Calça Telêmaco, ao raiar da aurora,
Belas sandálias, forte lança adapta:
“Irmão, disse o pastor, corro açodado;
Sem que me veja minha mãe, duvido
5 Que ela suspenda o lagrimoso luto.
Nosso hóspede infeliz, eu to prescrevo,
Guia à cidade; ali seu pão mendigue,
Nem faltará quem dê: com tantas penas,
É-me impossível sustentar a todos.
10 Não se agrave, é pior; praz-me a franqueza.”
E ele: “Nem quero me deter no campo;
Melhor, amigo, esmola-se nas ruas.
De útil ser aos currais não sou na idade,
Nem de curvar-me em tudo à voz de um chefe.
15 Anda; irei com teu servo, assim que ao fogo
Me aqueça e alteie o Sol: com tais vestidos,
Longa a via se diz, o orvalho temo.”
Do Laércio o querido veloz parte,
Semeando na mente o mal dos procos.
20 Chegado, a uma coluna encosta a lança
Entra o portal marmóreo: é visto logo
Da ama Euricléia, que em dedáleos tronos
As peles estendia, e vem chorando;
Beijam-lhe em torno as mais a testa e os ombros.
25 Sai, de Artêmide igual e da áurea Vênus,
Da câmara Penélope, a seu filho
Consigo estreita, o rosto e pulcros olhos
Terna lhe oscula, e suspirando geme:
“Eis-te, meu doce lume! não mais ver-te
30 Cria, dês que a saber do pai notícias,
Oculto e a meu pesar, te foste a Pilos.
Conta-me o que passaste.” — “Ó mãe, responde,
Livre eu do risco, o pranto não me excites.
Lava e de limpas vestes cinge o corpo;
35 Com tuas servas monta, aos numes vota,
Vingue-me Jove, inteiras hecatombes.
À praça irei chamar um forasteiro
Que também embarcou-se, e adiante veio
Com meus divos consócios; no ausentar-me,
40 A Pireu confiei sua hospedagem.”
Vozes tais sem efeito não voaram:
A mãe lava-se e veste, aos numes vota,
Se o vingar Jove, inteiras hecatombes.
Atrás com dous alãos e em punho a lança
45 Graça divina a lhe infundir Minerva,
No garbo o admira o povo; em roda os procos,
Traição n’alma incubando, o lisonjeiam.
Ele se afasta, e ao pé de amigos velhos
De Ulisses vai sentar-se, de Haliterses,
50 E de Antifo e Mentor, que o interrogam.
O lanceiro Pireu pela cidade
O hóspede guia ao foro, e a poucos passos
A Telêmaco diz, que os topa e encara:
“De minha casa aqueles dons, amigo,
55 Manda buscar.” — Telêmaco responde:
“O que será, Pireu, nós ignoramos.
Se matam-me em segredo e o meu partilham,
Goza esses dons, não eles; se triunfo,
Então ledo a mim ledo os restituas.”
60 Do hóspede miserando aqui se apossa,
Condu-lo ao seu magnífico aposento;
E, em poltronas e escanos posto o fato,
Banham-se em lisas tinas; das criadas
Sendo ungidos e envoltos em felpudas
65 Moles capas e túnicas macias,
Recostam-se em camilhas. Qual das servas
Água lhes verte às mãos, qual mesa limpa
Desdobra; a despenseira atenciosa
Traz com pão reservadas iguarias.
70 Senta-se a mãe junto ao pilar defronte,
Um volve tênue purpurino fuso.
Refeitos já, Penélope queixou-se:
“Ao toro, filho, subirei viúva,
Quem lágrimas ensopo desde a empresa
75 Letal, e antes que intrusos nô-lo empeçam,
De teu pai as notícias não me fias!”
E ele: “A verdade, minha mãe, te exponho.
A Pilos navegamos; recebeu-me
O maioral Gerênio, como a filho
80 De fresco vindo ao lar pós longos anos,
E houve-se amiga a sua ilustre prole.
De Ulisses nada ouviu; mas num seu carro
A Menelau me fui, com quem vi junta
Helena, a causa de fatais horrores.
83 De ir à divina Esparta o régio Atrida
Perguntou-me a razão: contei-lhe tudo.
Indignado o valente: “Hui! vis imbeles
De um guerreiro completo ao leito aspiram!
Se de mama os cervatos mete em pouso
90 De um leão cerva incauta, e ao vale ou bosque
Vai pascer, no covil os traga a fera:
É como os tragará na volta Ulisses.
Permiti que se mostre aos pretendentes,
Ó Jove, Palas, Febo, como em Lesbos,
95 Quando ao provocador Filomelides
Prostrou na luta, com prazer dos Gregos:
A boda em breve acerba lhes seria.
