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Odisséia de Homero - Livro XIX

A meditar com Palas na matança
Fica o divo Laércio, e diz: “Meu filho,
Agora as armas recolher te cumpre;
E caso algum o estranhe, assim te escuses:
5 Quais as deixou meu pai, já não luziam;
Do vapor do fogão fui preservá-las.
E outro medo o Satúrnio suscitou-me:
Entre os copos ferir-vos poderíeis,
Nosso convívio e os esponsais manchando;
10 Pois a força do ferro atrai o homem.”
     Telêmaco obedece ao pai querido,
Chama Euricléia à parte: “Eia, as mulheres
Retém, ama, lá dentro, enquanto acima
Reponho as pulcras armas, desprezadas
15 E do vapor do fogo denegridas
Na ausência de meu pai. Menino eu dantes,
Ora quero do fumo preservá-las.”
     A ama logo: “Oxalá com tal prudência
A casa rejas! Mas diante, filho,
20 Quem te há de alumiar, senão as servas?”
“Este hóspede, responde acautelado;
Que do meu coma ocioso, não tolero.”
     Ordem fútil não foi, porque os batentes
Fecha Euricléia. À pressa ambos carregam
25 Elmos, cavos broquéis e agudas lanças;
Precede-os Palas de lanterna de ouro.
“Meu pai, observa o moço, que milagre!
As paredes, as traves abietinas,
As grossas vigas, as colunas altas,
30 Em lume vivo aos olhos me lampejam:
Um deus parece dentro esclarecê-las.”
     “Tá! não tujas, o atalha o sábio Ulisses:
Os íncolas do Olimpo assim costumam.
Deita-te: à espreita eu fico das criadas;
35 Esperarei que em pranto me interrogue
Tua mãe.” — Ei-lo busca a própria alcova
No meio do esplendor, e em brando sono
Pega até que desponte a diva aurora;
Mas o herói permanece com Minerva,
40 A pensar no horroroso morticínio.
     Sai, qual Diana casta ou loura Vênus,
Penélope do tálamo, e lhe achegam
Ao lar o usado assento, obra de argênteas
E ebúrneas orlas, do famoso Icmálio,
45 De apto escabelo e forro de pelame.
As cativas gentis ali vieram
Erguer das mesas muito pão restante,
E a copa que servira aos convidados;
Em terra as brasas dos fogões depondo,
50 Lenha renovam, que ilumine e aqueça.
Doesta a Ulisses outra vez Melântia:
“À noite, malandrino, inda importunas?
Espias as mulheres? Farto e impando,
Fora, fora; ao contrário, atiçoadas
55 Eu te farei mais presto escafeder-te.”
     Averso a encara: “Insultas-me, demônio,
Por que, em vez de luzir, mesquinho e roto
A mendigar meu pão sou constrangido?
É de errabundos sina. Eu já palácio
60 Tive e escravos, e o mais que adita os homens,
E a quaisquer indigentes socorria:
Ora o querer de Jove arruninou-me!
Também murchar-te a formosura pode,
Que entre as servas te exorna; pode irada
65 Reprimir-te a rainha, e mesmo aquele
Que inda esperar se deve. Mas, se Ulisses
Perdeu-se enfim, outro ele e não criança,
De Apolo por favor, conhece o filho
Quantas mulheres esta casa infetam.”
70 Ouve-a e grita a rainha: “Descarada,
Em ti recairá tanta ousadia.
De mim triste soubeste que informar-me
Do esposo vem.” A Eurínoma virou-se;
“Traze-me, ecônoma, um forrado escano;
75 Em repouso, comigo ele converse.”
     À pressa o escano de tosões coberto,
Lhe trouxe a velha; ao divo herói sentado
Penélope interroga: “Hóspede, vamos
Quem és; de que família? de que pátria?”
80 E o circunspecto: “No orbe, alta senhora,
Ninguém te vitupera, e a glória tua
Penetra o céu; qual a de um rei sem pecha,
Que é pio e seus magnatas justo enfreia,
A quem do fruto as árvores se vergam,
85 O agro viça e engradece, a quem produzem
Greis e armentios, ferve o mar com peixes,
E cujos povos a bondade exercem.
De outra cousa me inquiras, não da pátria,
Não da família; ao recordá-las, custa
90 Gemer em casa alheia. Enfada o choro:
De alguma serva o escárneo atrairia,
Se o teu não fosse, e pode ser que ao vinho
Meu luto lagrimoso atribuíssem.”
     E ela: “O Céu me tirou beleza e forças,
95 Desde que a Tróia Ulisses me levaram.
Venha, mande-me e reja, e a minha glória
Mais resplendeceria: hoje um demônio
Me entristece e comprime. A flor dos Gregos
De Dulíquio, Zacinto, Ítaca e Same,
100 Requestando-me invita, os bens me estragam.
Já nos pobres nem hóspedes provejo,
Ou nos arautos, público ministros:
Saudosa a prantear consumo a vida;
Urgem-me os procos, e eu maquino enganos.
105 Um gênio me inspirou tramar imensa
Larga teia delgada, e assim lhes disse:
— Amantes meus depois de morto Ulisses,
Vós não me insteis, o meu lavor perdendo,
Sem que do herói Laertes a mortalha
110 Toda seja tecida, para quando
No sono longo o sopitar o fado:
Nenhuma Argiva exprobre-me um funéreo
Manto rico não ter quem teve tanto. —
A diurna obra desfazia à noite,
115 E os entretive ilusos por três anos;
Mas, gastas luas e horas, veio o quarto,
E então, por traça de impudentes servas
Apanhando-me, encheram-me de afrontas,
E a concluir a teia me forçaram.
120 Nem mais efúgio nem recurso tenho:
Muito a casar instigam-me os parentes;
Leva meu filho o mal que os bens lhe comam,
Pois, homem já, da casa tratar pode,
Como os que de honras Júpiter cumula.
125 Dize-me assim quem és; tu não das penhas,
Não do robre nascestes fabuloso.”
