
Após Órion, se bem de alento breve:
Aos nove anos, já tinham de cintura
Cúbitos nove, com tresdôbro de alto.
245 Movendo ao mesmo Céu guerra estrondosa,
Para a escalada, sobre o Olimpo o Ossa
Tentaram pôr e sobre o Ossa o Pélion:
Talvez na puberdade o acabariam,
Se o de Latona e Jove os não matasse
250 Antes que o buço as faces lhes pungisse:
Ou flórea barba sombreasse os mentos.
     Prócris e Fedra vi, de Mimos sábio
Ariadna filha, que Teseu de Creta
Para Atenas levava culta e fértil;
255 Mas de caminho lha embargou Diana,
De Baco a instâncias, na circúnflua Dia
     Mera e Climene, Erifile odiosa,
Que traiu seu marido à força de ouro.
Mas, se nomeio quantas vi mulheres
260 Ou gênitas de heróis, ir-se-ia a noite,
Que, entre os sócios a bordo ou neste paço,
Já me empenha balsâmica ao repouso.
A volta minha incumbe a vós e aos deuses.” —
     Na eloquência enlevados os convivas,
265 Silêncio guardam pela sala umbrosa.
A alva Areta o quebranta: “Em forma e talhe
Que vos parece tal varão, Feaces,
E em mente sã? Bem que hóspede meu seja,
Da honra participais: daqui não parta,
270 Sem dons lhe prodigardes na indigência,
Pois tendes muito por mercê divina.”
     Equeneu ponderou, maior na idade:
“Obedecei-lhe, amigos, não sem tento
Exprimiu-se a rainha; o exemplo e as ordens
275 Manem de Alcino.” E Alcino: “Enquanto reja
A marítima gente, igual aviso
O meu será. Comprime a impaciência,
Té que, hóspede, amanheça e os dons colhamos
Da tua volta os nossos curam todos,
280 E eu mais, cujo poder no povo estriba.”
     Logo o astuto: “Em preparos da viagem
Com magníficos dons, ó rei possante,
Se um ano me entretens, um ano fico:
De mãos cheias à pátria ir me aproveita,
285 Para ser venerado e mais querido.”
     O rei continuou: “Prudente Ulisses,
Quem atentar em ti, não pode crer-te
Impostor, quais a terra esparsos nutre
A decantar mentiras sem contraste:
290 Sisudo e simples, como um vate narras
A história dos Aqueus e os lances próprios.
Viste algum bravo sócio em Tróia extinto?
Cedo é para dormir, a noite é longa:
Se a tua dor consente o prosseguires,
295 A alvorada me encontre a ouvir teus casos.”
     Ulisses prosseguiu: “Preclaro amigo,
Horas há de falar e horas de sono;
Mas, se o levas em gosto, não recuso
Dos meus contar-te os lutos e infortúnios,
300 E dos que, livres da cruenta guerra,
Na pátria sucumbiram pela infâmia
De uma falsa mulher. — Disperso tendo
Prosérpina os femíneos simulacros,
O de Agamemnon surge, e os dos que Egisto
305 Com ele assassinou. Bebido o sangue,
Braços me estende, em lágrimas a pares;
O alento lhe falece, que era dantes
Em seus membros flexíveis, e eu carpindo
Lhe brado condoído: “Ó glorioso
310 Rei dos reis, como houveste o fatal golpe?
Domou-te o azul tirano em tempestade?
Ou mãos hostis em terra, ao dcpredares
Armentio e rebanho? ou defendo
O pátrio muro e a honra das famílias?”
315  “Divo e sábio Laércio, respondeu-me,
Não me domou Netuno em tempestade,
Nem mãos hostis em terra: Egisto à casa,
Com minha atroz consorte conluiado,
Atraiu-me, e no meio de um banquete,
320 Como a rês no presepe, derribou-me;
E estes sócios comigo estrangularam,
Quais porcos de um ricaço destinados
A função por escote ou bródio ou núpcias.
Estiveste em conflitos e carnagens,
325 Mas por tão feio horror nunca choraste:
Cratera e mesas e comer e sangue
Mistos rolam; no chão pungentes gritos
Soam-me de Cassandra Priaméia,
Que ante mim trucidava Clitemnestra;
330 Soergo-me, e inda busco moribundo
Pegar do alfange; aparta-se a impudente,
Nem quis, no instante que eu baixava a Dite
Cerrar-me os olhos e compor-me os lábios.
