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Alexandre, o Grande – Philip Freeman


Alexandre, o Grande, foi um general de tamanha habilidade e fama que suas estratégias foram estudadas e replicadas por grandes líderes – de Aníbal a Napoleão – por mais de dois mil anos. Ele foi responsável pela formação do maior exército do mundo antigo, governando um território que se estendia dos desertos do Egito às montanhas do Paquistão. Coroado aos 19 anos, morreu no auge da glória aos 32. Ele foi Alexandre, o Grande. 

Herdeiro da família real macedônica, Alexandre foi pupilo de Aristóteles na infância e desde sempre demonstrava uma mente ágil e inquisitiva. Logo após assumir o comando do exército, ele deu início a uma invasão ao Império Persa, a primeira de uma série de campanhas militares que avançaram cada vez mais longe Oriente adentro. Em seus esforços para unificar o reino, Alexandre difundiu a cultura grega por todos os territórios dominados. Como prova do poder de sua figura imponente e carismática, o império construído por ele começou a ruir pouco tempo depois de sua morte, dividido por violentas disputas de sucessão. Mas Alexandre, o Grande, já havia deixado sua marca na história, como poucos fizeram. Sua vida é habilmente narrada pelo historiador Philip Freeman nesta biografia, escrita com precisão acadêmica e de leitura saborosa como um grande romance de aventuras.

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Odisséia de Homero Livro IX

Toma Ulisses a mão: — Potente Alcino,
De povos sumo rei, nada há mais grato
Que do cantor a divinal poesia;
Nada mais deleitável que esta gente
5 Lhe estar ouvindo a voz melodiosa
À tua mesa, de regalos plena,
E o vinho haurir que da cratera vaza
Nos copos o escanção: minha alma o escuta.
Mandas-me renovar a dor e o pranto:
10 Que princípio, que meio, que remate
A narração terá de imensos males
A mim fadados? Por meu nome enceto.
Escapo aqui da morte, hóspede vosso
Perpétuo seja, inda que longe moro:
15 Sou Ulisses Laércio, encomiado
Por meus ardis, com fama até nos astros.
Ítaca habito ocídua, e lá tremula
Nerito a verde coma; circunstantes
Ilhas há povoadas, como Same
20 E Dulíquio e Zacinto nemorosa,
Orientais e ao sul; Ítaca humilde
Última as trevas olha, áspera e tosca,
Porém não posso ver nada mais doce.
Na gruta sua a ótima Calipso,
25 Em casa teve-me a dolosa Eéia,
Sem nunca afagos seus me demoverem,
Pois ledo homem não vive e satisfeito
Fora da pátria amiga e dos parentes,
Bem que noutro país nade em riquezas.
30 Ora de Ílio a tornada lagrimosa
Referirei, disposição de Jove.
     À Ísmara o vento impele-me e aos Cícones
Saqueio e os mato; com partilha justa
As mulheres e a presa dividimos.
35 Presto os insto a largar; mas insensatos
Na praia indóceis a beber se ficam,
Ovelhas abatendo e negros touros.
Os fugitivos por socorro bramam,
E n’alva em cópia do interior concorrem
40 Bons peões e adestrados cavaleiros,
Como as folhas vernais e as flores brotam.
Jove de mil desgraças nos oprime:
Eles às nossas naus o ataque apertam,
Fervem de parte a parte os êneos tiros;
45 Toda a manhã enquanto a luz crescia,
Do número apesar, os contivemos;
Ao Sol cadente, quando os bois descangam,
Em fuga nós, poupando a Parca os outros,
Armando seis de cada nau perdemos.
50  Salvos, contudo mestos velejamos,
Vezes três a invocar primeiro os sócios
Ai! nas Cicônias margens trucidados.