     E ele cortês: “Mulher de Ulisses digna,
Já que insistes, conhece-me a linhagem;
E, bem que obedecendo agrave as penas,
130 Inerentes aos tristes que erradios
Têm andado, como eu, de povo em povo,
Satisfazer-te vou. — De escuras vagas
Circúnflua jaz recunda e linda Creta,
Com cidades noventa e infindos homens
135 De língua mista: Aqueus, Cídones, Cressos
Indígenas de prol, divos Pelasgos,
Dórios cristados. Na ampla Gnosso Minos,
Cada nove anos comensal de Jove,
Pai de meu pai Deucalião brioso,
140 Os governava. Éton me chamam todos.
Meu régio irmão Idomeneu de Tróia
Foi-se à guerra, mais velho e mais valente.
Na mesma empresa, à força de procelas
Do Maleia a Creta Ulisses impelido,
145 Surgiu do Aniso num difícil porto,
Onde é das Ilitias, a espelunca.
Apenas salvo, a Idomeneu procura,
Que hóspedes seu dizia venerando;
Mas este era partido em naus rostadas,
150 Uns onze sóis talvez. Do porto a Ulisses
Escoltei mesmo, e na abundante casa
Amigo o recebi. Do povo obtidos,
Bois, pães e vinhos dei, por doze dias
Os seus provi de tudo, porque o Bóreas,
155 De um sevo deus movido, não deixava
Em pé ter-se ninguém; mas no trezeno,
Calmado o vento, o pano desferiram.”
     Assim fingia verossímeis contos,
E ela a chorar de ouví-lo definhava:
160 Qual, por Zéfiro a neve amolecida,
Liquesce do Euro ao sopro em celsos cumes,
Desata-se em arroios e incha os rios;
Tal inundava as rubicundas faces,
Anelando o marido ali sentado.
165 Compunge a Ulisses da consorte o pranto;
Mas, como ou ferro ou corno, firme e seco,
Por não trair-se, as pálpebras continha.
     De lágrimas saciada, continua:
“Quero, hóspede, sondar se na verdade
170 A Ulisses recolheste: qual seu trajo,
Qual seu porte, quais eram seus guerreiros?”
     O marido prossegue: “Árduo é, senhora,
Indo em vinte anos que saiu de Creta,
Exato ser; mas ouve o que me lembra.
175 De áureo firmal e duplo anel, seu manto
Era encorpado e mórbido e púrpureo,
De alto lavor: nas anteriores patas
Um cão tinha tremente corçozinho,
E ávido o sufocava; ele a escapar-se
180 Com palpitantes pés se debatia:
Foi pasmo a todos o recamo e a tela.
Notei-lhe ao corpo a túnica lustrosa,
Fina qual seca tona de cebola,
Alva imitante ao Sol, macia e leve,
185 Que espantava as melhores tecedeiras.
Toma sentido, ignoro se tais vestes
Houve-as de casa, ou deu-lhas em viagem
Hóspede ou matalote; pois de muitos
Era benquisto, e poucos o igualavam.
190 Eu doei-lhe ênea espada, roxo e duplo
Manto e roupa talar, e à despedida
À tabulada nau fui respeitoso.
Do arauto seu, mais velho alguma cousa,
Eu me recordo: Euríbato giboso
195 Era e trigueiro e de cabelo crespo;
Ulisses entre os sócios o estimava,
Por atinado concordar com ele.”
     A tão veros sinais, dobrou de pranto;
Mas acalmada: “Se eras um pedinte,
200 Ês, hóspede, hoje o amigo desta casa.
Trouxe eu mesma da câmara essas vestes,
Eu mesma do firmal ornei luzente.
Ah! não mais torna à pátria o caro esposo!
Fatal partida para a infame Tróia!”
205     “Bem que a dor justa seja, o herói contesta,
Real consorte, o corpo não maceres:
Nunca chorou mulher perdido um jovem
Pai amoroso de seus doces filhos
Melhor que Ulisses, comparado aos numes;
210 Porém sossega e atende, eu serei franco.
Tesprotes opulentos me contaram
Que, de riquezas o Laércio onusto,
Na praia ali sozinho aparecera;
Pois, ao vir da Trinácria, irado Jove
215 E o Sol, do armento seu pela matança,
No undoso ponto os sócios afundaram;
E ele, agarrado à quilha, enfim surgindo
Na Esquéria, aceito foi dos bons Feaces
Como um deus, e de ofertas carregado
220 Quiseram transportá-lo. Há muito Ulisses
Ileso fora aqui, se em outros climas
Não preferisse cumular tesouros;
Para o que ninguém há de astúcia tanta.
Fídon rei dos Tesprotes me jurava,
225 Com libações, que a nau já tinha prestes
Para o trazer, e num baixel mercante
Remeteu-me a Dulíquio frumentária;
Mas primeiro mostrou-me hospitais brindes,
A uma dez gerações talvez sobejos,
230 Postos no erário, enquanto ia o Laércio
Ao de Dodona falador carvalho,
A indagar dos oráculos de Jove
Se, após tão largo tempo, cá regresse
Oculta ou claramente. Ele é pois salvo,
235 Nem da casa está longe; eu vou jurar-to:
Atesto o Padre sumo e o lar de Ulisses.
Onde me asilo, aqui virás sem falta,
Mesmo este ano, esta lua ou na seguinte.”
     “Oxalá, diz Penólope! Eu faria
240 Liberal que ditoso te aclamassem.
Mas temo, hóspede meu; nem ele volta,
Nem tu conseguirás daqui passagem.
Outro Ulisses não tenho (oh! se o tivesse!)
Que afague e expeça honrados forasteiros.
245 Depois de um pedilúvio, em cama, ó servas,
De mantas bem se aqueça e belas colchas;
E, assim que a manhã brilhe em trono de ouro,
Banhado e ungido com meu filho coma.
Ai do que ouse ofendê-lo petulante!
250 Sem trabalhar descanse, inda que raivem.
De sisuda mulher me louvarias,
A estares mal vestido à nossa mesa?
Duram breve os mortais: o iníquo e fero,
Sempre de imprecações coberto em vivo,
255 Maldizem-no defunto; o afetuoso
E de alma nobre, os hóspedes lhe estendem
A glória e fama, e todos o abençoam.”