Nada há mais sevo que a mulher indigna
335 Capaz de conceber tamanhos crimes.
A que esposei donzela assim tratou-me:
Crua morte me urdiu, quando eu pensava
Prazer vir dar a fâmulos e a filhos.
Torpemente manchou-se, e tanta infâmia
340 Tem as mais virtuosas deslustrado.”
     “Hui! de Atreu contra a raça, exclamo, é fado
Que a Jove irritem feminis conselhos:
De tantos funerais foi causa Helena;
Traições tramou-te ausente Clitemnestra.”
341 E ele: “Austero à mulher nunca fraquejes;
Reveles o preciso, o mais lhe encubras.
Não virá de Penélope desastre,
Sábia filha de Icário intemerata;
Inda noiva a deixamos, ao partirmos,
350 Com seu filho de mama, hoje homem feito;
Ditoso hás de abraçá-lo, há de ele ver-te:
No meu vedou-me saciar os olhos
Clitemnestra cruel. Mas, n’alma o graves,
Não fiar de mulheres; cauto e oculto
355 Aborda à pátria, conta-me, entretanto,
Se no seio de Orcômeno ou de Pilos,
Ou junto a Menelau na vasta Esparta,
De meu filho soubeste; pois da terra
A Dite inda não veio o divo Orestes.”
360 “Para que hei de enganar-te? respondi-lhe
Se é vivo ignoro.” E enquanto lagrimamos,
Aparecem-me Aquiles e Pátroclo,
Mais Antíloco e Ajax, que ao só Pelides
Entre os Gregos cedia em gentileza.
365 O Eácida ligeiro, ao conhecer-me,
Gritou: “Sábio Laércio generoso,
Que te falta, infeliz, para empreenderes?
Vires ao reino escuro, só de aéreos
Incorpóreos fantasmas habitado!”
370 “Valente dos valentes, vim, lhe torno,
Perguntar a Tirésias como à pátria
Fragosa aportarei. Mesquinho e errante,
Nela não estive, nem sequer na Acaia.
Tu, feliz no passado e no futuro,
375 Eras em vida qual um deus aceito,
E ora as almas dominas; do trespasso
Não deves pois te lamentar, Aquiles.”
     “Ínclito Ulisses, retorquiu, da morte
Não me consoles; pago anteporia
380 Servir escassa rústica choupana
A defuntos reger. Dize, meu filho
Na frente sempre ou no tropel combate?
Que é de Peleu brioso? inda o veneram,
Ou na Hélade e Pítia hoje o desdenham,
385 Por que a velhice pés e mãos lhe tolhe?
Ao sol não mais respiro, como em Tróia,
Batalhões derrotando em pró dos Gregos:
Se eu tocasse um momento o pátrio alvergue,
A intrepidez e audácia embotaria
390 Dos que o privem das honras e homenagens.”
     “Nada, lhe digo, de Peleu me consta;
Mas de Neotólemo aqui te informo:
De Ciro transportei-o em nau bojuda
Aos grevados Aqueus. Sempre em consultas
395 Primeiro, sem desvio discursando,
A mim próprio e a Nestor se equiparava;
Sempre avante, na turba não se tinha,
Na refega a ninguém rendia a palma,
Sem conto propinando o acerbo trago.
400 Uma façanha apontarei somente:
A Euripilo Teléfides com muitos
A bronze derribou, dos Ceteus cabo,
Que, por dons feminis, passara a Tróia,
E após Mênon divino era o mais belo.
405 O cavalo de Epeu quando montamos,
Abrir, fechar as cálidas insídias,
Ficou tudo a meu cargo: os reis e os chefes
Estremecendo o pranto sufocavam;
Pálido nunca o vi nas gentis faces,
410 Nunca uma lágrima enxugando. Oh! como
Do cavalo sair me suplicava!
Como apunhava a espada e a lança aênea,
Aos contrários minaz! Depois de rasas
As muralhas Priâmeas, embarcou-se
415 Com rica presa, ileso de êneos golpes
Ou de longe ou de perto, a comum fúria
De Marte sem provar na atroz contenda.”