O Nimbífero o Bóreas assolou-nos;
Tolda bulcão tristonho o mar e a terra,
55 A noite rui do céu; de esguelha o vento
As velas farpa, e súbito arreadas,
Varei com susto. Lá cansaço e mágoa
Nos ralou; mas, à terça ruiva aurora,
Mastros eretos, brancos linho içado,
60 Navego ao tom da brisa e dos pilotos.
O natal chão tocava, quando Bóreas
E do Maléia as correntes me empuxaram
Muito além de Cítera. Dias nove
Pelo piscoso ponto flutuando,
65 No dezeno aos Lotófagos arribo,
Que apascenta uma planta e flor cheirosa.
Jantamos, feita aguada; envio arauto
Com mais dous a inquirir de pão que gente
Lá se nutria. Aos três em nada ofendem,
70 Mas lhes ofertam loto; o mel provando,
Os nossos o recado e a pátria esquecem,
Querem permanecer para o gostarem.
Constrangidos e em lágrimas os trago
E amarro aos bancos; apressado os outros
75 Sócios recolho, a fim que do regresso
A doçura falaz os não deslembre.
Em fila, a salsa espuma a remos ferem,
E dali pesarosos nos partimos.
     Abordo a infanda plaga do Ciclopes,
80 Que, à fiúza dos deuses, nem semeiam,
Lavram nem plantam; sem cultivo e relha,
Cresce o trigo e a cevada, os bagos de uvas
Lhes engrossa o imbrífero Satúrnio.
De conselho e assembléia e lei privados,
85 Cada varão, de montes em cavernas,
Rege absoluto filhos e mulheres,
Vizinhos olvidando. Ilha daquela
Tanto ou quanto remota, umbrosa estende-se,
Altriz de agrestes cabras: nunca a pisa
90 Humano pé, campônio, zagalejo,
Ou caçador ao serro e à fraga atreito;
Berrantes fatos inarada pasce.
Nem construtores de vermelhos beques
Nem galés tem que os mares atravessem,
95 Que em longínquas cidades mercadejem,
Donde a ilha deserta haja colonos.
Tudo em sua estação produziria:
Junto à costa oferece regadios
E moles prados; ao vinhedo é própria;
100 É fofo o solo e para messes pingue.
De âncoras e de amarras prescindindo,
Permanecer no porto os nautas podem,
Até que as auras prósperas aspirem;
De uma gruta, no topo, fresca fonte
105 Límpida mana, de álemos sombrosa.
Lá jogou-nos a vaga, e um deus foi guia;
Nada na cega noite se enxergava:
Na terra as naus, em densa escuridade
Esmorecida a Lua, a terra oculta,
110 Nem rolar a mareta às praias vimos,
Antes que as proas abicassem nelas.
Colhido o pano salta-se, e na areia,
Da madrugada à espera, adormecemos.
     Do ar mal fulge a dedirrósea prole,
115 Toda a ilha admirados perlustramos.
Ninfas do aluno de Amaltéia agitam
Para nosso jantar monteses cabras.
Das naus trouxemos arcos e azagaias;
Tripartidos, de caça o deus fartou-nos;
120 Cabeças nove cada nau das doze,
Uma de mais somente obteve a minha.
Ao sol posto a comer, nos regalamos
De roxo vinho; em ânforas a bordo,
Roubo, do sacro burgo dos Cícones,
125 Inda restava. Nos Ciclópeos cumes
Fumo avistou-se, ouviram-se balidos.
Anoitece e dormimos; na alvorada
Convoco a gente: “Cá vos deixo, amigos;
Eu mesmo explorarei se aqueles homens
130 São ferozes e injustos e intratáveis.
Ou tementes aos deuses e hospedeiros.”
     Ocupo o meu navio; os da companha,
Desatando os calabres, abancados
A branca espuma a remos açoutavam.
135 Na próxima paragem, numa extrema,
Junto ao mar descobriu-se alta espelunca,
De loureiros opaca, onde albergava
Cabrum gado e ovelhum, do pátio em roda
A pique rochas, com alvares pinhos
140 E carvalhos de topes verdejantes.
Seus rebanhos ali desconversável
Gigante pastorava, em separado,
Só consigo maldades ruminando;
Monstro não comparável aos humanos
145 De pão nutridos, mas do monte ao cume
Que selvoso dos outros se destaca.