     Opõe-se o herói: “De Ulisses digna esposa,
Mantas e moles colchas aborreço,
260 Dês que em remada nau de Creta os cimos
Deixei nevosos: deito-me, como antes
Noites passava insones, e outras muitas,
À espera da alva aurora, adormecia
No duro chão. De banhos eu prescindo,
265 Nem me toque nos pés, senão prudente
Anciã no mal provada e oficiosa.”
     E ela: “Nunca de amáveis peregrinos
Tive outrem como tu: quanto proferes
Siso respira. No infeliz conservo
270 A ama discreta, que, nascido apenas,
Da mãe o recebera e amamentara:
Inda que fraca, os pés lavar-te pode.
Anda, Euricléia, este coevo banha
De teu senhor: talvez que ele tal seja
275 E dos pés e das mãos; pois no infortúnio
Rapidamente os homens envelhecem.”
     Tapa a nutriz o lagrimoso rosto
A soluçar: “Ai filho, em vão te anseio!
Pio embora, és de Jove o detestado!
280 Ninguém tantas queimou sucosas coxas,
Nem lhe deu mais solenes hecatombes,
Viver quando rogava longa vida
E teu filho educar; mas o Tonante
Sumiu-te a luz da volta! Alhures, zombam
285 Ah! dele, amigo, em pórticos soberbos,
Outras como as que foges despejadas.
Lavo-te os pés, não só porque mo ordena
De Icário a boa filha, mas de grado,
Por mera compaixão. Têm vindo muitos
290 Peregrinantes cá; nenhum, te afirmo,
A Ulisses como tu se assemelhava,
No meneio e no andar, em voz e em gesto.”
     Cauteloso a atalhou: “Sim, todos eram
Desse teu mesmo aviso.” Reluzente
295 Bacia a velha toma, onde água fresca
Vaza e a fervente em cima. Ao lar no escuro
Senta-se vôlto Ulisses, receoso
Que a cicatriz o arcano revelasse.
Ela, o senhor banhando, essa conhece
300 Marca do alvo colmilho de um javardo,
Quando ao Parnaso visitou seus tios
E avô materno Autólico, entre os homens
No pilhar e jurar manhoso e mestre;
Por Mercúrio assistido, a quem de chibos
305 E anhos queimava as agradáveis coxas.
     Veio Autólico a Ítaca ubertosa
De seu neto ao nascer; e, mal cearam,
Põe-lhe o infante aos joelhos Euricléia:
“Tu o almejavas tanto, agora inventa
310 Um nome ao filho da querida filha.”
     Disse o avô: “Genro meu, minha Anticléia,
Eu ressentido contra muitos venho
De um e outro sexo na selvosa terra;
Um nome lhe imporei, chame-se Ulisses.
315 Crescido, a casa a visitar materna,
Vindo ao Parnaso, onde as riquezas tenho,
Hei de brindá-lo e despedir contente.”
     Foi-se do prometido em busca Ulisses:
Antólico e família o abraçam ternos;
320 Carinhosa Anfitéia avó beijou-lhe
A testa e olhos gentis. Ao pátrio mando,
Para o banquete opíparo, a preceito,
Qüinquene touro os príncipes esfolam,
Picam-no, assam de espeto, e em roda servem;
325 E, o dia inteiro à grande regalados,
Liga-os a noite opaca em brando sono.
     Ulisses, no arrebol, em montearia
Trilhando as selvas do íngreme Parnaso,
A ventosas fraguras segue os tios;
330 E, no arraiar o Sol do mudo Oceano,
Precedendo a matilha farejante,
Vibra o dardo num vale o divo moço.
Em brenha oculto um javali jazia,
Brenha à diurna torreira impenetrável,
335 Ao sopro aquoso, à desatada chuva,
Pleno o covil de bastas secas folhas:
Ao latir e ao tropel, sanhuda a fera
Sai, de eriçado pêlo e a vista em brasa,
Tem-se de perto; Ulisses o primeiro
340 Com forte ávida mão levanta o pinque;
Prevenindo-lhe o golpe, o dente o cerdo
Lhe aferra no joelho, mas oblíquo,
Sem osso lhe ofender, na carne o embebe:
De ênea cúspide o herói na destra espádua
345 O atravessa; ei-lo grunhe e tomba e morre.
Expertos a ferida ao bravo pensam,
Vedam-lhe por encantos o atro sangue;
Curam-no em casa, e dele satisfeitos,
Ledo com riscos dons à pátria o mandam.
350 Laertes e Antícléia, jubilosos,
Da cicatriz a causa e tudo inquirem;
No Parnaso ele conta que o mordera,
Junto a seus tios, javali terrível.
     Palpando, a cicatriz conhece a velha,
355 Nem pode o pé suster; cai dentro a perna,
E a bacia retine e se derrama.
Dor a assalta e prazer; nos olhos água,
Presa às fauces a voz, lhe afaga o mento,
E balbucia enfim: “Tu és, meu filho,
360 És Ulisses; depois que te hei palpado,
Ora por meu senhor te reconheço.”
     E olhou para Penélope, o dileto
Marido a lhe indicar; mas, por Minerva
Distraída, a senhora o não percebe.
365 Da destra ele sustendo-lhe a garganta,
A si da esquerda a puxa: “Ama, a teus peitos
Amamentado, queres tu perder-me?
Volto ao vigésimo ano, após mil transes;
Mas, já que um nume to mostrou, silêncio,
370 A ninguém me delates. No imo o estampes:
Se me der Jove debelar soberbos,
Não pouparei culpada a nutriz mesma,
Furioso a todas que o palácio infamem.”
     “Filho, acode Euricléia, que proferes
375 Do encerro desses dentes? Inflexível
Tu bem sabes que sou, qual pedra ou ferro.
Toma sentido: a permitir-te Jove
Soberbos debelar, as que te mancham
A casa apontarei.” — De pronto Ulisses:
380 “Ama, nem é mister, nem te isso cabe;
Toca-me descobri-las e julgá-las.
Guarda o segredo, e o mais aos deuses fique.”
     Sendo o primeiro banho extravasado,
Sai pela sala a velha em busca de outro,
385 E o lava e unge; o herói senta-se ao fogo
Se aquece e cobre a cicatriz com panos.