     A alma do Velocípede, orgulhosa
Das notícias do filho, corta alegre
420 Em marcha triunfante o verde prado.
     Outras males seus também me expunham;
Mas a de Ajax, de parte, irosa estava
Pelas armas de Aquiles, que a mãe Tétis
Ante as naus presentara, e por sentença
425 Me adjudicaram Teucros e Minerva.
Ah! nunca me coubera essa vitória,
Que o herói tumulou dos Gregos todos
O mais formoso e bravo, exceto Aquiles!
Meigo lhe imploro: “Exímio Telamônio,
430 Nem morto esqueces a fatal porfia,
Celeste punição da gente Argiva!
Da pátria ó fortaleza, o luto nosso
Não foi maior quando morreu Pelides.
A culpa é só de Júpiter, que os Dânaos
435 Abomina e te impôs tão dura sorte
Chega-te, ouve-me, ó rei, teu ódio aplaca,
No ânimo generoso me perdoa.”
     Não deu palavra, e tácito ia andando
No Érebo a esconder-se. Inda que torvo,
440 Me falara por fim; mas outras sombras
Examinar o peito me pedia.
     Minos, gérmen Dial, tendo áureo cetro,
Sentado o avisto a conhecer dos mortos,
Que, esparsos no Orco, se erguem por seu turno,
445 Dizem do seu direito. Órion avisto,
Por várzeas de gamões a acossar feras
Que vivente abatera em montes ermos,
De érea clava na mão. — Eis Tício, aluno
Da gloriosa Terra, que estendia-se
450 Por jeiras nove, e abutres, sem podê-los
Despregar, às entranhas aferrados,
Lhe estão roendo o fígado, em castigo
Da tentada violência à do Tonante
Casta esposa Latona, indo ela a Pito
455 Pelas do Panopeu ridentes margens.
     Vi Tântalo também, num lago imenso
Que o mento lhe banhava, ardendo em sede.
Pois, a apagá-la se perdia o velho,
A água absorta escoando-se, um demônio
460 Aos pés seco atro lodo lhe mostrava.
Sobre a cabeça corpulentos galhos
Suspendiam-se frutas sazonadas,
Figos doces, romãs, pêras e olivas;
Mas, se o velho faminto ia colhê-las,
465 O vento as levantava às densas nuvens.
     Vi Sísifo, anelante e afadigado,
Em pés e mãos firmar-se, pedra ingente
Para um monte empurrando, e lá do cume
Galgado por Crateis, rolar de novo
470 O pertinaz penedo; ei-lo persiste,
Suor escorre e a testa se empoeira.
     Hércules se me antolha, em simulacro,
Pois no céu liba o néctar, caro esposo
De Hebe de lindos pés, de Jove e Juno
475 De áureas sandálias filha: em guinchos de aves,
Cercam-no, espalham-se, a fugir os mortos;
Cor da noite, ele ajusta a frecha ao nervo,
Na ação de disparar, tétrico olhando.
Ao peito áureo talim cinge estupendo,
480 Onde leões, javardos e ursos, tinha
Com primor esculpidos, e recontros
E batalhas e estragos e homicídios:
Mestre algum peça igual fabricou nunca,
Nem há de fabricar. O herói sem custo
485 Reconhece-me e fala comovido:
“Nobre e sábio Laércio, ai! tens a sorte
Misérrima que tive, quando aos raios
Eu respirei do Sol. Nasci de Jove,
Mas fui de angústias mil atormentado,
490 Sujeito a homem de valor somenos,
Que me impunha asperíssimos trabalhos!
Cargo o pior, mandou-me o cão trifauce
Cá prender; eu do inferno o tirei fora,
Por Mercúrio ajudado e por Minerva.”
495 Disse e foi-se ao profundo; eu quedo espero
Por mais outros varões dos priscos tempos:
Gostoso a muitos vira, e contemplara
Pirítoo e Teseu, divina prole;
Mas com harto ruído infinda chusma
500 Ávida concorrendo, enfim de medo
Que do imo a soberana me enviasse
A Gorgônia horrendíssima cabeça.
Rápido embarco a gente e safo os cabos;
Nas tostes a maruja, a correnteza
505 Pelo Oceano rio nos levava,
Ao som da voga e favorável brisa.