À nau ponho de guarda os camaradas;
Escolho doze, um odre lhes confio
Do vinho de Máron de Evanteu nado,
150 Em Ísmara Apolíneo sacerdote;
O qual poupamos e mulher e filhos,
Na sagrada floresta, com respeito;
E áureas talentos sete, urnas de prata,
Mais uma dúzia de ânforas doou-me
155 De almo licor nectáreo incorruptível.
Desse vinho melífluo, em casa ignoto,
Menos à esposa e à despenseira, um vaso
Com vinte se mesclava de água pura,
E tal cheiro divino recendia,
160 Que dele alguém abster-se era um tormento.
Encho um odre, uns alforjes abasteço,
Audaz me deito a visitar o iníquo
De alma ferrenha e desmedida força.
     Então fora pastava o nédio gado,
165 E no interno o antro seu nos foi pasmoso:
Nos cinchos pesam queijos; de cabritos
E anhos currais se atulham, segregados
Os meãos e os tenrinhos e os maiores;
Mungido fresco em tarros e alguidares,
170 Nada no soro o coalho. Os meus imploram
Que, tomados os queijos e atraídos
Cabritos e ambos, de embarcar tratemos:
Fora certo o melhor, mas eu quis vê-lo
E dons ter hospitais; futura aos sócios
175 Vista ingrata. Imolando, aceso o fogo,
Do lacticínio come-se, e aguardamos.
     Ei-lo, de lenha para a ceia, à porta
A grossa atira estrepitosa carga;
Tremendo no interior nos ocultamos.
180 À espelunca recolhe as gordas fêmeas
Para, ordenhar, de fora tendo os machos
No amplo recinto, bodes e carneiros;
Depois a entrada fecha, levantando
Rocha tal, que mover nem poderiam
185 Vinte dous carroções de quatro rodas.
Sentado, ovelhas e balantes cabras
Em ordem munge, e às mães submete as crias:
Porções do leite coalha e aperta em fôrmas;
Guarda metade, que ceando beba.
190 Tudo aviado e em cobro, atiça o lume,
E dá conosco e diz: “Quem sois vós outros?
Navegais por negócio, ou ruins piratas
Os mares infestais, expondo as vidas
Para infortúnio e dano de estrangeiros?”
195 Frios, do rouco som, do monstro mesmo
Trememos todos; mas falar me atrevo:
“Dos Gregos somos que, da pátria em busca,
Desde Ílios furacões nos remessaram
A estranhas plagas, por querer de Jove;
200 No exército servimos de Agamemnon,
Cuja glória a qualquer mundana eclipsa,
Pois destruiu tal povo e tal cidade.
A teus pés agasalho deprecamos.
Ou brindes hospitais. Receia os deuses,
205 Senhor; Júpiter vinga os suplicantes,
E a bons e honrados hóspedes protege.”
     Turvo me respondeu: “Louco! tão longe
Vens o temor dos deuses ensinar-me?
Os Ciclopes, que os deuses mais prestantes,
210 Esse aluno da cabra desdenhamos.
Se não por mim, de Júpiter por medo
Pensas que te perdoe e os companheiros?
Onde ancoraste a nau? distante ou perto?
Declara-o já.” — Manhoso ao laço fujo:
215 “Desfez-ma o Enosigeu, na ponta e escolhos
Dos fins da vossa terra; aqui, dos ventos
Rojado, a custo me salvei com estes.”
Ei-lo, sevo e em silêncio, a dous agarra,
No chão como uns cãezinhos os machuca,
220 E o cérebro no chão corre espargido;
Os membros rasga, e lhes devora tudo,
Fibra, entranha, osso mole ou meduloso,
Qual faminto leão: chorando as palmas,
Em desespero e grita, a Jove alçamos.