     Ata a rainha a prática: “Inda um pouco,
Hóspede meu, que a hora se apropinqua
Do meigo sono, alívio dos cuidados,
390 Menos dos que um demônio me pródiga.
Sequer de dia em choro desabafo,
Inspecionando as servas; mas de noite,
Ao reinar o sossego, eu só no leito
Sou de pungentes mágoas salteada.
395 A Pandareida verde Filomela,
Na doce quadra amena, entre a folhagem
Flébeis queixumes sonorosa trina
Pelo dela e de Zeto amado filho
Itilo, a quem matou por erro infando:
400 Assim lamento, a revolver incerta
Se ao pé do meu conserve, respeitosa
Ao toro conjugal e à voz do povo,
Servas, paço e riqueza; ou, bem dotada,
Siga o melhor de assíduos pretendentes.
405 Enquanto o meu Telêmaco era débil,
Não quis largar a marital vivenda;
Mas, púbere hoje, me insta que lha deixe,
Contra os vorazes procos irritado.
     “Explica-me ora um sonho. Gansos vinte
410 Folgo de ver comendo os grãos no pátio;
Porém de bico adunco montês águia
Sonhei que, tendo lhes quebrado os colos,
Amontoado no terreiro os mortos,
Pelo ar divino alou-se; e eu grito e choro,
415 E emadeixadas Gregas me circundam
Na minha dor, ao tempo que, voltando,
A águia fala da grimpa em voz humana:
— Ânimo, ó filha do pujante Icário!
Não é sonho, é visão realizável:
420 Gansos os procos são; eu, antes águia,
Sou teu marido, e castigá-los venho.
Nisto, acordo, olho em torno, e como é de uso,
Vejo os gansos na praia a comer trigo.”
     Pausado o herói: “Interpretar o sonho
425 De outro modo que Ulisses me é defeso:
Iminente é dos príncipes a perda;
Nenhum tem de esquivar-se à morte escura.”
     Ela acrescenta: “Os sonhos são difíceis;
Muitos, hóspede, nunca se efetuam.
430 Têm eles dous portões, ebúrneo e córneo:
Os do ebúrneo, falazes, mentem sempre;
Nunca os do córneo falham. Que o meu, deste
Vindo, a mim e a Telêmaco aproveite,
Não me lisonjo. Agora sê-me atento.
435 O albor nefasto aponta em que dos paços
Me apartarei de Ulisses, e um certame
Vou propor. Inda em casa há meu marido
Secures doze, que erigia em hastes,
E por seus olhos doze em direitura
440 De longe a frecha rápida enfiava:
Seguirei quem mais fácil o arco estenda
E as secures traspasse, abandonando
Ah! tão saudosa e farta e bela estância,
Da qual me lembrarei té nos meus sonhos.”
445     E Ulisses: “Do Laércio augusta esposa,
Não retardes a prova. Hás de o consorte
Aqui ter, antes que eles o arco verguem
E, tesa a corda, os ferros atravessem.”
     Inda Penélope: “Hóspede, a quereres
450 Junto a mim conversar, de ouvir-te o gosto
Me estancaria o sono; mas não devem
Os mortais velar sempre, e na alma terra
Lei sobre tudo os numes impuseram.
Subo a deitar-me enfim no amargo leito
455 Que de contínuas lágrimas ensopo,
Dês que Ulisses partiu para essa Tróia
De execranda memória. Tu repousa
A teu prazer, no solho ou numa cama
Que se te aprestará”: Disse, e montando
460 Não só, com duas fâmulas, na excelsa
Maravilhosa câmara pranteia
Seu caro esposo, até que amigo sono
Lhe infunde pelas pálpebras Minerva.

NOTAS AO LIVRO XIX
94-98 — Não me atrevo a suprimir esta passagem, que vem nas diferentes edições, não obstante pensar com Rochefort, que há interpolação. Com efeito, falando o falso mendigo só da glória da rainha, parece-me inconveniente que ela de mão fale da sua própria formosura. Estes versos vêm mais a propósito no livro antecedente, como diz o mesmo Rochefort.
134 — Homero dá sempre a Creta cem cidades, menos aqui, onde só lhe dá noventa. Os Críticos dizem que o redondo número de cem é para encarecer; outros cuidam que, tendo sido cem, Idomeneu destruiu dez numa sedição.
166 — A Clavis Homerica de muitos seguida, acha ótima a comparação com o ferro ou com o corno por causa da sua natural secura; mas Rochefort, sempre fiel ao seu sistema, achando corno matéria indigna de uma epopéia, o substituiu por marfim.
309-312 — O nome Ulisses ou Odusseus vem do verbo odussó, irar-se. Querem muitos que a história da ferida, a qual vai seguindo, seja uma interpolação. Pode ser que haja acrescentamentos; porém Homero, em ambos os seus poemas, não perde ocasião de contar-nos sucessos ainda mais longos, e estes, interessantes como pertencentes ao seu herói, é provável que os não quisesse omitir.
439 — Olho chama-se o buraco por onde se introduz o cabo do machado e de outros instrumentos. Ir ao índice do livro

Odisséia de Homero Livro XVII

Calça Telêmaco, ao raiar da aurora,
Belas sandálias, forte lança adapta:
“Irmão, disse o pastor, corro açodado;
Sem que me veja minha mãe, duvido
5 Que ela suspenda o lagrimoso luto.
Nosso hóspede infeliz, eu to prescrevo,
Guia à cidade; ali seu pão mendigue,
Nem faltará quem dê: com tantas penas,
É-me impossível sustentar a todos.
10 Não se agrave, é pior; praz-me a franqueza.”
     E ele: “Nem quero me deter no campo;
Melhor, amigo, esmola-se nas ruas.
De útil ser aos currais não sou na idade,
Nem de curvar-me em tudo à voz de um chefe.
15 Anda; irei com teu servo, assim que ao fogo
Me aqueça e alteie o Sol: com tais vestidos,
Longa a via se diz, o orvalho temo.”
     Do Laércio o querido veloz parte,
Semeando na mente o mal dos procos.
20 Chegado, a uma coluna encosta a lança
Entra o portal marmóreo: é visto logo
Da ama Euricléia, que em dedáleos tronos
As peles estendia, e vem chorando;
Beijam-lhe em torno as mais a testa e os ombros.