NOTAS AO LIVRO XI
10-16 — Questionam os eruditos se os Cimérios ficavam na Quersoneso Táurica, ou junto a Nápoles, ou fora das colunas de Hércules. Fundam-se os da última opinião na palavra Oceano de que usa o poeta; mas, em grego e latim, Oceano tomava-se pelo mar todo e qualquer, e mesmo por um golfo, e só este argumento parece que não conclui. Rochefort trabalha por mostrar que os Cimérios de Homero são na Quersoneso Táurica, e cita os principais que até seu tempo trataram da questão. Sou mais da segunda opinião, confessando contudo que é matéria duvidosa, e o sou: 1.°) porque sempre foi este o parecer dos antigos de maior nota; 2.°) porque o adotou Virgílio, autoridade para mim de toda a exceção; e enfim, pelos argumentos que vêm na Lettre à M. Victor Langlois par Ch. Em. Ruelle, publicada em Paris em 1859, à qual pode recorrer o leitor curioso, pois citá-los todos faria não pequeno volume.
298 — Levar em gosto, boa e usada locução, vem em Morais, mas falta em Constâncio: é de óbvio sentido, e da conversação ordinária.
402-403 — Não é líquido quem fossem os Ceteus comandados por Eurípilo: pensam uns que eram simples mercenários; outros certos povos da Míria; outros, da Eléia, por causa do rio Ceteu, que é dessa parte da Grécia; outros enfim, de Pérgamo. Há também dúvida quanto às palavras gunaion eineka dõrõn: uns dizem que Príamo fez presentes à mulher e à mãe de Eurípilo a fim que este o ajudasse; outros, que lhe prometeu uma das filhas para atraí-lo. Pindemonte é do segundo parecer; eu sou do primeiro, porque o plural gunaion indica antes que Homero se refere às dádivas, que a só filha de Príamo. M. Giguet verteu à letra, à cause des presents des femmes; o que não levo a mal, posto que assim torne-se escura a passagem, pois a escuridade vem do próprio autor e não do seu tradutor.
438-441 — Apesar de Mme. Dacier e dos mais tradutores, este encontro não é tão belo como o de Enéias com Dido. “A inflexibilidade de Ajax, diz Rochefort, é verdadeiramente sublime; a cena patética dos dous heróis perde muito com dous atores como Enéias e a sua amante, sobretudo ao voar Dido aos braços de um marido de quem se esquecera”. Deslembrou-se o crítico de que os fundadores de Roma e de Cartago, na hipótese de Virgílio, eram também dous heróis e dous heróis muito úteis; e a circunstância de amantes acrescenta o interesse dramático. Rochefort devera ser mais ciumento que um Turco, pois não admitia que uma viúva, depois de vingar o seu primeiro esposo, passados tantos anos, quisesse casar de novo para ter um defensor e aumentar a sua colônia. Siqueu não tinha sido atraiçoado, e justo era que perdoasse um erro onde a sua honra não fora comprometida; o perdão de Siqueu e o amor de Dido para com o marido que a não tinha manchado (assim opino eu em nota à Eneida) causam grande comoção. O meu bom camarada Garret, no seu “Fr. Luís de Sousa”, um dos primores do nosso teatro, melhor conheceu, conheceu como Virgílio, a delicadeza de um grande coração, quando fez que o primeiro marido de D. Madalena, sabendo-a casada com um cavaleiro generoso, em vez de mostrar ciúme estúpido se compadecesse dos novos consortes e desaparecesse. Já toquei, em nota ao sexto livro da Eneida, que o silêncio de Dido sobe ao cume do sublime pela sua irrevogabilidade, exprimida com a comparação Quam si dura silex aut siet Marpesia cautes; e a de Ajax diminui de força pela afirmação de que ele teria falado a Ulisses, a ter este insistido. — Para mim o inferno do poeta Latino é grandemente superior ao do poeta Grego; mas, quanto ao mérito dos autores, é cousa diferente: Homero, como criador, está sentado na principal cadeira, e com razão tem sido representado na figura de um rio caudaloso em cuja urna cada qual dos outros vem encher a sua.
504 — As tostes, em latim transtra, que Larramendi cuida vir do vasconso tostae, são bancos de navios de remos, e não só bancos de forçados, segundo o querem dar a entender os nossos dicionaristas. Ir para o índice do livro.