225 Pleno de humanas carnes o amplo ventre,
Leite bebe o Ciclope a grandes sorvos,
E entre as ovelhas na caverna estira-se:
Animoso de espada ia feri-lo,
Onde o fígado junta-se ao diafragma,
230 Quando à idéia me vem que, nímio débeis
Para o empacho movermos da saída,
Morreríamos todos morte acerba:
A aurora pois gementes esperamos.
     Ao raiar da manhã, suscita o fogo,
235 Ordenha e a cada mãe submete as crias.
O serviço afervora, e para o almoço
Mais dous empolga e traga; a pedra erguendo
Fácil, como na aljava a tampa ajusta,
A repõe, já de fora com seu gado;
240 E, indo-se ao monte, ouvíamos seus urros.
Vingança cogitada, invoco a Palas;
Trás longo meditar, melhor conselho
Este me pareceu: de um tronco pego
Oleagíneo e verde, grosso e longo,
245 No antro a secar jazendo para clava,
Que o mastro parecia de um mercante
Flutívago baixel de vinte remos;
Corto-lhe uma braçada, os sócios mando
O pedaço alisar, depois o aguço
250 E o tosto a fogo ardente, no monturo
Pela caverna acumulado o escondo.
Sorteiam-se os que atrevam-se comigo
No olho o pau enterrar-lhe pontiagudo,
Enquanto sopitado em sono esteja;
255 A sorte elege quatro, e eu faço o quinto.
     Chega à tarde o pastor, e sem no pátio
Conter os machos, encurrala o gado.
Ou por divino influxo ou por suspeita;
A boca do antro fecha, em ordem munge
260 Sentado as fêmeas e submete as crias.
Presto acaba o serviço, e para ceia
Inda esquarteja dous; eu perto exclamo,
Taça a lhe oferecer de roxo vinho:
“De carne humana estás, Ciclope, farto;
265 Ora da nossa nau prova a bebida.
Mais terias, se à casa me enviasses
Por compaixão: que fúria intolerável!
Como, de tanta crueldade à vista,
Pode qualquer humano visitar-te?”
270 Recebe a taça, com delícia a empina,
E pede mais: “Dá-me de novo, dá-me;
O nome teu me digas, para haveres
Dom que te aprazirá. Nossa alma terra
Vinho de uvas produz que orvalha Jove;
275 Mas este, ambrosia é doce e néctar puro.”
     Renovo a taça ardente, que três vezes
Néscio esgotou. Sentindo-o já toldado,
Brando ajunto: “Ciclope, não me faltes
À promessa. Meu nome tu perguntas?
280 Eu me chamo Ninguém, Ninguém me chamam
Vizinhos e parentes.” O ímpio e fero
Balbuciou: “Ninguém, depois dos outros
Último hei de comer-te; eis meu presente.”
     E ressupino cai e, a cerviz grossa
285 Dobrando, ao sono domador se rende;
A impar na embriaguez, ressona e arrota,
Vomita o vinho e carne humana em postas.
Na cinza o lenho aqueço, animo os sócios
A não me abandonarem no perigo;
290 O oleagíneo troço, inda que verde,
Em brasa tiro, e um deus nos acorçoa;
No olho ficam-lhe os meus o pau candente,
Eu de cima o revolvo: qual se broca
Naval madeira, que sustém com loros
295 Do mestre oficiais de uma e outra banda
E o trado gira sempre; assim viramos
No olho o tição. Cálido sangue espirra;
O vapor da pupila afogueada
As pálpebras queimava e a sobrancelha;
300 Do imo as raízes crepitar sentimos.
Quando enxó n’água fria ou grã secure
Imergindo o forjeiro a temperá-lo
Caldeia o ferro, estrídulo este chia:
Da trave em roda o olho assim chiava.
305 O urro tremendo ecoa nos penedos;
Assustados fugimos; ele, o tronco
Todo em sangue arrancado, o lança fora
Na veemência da dor, bramando horrível
Pelos Ciclopes, que em vizinhas grutas
310 Sobre ventosos cumes habitavam.
     Aos gritos acudindo, eles à entrada
O que o aflige indagam: “Polifemo,
Porque a noite balsâmica perturbas
E nos rompes o sono com tais vozes?