25 Sai, de Artêmide igual e da áurea Vênus,
Da câmara Penélope, a seu filho
Consigo estreita, o rosto e pulcros olhos
Terna lhe oscula, e suspirando geme:
“Eis-te, meu doce lume! não mais ver-te
30 Cria, dês que a saber do pai notícias,
Oculto e a meu pesar, te foste a Pilos.
Conta-me o que passaste.” — “Ó mãe, responde,
Livre eu do risco, o pranto não me excites.
Lava e de limpas vestes cinge o corpo;
35 Com tuas servas monta, aos numes vota,
Vingue-me Jove, inteiras hecatombes.
À praça irei chamar um forasteiro
Que também embarcou-se, e adiante veio
Com meus divos consócios; no ausentar-me,
40 A Pireu confiei sua hospedagem.”
     Vozes tais sem efeito não voaram:
A mãe lava-se e veste, aos numes vota,
Se o vingar Jove, inteiras hecatombes.
Atrás com dous alãos e em punho a lança
45 Graça divina a lhe infundir Minerva,
No garbo o admira o povo; em roda os procos,
Traição n’alma incubando, o lisonjeiam.
Ele se afasta, e ao pé de amigos velhos
De Ulisses vai sentar-se, de Haliterses,
50 E de Antifo e Mentor, que o interrogam.
O lanceiro Pireu pela cidade
O hóspede guia ao foro, e a poucos passos
A Telêmaco diz, que os topa e encara:
“De minha casa aqueles dons, amigo,
55 Manda buscar.” — Telêmaco responde:
“O que será, Pireu, nós ignoramos.
Se matam-me em segredo e o meu partilham,
Goza esses dons, não eles; se triunfo,
Então ledo a mim ledo os restituas.”
60 Do hóspede miserando aqui se apossa,
Condu-lo ao seu magnífico aposento;
E, em poltronas e escanos posto o fato,
Banham-se em lisas tinas; das criadas
Sendo ungidos e envoltos em felpudas
65 Moles capas e túnicas macias,
Recostam-se em camilhas. Qual das servas
Água lhes verte às mãos, qual mesa limpa
Desdobra; a despenseira atenciosa
Traz com pão reservadas iguarias.
70 Senta-se a mãe junto ao pilar defronte,
Um volve tênue purpurino fuso.
Refeitos já, Penélope queixou-se:
“Ao toro, filho, subirei viúva,
Quem lágrimas ensopo desde a empresa
75 Letal, e antes que intrusos nô-lo empeçam,
De teu pai as notícias não me fias!”
E ele: “A verdade, minha mãe, te exponho.
A Pilos navegamos; recebeu-me
O maioral Gerênio, como a filho
80 De fresco vindo ao lar pós longos anos,
E houve-se amiga a sua ilustre prole.
De Ulisses nada ouviu; mas num seu carro
A Menelau me fui, com quem vi junta
Helena, a causa de fatais horrores.
83 De ir à divina Esparta o régio Atrida
Perguntou-me a razão: contei-lhe tudo.
Indignado o valente: “Hui! vis imbeles
De um guerreiro completo ao leito aspiram!
Se de mama os cervatos mete em pouso
90 De um leão cerva incauta, e ao vale ou bosque
Vai pascer, no covil os traga a fera:
É como os tragará na volta Ulisses.
Permiti que se mostre aos pretendentes,
Ó Jove, Palas, Febo, como em Lesbos,
95 Quando ao provocador Filomelides
Prostrou na luta, com prazer dos Gregos:
A boda em breve acerba lhes seria.
Dir-te-ei sem rebuço o que me imploras:
Descobriu-me o veraz marinho velho
100 Que em pranto o vira, e que o retém Calipso;
Que dessa ilha, sem baixel nem vogas,
Romper o dorso equóreo não podia. —
Assim de Menelau sendo informado,
Cá regressando, com favônias auras
105 Conduziram-me a Ítaca os Supremos.”
     Comovida Penélope, exclamou-lhe
Teoclímeno vate: “Ó veneranda
Mulher de Ulisses, muito ignora o filho;
A profecia escuta: a Jove atesto,
110 A mesa hospitaleira, a que me asila
Casa do forte herói, que já na pátria,
Ou quedo ou serpeando, ora o castigo
Traça do mal. Telêmaco os agouros
Que observei no baixel, presente os soube.”
115 A quem Penélope: “Oxalá se cumpram!
De mim terás penhores de amizade,
Que hão de, hóspede, aclamar-te venturoso.”
     Ao pórtico, entretanto, os pretendentes,
N’área onde a contumélia exercitavam,
120 A disco e a dardo se entretêm jogando.
Já do pastio as greis se recolhiam,
E admitido aos festins, Médon graceja:
“De jogos basta, ó jovens, ao banquete;
A seu tempo um jantar é bem cabido.”
125 Entram; pousando os mantos em poltronas,
Para o convívio imolam gordos porcos,
Ovelhas, cabras e armental novilha.
     Ir do campo à cidade se dispunham
Ulisses e o pastor, que diz primeiro:
130 “Por guarda, hóspede, aqui te aceitaria;
Mas, prescreve-o Telêmaco, partamos,
Se é teu desejo: de um senhor me custam
Repreensões e ameaças. A caminho;
O dia aumenta, e esfriará de tarde.”
135 Presto Ulisses: “Recordo-me e compreendo
Vamos, tu me dirige; um bordão corta
Em que me apoie na escabrosa rota.”
E o remendado alforje por seus loros
Às costas prende. O maioral porqueiro,
140 Fornecido o bordão, fiando a casa
Aos bons servos e aos cães, vai conduzindo
E sustendo seu rei, que parecia
Decrépito mendigo esfarrapado.
     Já, por áspera via, à fonte chegam
145 De alvo cristal, de que a cidade bebe,
Construída por Ítaco, primeiro,
Nérito e Politor, bosque o circula
De uns aquáticos choupos; frio o arroio
Da penha rui; tem ara as ninfas no alto,
150 Em que todo o viandante sacrifica.
De Dólio o filho os encontrou, Melanto
Que ia, com dous zagais, levar aos procos
Do cabrum gado a flor. Minaz, ao vê-los,
Ao Laércio pungiu com seus doestos:
155 “Um mau leva outro mau; deus há que sempre
Une os iguais. Aonde, ó vil porqueiro,
Guias esse glutão, das mesas peste,
Que aos portais gaste os ombros, não caldeiras,
Armas não, sim migalhas pedinchando?
160 Venha dos meus currais para vigia,
Expurgue o lixo, traga aos chibos folhas;
Beberá soro e criará panturra.
Mas, vadio chapado e mestre em vícios,
Trêmulo a escorregar por entre o povo,
165 Quer encher o bandulho insaciável.
Se ele aos paços reais, eu to asseguro,
Do grande Ulisses for, de mãos nervosas
À cabeça, voando-lhe escabelos,
Tem de a partir, moê-lo ou derreá-lo.”
170 Na perna eis louco um pontapé lhe senta:
Firme Ulisses da trilha nem se arreda;
Cogita se a cajado o estire e acabe,
Ou se o erga e no chão lhe esmague a testa;
Mas coíbe-se e atura. Eumeu rebenta,
175 Alça as palmas a orar: “De Jove ó Náiades,
Se de anhos e cabritos coxas pingues
Ulisses te queimou, torne, eu vos rogo,
E um deus nô-lo encaminhe! A ti, cabreiro,
Dissipavam-se os fumos com que arruas,
180 A zagais incumbindo o pobre gado.”
     E Melanto: “Hui! que rosna o cão matreiro?
Olha, que, em negra nau socado, ao longe
Não vão por mantimentos escambar-te.
Assim, de Apolo às frechas ou dos procos
185 Hoje aos golpes, Telêmaco sucumba,
Como é perdido para sempre Ulisses.”
     Então ambos deixou, que lentos andam,
E em casa do senhor sem mora entrado,
Põe-se em face de Eurimaco, de todos
190 O seu maior amigo; os moços carne,
Pão lhe abastece a ecônoma. Os dous chegam,
Ouvem cantar ao som da lira Fêmio;
Toma Ulisses a destra e ao pastor fala:
“O palácio real este é suponho;
195 Entre os mais facilmente se distingue,
Por seus andares, átrios, muro e ameias,
E bífores portões inexpugnáveis:
Que se está num banquete o nidor mostra;
Mostra a lira, às funções divino adorno.”
200 Tu respondeste, Eumeu: “Não lerdo, amigo,
Em tudo acertas. Consultemos: queres
Primeiro oferecer-te, eu cá ficando;
Ou ficar, entrando eu? Resolve, e presto;
Se fora alguém te vir, talvez te espanque
205 E te repulse.” — E o paciente Ulisses:
“Percebo o que ponderas. Vai, que é tempo;
Suportar sei feridas e pancadas:
Afeito à guerra e às ondas e a reveses,
Por estes passarei. Mas, não to escondo,
210 Conselheira do mal urge-me a fome,
A fome, que entre vagas furibundas,
Armadas leva contra alheias terras.”
     Aqui, deitado um cão, de orelhas tesas
A cabeça levanta, Argos tem nome:
215 Hoje langue, e o nutria o próprio Ulisses,
Antes que se embarcasse. Costumava
Lebres caçar e corças e veados;
Ora de bois e mus no esterco o deixam,
Que às portas se amontoa, enquanto os servos
220 Para estrume da lavra o não carregam.
Jazia ali de carrapatos cheio,
E meigo, assim que a seu senhor fareja,
As orelhas bulindo, agita o rabo;
Mas não pôde acercar-se. O bom Laércio
225 Uma lágrima enxuga às escondidas,
E questiona o pastor: “Um cão tão belo
Pasmo que esteja, Eumeu, nesse monturo;
Talvez, com tanto garbo, ágil não fosse,
E à mesa por formoso é que o tratavam.”
230 “É do herói, dis Eumeu, roubado à pátria!
Pasmaras sim, ligeiro e forte e guapo
Se fosse qual no tempo era de Ulisses:
O animal dele visto, ou rastejado,
Não lhe escapava em brenha ou fundo vale.
235 Morto meu amo, enfermo e débil Argos,
Negligentes mulheres nunca o pensam:
Do senhor quando a voz não soa, escravos
Furtam-se a obrigações. O Altitonante
Metade anula da virtude ao homem
240 Que a triste luz da servidão respira.”
     Argos nesse momento, após vinte anos
Seu dono a contemplar, morreu de gosto.
Eumeu vai-se direito aos feros procos;
No atravessar, Telêmaco lhe acena;
245 Ele, em circuito olhando, um banco puxa,
O do trinchante cozinheiro, e em face
Do príncipe repousa. O arauto à mesa
Traz-lhe pão do açafate e o seu conduto.
     Curvo ao bastão se arrima e surde Ulisses,
250 Como um rafado esquálido mendigo;
Dentro ao fraxíneo limiar descansa,
No umbral cuprésseo encosta-se, que destro
Esquadrara e polira um carpinteiro.
Sólido um pão Telêmaco tomando,
255 E nas mãos quanta carne lhe cabia:
“Do hóspede, Eumeu, lhe disse, o quinhão leves;
Ele esmole depois da sala em torno:
A vergonha a pedintes é nociva.”
     Do hóspede Eumeu de pronto se aproxima:
260 “Este quinhão Telêmaco te manda;
Quer pelos circunstantes que mendigues:
A vergonha a pedintes é nociva.”
Sem demora o prudente: “O rei Satúrnio
A Telêmaco adite, e lhe conceda
265 O que tem no desejo!” —Aceita Ulisses
A mãos ambas os dons, que aos pés coloca
Sobre o indecente alforje; enquanto come,
Fêmio divino à cítara cantava.
     Cessa a música, e os procos tumultuam.
270 Ao Laércio apropinqua-se Minerva,
A exortá-lo a pedir aos pretendentes,
A conhecer qual duro ou justo fosse,
Bem que a nenhum exima do castigo.
A mão pela direita ia estendendo,
275 Como vero mendigo; os mais piedosos
Dão-lhe, quem era atônitos indagam.
Melanto os interrompe: “Ó da rainha
Dignos amantes, eu não sei quem seja,
Bem que visse o porqueiro a dirigi-lo.”