315 Acaso ovelha ou cabra te roubaram,
Ou por dolo ou por força alguém matou-te?”
     “Amigo, do antro Polifemo disse,
O ousado que por dolo, não por força,
Matou-me, foi Ninguém.” — Replicam logo:
320 “Se ninguém te ofendeu, se estás sozinho,
Morbos que vem de Jove não se evitam;
Pede que te alivie ao pai Netuno.”
Com isto vão-se andando, e eu rio n’alma
De que meu nome e alvitre os enganasse.
325 Gemebundo o Ciclope e dolorido,
Trêmulo apalpa, e removendo a pedra,
Senta-se à boca do antro, as mãos estende
A apanhar quem saísse entre as ovelhas.
Ele cria-me estulto; eu cogitava
330 Com que ardil me livrasse e os meus da morte
Horrorosa e iminente, e o plano formo:
Três a três ligo tácito uns carneiros
De lã violáceas, grandes e alentados,
Com retorcido vime, em cujos feixes
335 Dormia o monstro; no do meio ajeito
Um sócio, que os dous outros conduzissem;
Do maior da manada abraço o tergo,
E ao ventre submetendo-me veloso,
Firme ao tosão me implico e me penduro.
340 Carpindo à espera da manhã velamos.
     No arrebol urge o dono ao pasto os machos,
Dentro a balar as fêmeas de ubres tesos,
E em dores, à passagem, do que pára
O dorso afaga, néscio de que os sócios
345 Iam ligados aos lanudos peitos.
Último andava o meu, tardio ao peso
De mim, que em baixo astuto maquinava;
A anca lhe amima terno: “O derradeiro
Hoje és tu, preguiçoso? A largo passo
350 Ias dantes em frente, a pascer flores
E a banhar-te no límpido riacho,
E de tarde ao redil vinhas primeiro.
Do olho do senhor partes saudoso,
Que, de vinho domando-me a cabeça,
355 Cru mortal e os maus sócios me vazaram?
Escapo inda o não julgo: tu sentisses
Comigo e articulasses, que dirias
Onde se oculta; e, esparsos os miolos
Por toda a cova, ao mal, que me há causado
360 O vil Ninguém, teria um refrigério.”
Solto o Martinho então, se pôs de fora.
     Distante um pouco da caverna e pátio,
O meu largo e desprendo os mais carneiros;
Salvos do monstro, à pressa o desviado
365 Gordo rebanho para a nau guiamos,
Onde em pranto ansiosos companheiros
Nos receberam. Por acenos vedo
Esse lamento, e mando que o lanoso
Gado se embarque e o saldo mar cortemos.
370 Dito e feito, e verberam já remeiros
O encarnecido ponto, quando ao longe,
Mas a alcance de gritos, o invectivo:
     “Não devoraste, Polifemo, os sócios
De um homem sem valor; cruel e iníquo,
375 De hóspedes em teus lares te sustentas;
Júpiter castigou-te e os mais celestes.”
     Raivoso, ei-lo de um monte o cimo quebra,
Joga a rocha, que ao pé da popa tomba:
Ao choque a nau se inunda, e refluindo
380 Sobre a terra a mareta nos empuxa.
De um longuíssimo croque armado, o casco
Da praia arredo, e por sinais ordeno
Que, o trespasso esquivando, a voga piquem.
Sulcado espaço igual, falo ao Ciclope;
385 Em redor brandamente me retinham:
“Incitar queres, mísero, o selvagem,
Que a nau com novo tiro atraia à borda,
Onde acabar cuidávamos? Se tuges,
Ao perceber-te a voz, com força bruta
390 Penedo vibrará, que nos esmague
E este frágil madeiro desconjunte.”
     Preces vãs! generoso e inabalável
Em cólera bradei: “Se o perguntarem,
O olho dirás, vazou-te o arrasa-muros
395 Ítaco Ulisses, de Laertes nado.”