280 Minaz Antino contra Eumeu dispara:
“Aqui, pastor famoso, o endereçaste?
Os desmancha-prazeres já não bastam
Que esta cidade infestam? poucos julgas
E à mesa de teu amo esse outro queres?”
285 Tu retorquiste, Eumeu: “Bom és, Antino,
E não discorres bem. Que homem convida
Vindiço algum sem préstimo e sem arte?
Um médico, um profeta, um marceneiro,
Um deleitoso músico divino,
290 Estes granjeia e atrai a imensa terra;
Mas ninguém chama um comedor inútil.
Aos servos és de Ulisses o mais duro,
Mormente a mim: que importa? eu nada temo,
Enquanto aqui Penélope sisuda
295 E o divinal Telêmaco viverem.”
     Telêmaco ajuntou: “Cala, és sobejo
Em responder. Com chascos sempre irrita,
Provocando a imitá-lo os companheiros.”
E então virou-se: “Antino, como o filho
300 Me governas, meu hóspede enxotando:
Um nume o não permita. A mal não tenho,
Amo à larga lhe dês; perde o receio
De minha mãe, dos servos desta casa.
Mas um tal pensamento nem te ocorre:
305 Comer sem repartir é teu cuidado.”
     Replicou ele: “Altíloquo Telêmaco,
Soberbo destemperas? Dessem-lhe outros
Como darei, que ao menos por três luas
Daqui se iria.” Então levanta e mostra
310 O escabelo que estava aos pés luzidos.
     De carne e pães o alforge os mais lhe enchiam.
Ei-io à soleira a desfrutar se volta
As esmolas dos Gregos; junto pára
De Antino e clama: “Tem piedade, amigo;
315 Não te creio o pior, no aspecto régio
Vê-se que és maioral: dá mais que os outros,
E hei de louvar-te pela imensa terra.
Já ditoso habitei palácio altivo,
E acolhi peregrinos e indigentes;
320 Servos em cópia tive, e a pompa toda
Com que os mortais se inculcam venturosos.
Quis Júpiter porém, para meu dano,
Que ao rio Egito eu fosse com piratas:
Mantenho a bordo a gente, e as naus em seco,
325 Despacho exploradores. Estes néscios,
A impulsos do apetite, agros talando,
Matam, mulheres e crianças preiam;
Mas, ao rumor, de madrugada acorrem
Éqüites e peões erifulgentes
330 A juncar a campina, e o Fluminante
Medo incutindo aos meus, nenhum resiste:
Cercados sendo, a bronze agudo expiram,
E é reduzido o resto a cativeiro.
Ao rei Dmétor Iáside fui dado,
335 Que transportou-me a Chipre onde imperava:
Dali vim cá, passando horríveis transes.”
     Torvo Antino: “Que peste um deus nos trouxe!
Desta mesa te aparta, ao meio tem-te:
Olha outro Egito e Chipre não te amarguem.
340 Descarado mendigo, a sala corres,
E cada qual, nadando na abundância,
Do alheio às cegas e sem dó largueia.”
     E afastando-se Ulisses: “Hui! não quadra
Com teu desplante o siso: à tua porta
345 Mesmo sal a um pedinte recusaras,
Tu que do alheio na abundância nadas,
E um pedaço de pão sem dó me negas.”
     De cólera abafado, o encara Antino:
“Já que insultos proferes, fico-te ora
350 Que não saias daqui sem vitupério.”
E despede o escabelo, que lhe apanha
Do ombro direito a ponta: firme rocha,
Do tiro zomba, tácito a cabeça
Meneia e urde vingar-se. Ao portal volve
355 Com seu provido alforje: “Amantes, clama,
Da grã rainha, est’alma vos descubro:
Mágoa e opróbio não é feridos sermos
Em defensa dos bens e bois e ovelhas;
Mas Antino feriu-me, porque a fome,
360 Causa de infindos males, me atormenta.
Se o pobre é caro aos numes e às Erínies,
Antes do seu noivado a morte o sorva!”
     E o filho de Eupiteu: “Come tranqüilo,
Ou mosca-te, importuno, antes que os servos
365 Por mão ou pé rojando-te, insolente,
Retalhem-te esse corpo.” — Os mais se indignam,
E um diz: “Por que esse mísero maltratas?
Nume será talvez: que em trajo os numes
De peregrinos as cidades vagam,
370 Mil formas revestindo e inspecionando
A dos homens justiça ou petulância.”
     Ele surdo mofafa; mas seu golpe
A Telêmaco no íntimo doía,
Que mudo, a ruminar, também meneia,
375 Sem verter uma lágrima, a cabeça.
Ouviu dentro Penélope o sucesso,
E imprecou: “Tal o fira o arqueiro Apolo!”
Mas a ecônoma Eurinoma: “Valessem
Pragas nossas, que um só do rubro eôo
380 Não reveria o coche.” E inda a senhora:
“Maus, ama, todos são, maquinam todos;
Porém Antino iguala a nera Parca.
Da penúria impelido, um miserável
Pedia esmola: os príncipes lha davam;
385 Ele o escabelo à espádua arremessou-lhe.”
     Ceava o herói; na câmara entre as servas
Desabafa Penélope, e chamado,
Ao bom pastor ordena: “Eumeu divino,
Aqui venha teu hóspede informar-me,
390 Pois ter parece errado pelo mundo,
Se viu, se há novas do sofrido Ulisses.”
     A quem Eumeu: “Deixassem-te, ó rainha,
Os Aquivos silentes escutá-lo,
Para no imo folgares! De um navio
395 Em meu teto abrigou-se, e por três noites
E três dias narrou seus infortúnios,
Se todos memorar. Quando um poeta
Canta inspirado e cessa o doce canto,
Que o repita anelamos: tal na choça
400 Me aconteceu. Inculca-se de Ulisses,
Paterno amigo, da Minóia Creta;
Que veio cá ludíbrio da fortuna;
Que dos Tesprotes soube que opulento
Já teu marido à pátria se encaminha.”
405 “Pois tudo me refira, insta a senhora.
Eles ao pórtico e na sala jogam;
Porque poupam seus víveres, a servos
Só nutrindo, e em banquetes nesta casa
Diariamente à grande nos consomem
410 Cabras e ovelhas, bois e ardente vinho.
Falta varão que ensine esses intrusos;
Ulisses nos ressurja, e incontinenti
Punirá com seu filho audácia tanta.”
     Nisto, espirra Telêmaco, estrondando
415 Em redor; a mãe solta uma risada:
“Vai pelo hóspede, Eumeu. Sentiste agora
O espirro de meu filho às vozes minhas?
É que infalível morte os cerca todos.
Se o teu mendigo, na memória o imprimas
420 Falar verdade, espere bons vestidos.”
     Apressou-se o pastor: “Hóspede padre,
Quer-te a mãe de Telêmaco sisuda
Inquirir do marido, angustiada.
Sê franco, e a roupa ganharás precisa,
425 Capa e túnica: o pão, que mate a fome,
A quem quer pedirás de porta em porta.”
     “Nua a verdade, Eumeu, responde Ulisses ,
Vou revelar à comedida Icária:
Dele sei tudo, e padecemos juntos.
430 Receio o ruim tropel dos pretendentes,
Cuja violência o férreo céu penetra:
Um com cego furor, pouco há, vibrou-me
Golpe que me doeu; nenhum dos outros,
Nem Telêmaco, obstou. Portanto, amoestes
435 A conter-se a rainha até Sol posto;
Ao depois, do marido me interrogue,
Sentada ao lar: primeiro eu supliquei-te;
Rotas as vestes, bem conheces, tenho.”
     Volta o pastor, e ao limiar Penélope:
440 “Que é dele, Eumeu? que pensa? há de alguém medo,
Ou da casa vergonha? Ai do pedinte
Mui fácil em vexar-se!” — E Eumeu: “Rainha,
Falou como o fizera o de mais tino,
Os prepotentes príncipes receia;
445 Roga-te paciência até Sol posto.
Conversardes a sós é preferível.”
Penélope acudiu: “Quem quer que seja,
Lerdo não é. Convenho tais perfídias
Nunca os maiores monstros intentaram.”
450 O divino pastor, isto acabado,
Aos demais se reúne, e a fronte inclina
Em voz baixa a Telêmaco advertindo:
“Ó dileto a cuidar me vou dos porcos,
Dos teus bens e dos meus. Tem cobro em tudo,
455 E vigia-te e guarda: o mal projetam
Ímpios, a quem primeiro o Céu castigue!”
     “Sim, pai, torna o mancebo acautelado.
Anda, merenda, a noite não te apanhe;
De manhã traze as reses do costume.
460 O mais fica a meu cargo e dos Supremos.”
     Senta-se Eumeu de novo, e bebe e come,
Do recinto saindo, a casa deixa
Plena de comensais, que, ao vir a tarde,
A dançar e a cantar se divertiam.

NOTAS AO LIVRO XVII
22-67 — Nas obras de Homero nem sempre trono é a cadeira do rei; é as mais das vezes uma poltrona mais ou menos ornada. — Fala aqui, bem como em inumeráveis lugares, de bacia e jarro para se lavarem as mãos: a minha versão é mais resumida, não só para poupar ao leitor enfadonhas repetições, mas porque não falta quem afirme que esta passagem é uma interpolação, e alguns tradutores a suprimiram; ao que não me atrevi, posto que a este respeito ache a crítica não sem fundamento.
124 — Confessa Rochefort que deipnon significa o jantar, ou a comida principal do dia, mas o traduz por festim; porque, diz ele, si au lieu de festin, il y avait diner, qui est le terme propre, le vers deviendrait du genre comique, et ne serait plus du style de l’originel, qui n’a rien de bas ni de plaisant (!) Para mim, jantar não é termo baixo, quando bem empregado; e o lugar é jocoso, pois o arauto Médon, admitido à mesa dos procos, tinha com eles bastante confiança para gracejar e dizer que um bom jantar vinha muito a propósito.
155-170 — Tudo isto é evidentemente cômico; e muito louvo a diferença de estilo nas cenas várias deste poema, cujo entrecho e andamento não é menos admirável que o da Ilíada. Esforçaram-se tradutores por nobilitar à sua maneira esta passagem, crendo fazer a Homero um serviço; pois eles têm para si que tudo numa epopéia deve ser sublime, ou elevado: o cego de Esmirna pensava de outro modo.
180 — Creio, com M. Giguet e outros, que não há neste lugar sentença, ou epifonema: a palavra nomêes decide a questão.
218-240 — Ainda hoje, na Suíça por exemplo, ajunta-se o estrume encostado às casas de campo; e quem pensa que dentro são elas imundas, muito se engana, porque ali a maior parte são limpas e asseadas. — No verso 237-238, não se trata de súditos e de reis, como julgam não poucos, sim de senhores e escravos. É sabido que estes nada fazem quando não são instigados: natural defeito a quem trabalha só para outros, sabendo que, por mais que faça, ficará sempre no viltamento; conta como um ganho o furtar-se ao trabalho.
246-257 — Os que amodernam Homero, distinguem o copeiro do cozinheiro; mas ele nunca fala de copeiro: é sempre uma mulher quem trata ou da copa ou da despensa, e o cozinheiro mesmo estava na sala e servia de trinchante. Ainda hoje, nas Índias Orientais, o cozinheiro é recebido com certas honras, e aparece no fim dos banquetes para colher os aplausos dos convidados. — Os dicionários só trazem esmolar por dar esmolas, posto que também signifique pedir esmolas; o que se vê do seguinte verso dos Mártires de Filinto: “Eles que aos pés dos grandes o ouro esmolam.”
345 — No Maranhão, na minha meninice ainda se dizia que a ninguém se deve negar água, sal e fogo; mas por fogo não entendiam o combustível, porém, somente o lume necessário para acender a candeia do vizinho, pois nesse tempo não era geral o uso das mechas. Isto nos veio de Portugal, segundo se colhe de Tolentino e de Ferreira na sua comédia do Cioso.
414 — O espirrar, entre os antigos, era um sinal próspero; ao depois, foi de mau agouro. Não quis Rochefort traduzir esta passagem, e sacrificou o dever de representar uma preocupação de que fala o autor, à suposta nobreza de estilo, que tanto o amofinava.