     Trovejou Polifemo: “Encheu-se o agouro
Ah! de Telemo Eurímides, profeta.
Que envelheceu famoso entre os Ciclopes!
Apagar-se-me a vista às mãos de Ulisses
400  Vaticinou-me: um forte e ingente e belo
Varão sempre cuidei que Ulisses fosse;
Mas, falso embriagando-me, a pupila
Furou-me um pífio imbele e pequenino!
Hóspede, eis os presentes, vem tomá-los;
405 Meu genitor confessa-se Netuno,
Rogo-lhe que a viagem te encaminhe.
Seja vontade sua, há de sarar-me;
De outro deus nem mortal socorro espero.”
     “Pudesse eu, repliquei-lhe, de alma e vida
410 Privar-te e remeter-te ao reino imano,
Como nem mesmo o genitor Netuno
O olho te sarará.” Súplices palmas
Ele à sidérea abóbada levanta:
“Ó rei Netuno de cerúlea coma,
415 Se teu sou na verdade, ó pai, te imploro
Que seu país não veja o arrasa-muros
Ítaco Ulisses, de Laertes nado;
Ou, se é fatal que à pátria amiga torne,
Só de toda a campanha, em vaso alheio,
420 Tardio aporte, e em casa encontre penas.”
     Seu rogo ouvido foi. Lasca outro pico
Muito maior, que expede volteando
Com sumo esforço: desta vez o leme
Quase alcança, e nos molha a erguida brenha;
425 Mas surde a proa azul, e a ilha toca
Onde as naus de coberta e os sócios eram,
Sempre a chorar por nós. Varado o casco,
Saltamos, e conosco a ovelhum presa,
Que divido irmãmente: a aqueles bravos
430 Dão-me a parte o carneiro em que livrei-me,
Eu na praia ao nimbífero Satúrnio
Queimo-lhe as coxas; mas o deus supremo
Enjeita o sacrífio, e delibera
A frota consumir-me e os camaradas.
435 Até Sol posto, à mesa nos fartamos
De carne e doce vinho, e escura a noite,
Na areia adormecemos. Vindo a rósea
Aurora matutina, a gente embarco;
Desamarrados, alva espuma torcem
440 Dos remos ao compasso os marinheiros.
Dali, da morte isentos; mas tristonhos
Pelos míseros sócios navegamos.

NOTAS AO LIVRO IX
15-34 - O reconhecimento parece tardio, crê-se à primeira vista que devera ser muito antes; mas note-se que Homero no livro VII, como para escapar à objeção, faz Ulisses dizer a Areta que não pode já narrar todas as aventuras, e só responderia às últimas perguntas: assim, respeitou Alcino o seu silêncio, até vir a ocasião de saber-se aonde a nau devia conduzi-lo. Esta demora, adaptada à marcha dramática do poema, tenho-a por um belo artificio. — Same é o mais antigo nome de Samos; Ísmara é cidade, assim lhe chama Virgílio, sem confundi-la com o monte, que se diz Ísmaro. — Ulisses, depois de saquear os Cicones, que justamente o escarmentaram, gaba-se da boa repartição da presa: entre os mesmos salteadores há uma espécie de equidade, para se poderem manter.
343-361 - Esta passagem tem sido censurada por inverossímil: a saída dos companheiros, cada um no animal do meio e conduzido pelos dous dos lados, compreende-se melhor; mas a de Ulisses num só carneiro, posto que o maior do rebanho, é difícil de conceber, sem embargo das diferentes explicações. Como porém o gigante estava cego e Minerva protegia a Ulisses, pode supor-se que, por influxo divino, afagou Polifemo o tal carneiro só em partes onde não se sentisse o engano. — O adjetivo cru do verso 355, onde o gigante se queixa de o terem cegado, quando acabava de comer seis homens, não admira na boca de um monstro brutal; nós outros somos propensos a ter por injusto o mal que nos fazem, e a achar pequeno o que aos outros fazemos: a modo que Homero quis representar um dos achaques da humanidade. Ir para o índice do livro.