Dir-te-ei sem rebuço o que me imploras:
Descobriu-me o veraz marinho velho
100 Que em pranto o vira, e que o retém Calipso;
Que dessa ilha, sem baixel nem vogas,
Romper o dorso equóreo não podia. —
Assim de Menelau sendo informado,
Cá regressando, com favônias auras
105 Conduziram-me a Ítaca os Supremos.”
Comovida Penélope, exclamou-lhe
Teoclímeno vate: “Ó veneranda
Mulher de Ulisses, muito ignora o filho;
A profecia escuta: a Jove atesto,
110 A mesa hospitaleira, a que me asila
Casa do forte herói, que já na pátria,
Ou quedo ou serpeando, ora o castigo
Traça do mal. Telêmaco os agouros
Que observei no baixel, presente os soube.”
115 A quem Penélope: “Oxalá se cumpram!
De mim terás penhores de amizade,
Que hão de, hóspede, aclamar-te venturoso.”
Ao pórtico, entretanto, os pretendentes,
N’área onde a contumélia exercitavam,
120 A disco e a dardo se entretêm jogando.
Já do pastio as greis se recolhiam,
E admitido aos festins, Médon graceja:
“De jogos basta, ó jovens, ao banquete;
A seu tempo um jantar é bem cabido.”
125 Entram; pousando os mantos em poltronas,
Para o convívio imolam gordos porcos,
Ovelhas, cabras e armental novilha.
Ir do campo à cidade se dispunham
Ulisses e o pastor, que diz primeiro:
130 “Por guarda, hóspede, aqui te aceitaria;
Mas, prescreve-o Telêmaco, partamos,
Se é teu desejo: de um senhor me custam
Repreensões e ameaças. A caminho;
O dia aumenta, e esfriará de tarde.”
135 Presto Ulisses: “Recordo-me e compreendo
Vamos, tu me dirige; um bordão corta
Em que me apoie na escabrosa rota.”
E o remendado alforje por seus loros
Às costas prende. O maioral porqueiro,
140 Fornecido o bordão, fiando a casa
Aos bons servos e aos cães, vai conduzindo
E sustendo seu rei, que parecia
Decrépito mendigo esfarrapado.
Já, por áspera via, à fonte chegam
145 De alvo cristal, de que a cidade bebe,
Construída por Ítaco, primeiro,
Nérito e Politor, bosque o circula
De uns aquáticos choupos; frio o arroio
Da penha rui; tem ara as ninfas no alto,
150 Em que todo o viandante sacrifica.
De Dólio o filho os encontrou, Melanto
Que ia, com dous zagais, levar aos procos
Do cabrum gado a flor. Minaz, ao vê-los,
Ao Laércio pungiu com seus doestos:
155 “Um mau leva outro mau; deus há que sempre
Une os iguais. Aonde, ó vil porqueiro,
Guias esse glutão, das mesas peste,
Que aos portais gaste os ombros, não caldeiras,
Armas não, sim migalhas pedinchando?
160 Venha dos meus currais para vigia,
Expurgue o lixo, traga aos chibos folhas;
Beberá soro e criará panturra.
Mas, vadio chapado e mestre em vícios,
Trêmulo a escorregar por entre o povo,
165 Quer encher o bandulho insaciável.
Se ele aos paços reais, eu to asseguro,
Do grande Ulisses for, de mãos nervosas
À cabeça, voando-lhe escabelos,
Tem de a partir, moê-lo ou derreá-lo.”
170 Na perna eis louco um pontapé lhe senta:
Firme Ulisses da trilha nem se arreda;
Cogita se a cajado o estire e acabe,
Ou se o erga e no chão lhe esmague a testa;
Mas coíbe-se e atura. Eumeu rebenta,
175 Alça as palmas a orar: “De Jove ó Náiades,
Se de anhos e cabritos coxas pingues
Ulisses te queimou, torne, eu vos rogo,
E um deus nô-lo encaminhe! A ti, cabreiro,
Dissipavam-se os fumos com que arruas,
180 A zagais incumbindo o pobre gado.”
E Melanto: “Hui! que rosna o cão matreiro?
Olha, que, em negra nau socado, ao longe
Não vão por mantimentos escambar-te.
Assim, de Apolo às frechas ou dos procos
185 Hoje aos golpes, Telêmaco sucumba,
Como é perdido para sempre Ulisses.”
Então ambos deixou, que lentos andam,
E em casa do senhor sem mora entrado,
Põe-se em face de Eurimaco, de todos
190 O seu maior amigo; os moços carne,
Pão lhe abastece a ecônoma. Os dous chegam,
Ouvem cantar ao som da lira Fêmio;
Toma Ulisses a destra e ao pastor fala:
“O palácio real este é suponho;
195 Entre os mais facilmente se distingue,
Por seus andares, átrios, muro e ameias,
E bífores portões inexpugnáveis:
Que se está num banquete o nidor mostra;
Mostra a lira, às funções divino adorno.”
200 Tu respondeste, Eumeu: “Não lerdo, amigo,
Em tudo acertas. Consultemos: queres
Primeiro oferecer-te, eu cá ficando;
Ou ficar, entrando eu? Resolve, e presto;
Se fora alguém te vir, talvez te espanque
205 E te repulse.” — E o paciente Ulisses:
“Percebo o que ponderas. Vai, que é tempo;
Suportar sei feridas e pancadas:
Afeito à guerra e às ondas e a reveses,
Por estes passarei. Mas, não to escondo,
210 Conselheira do mal urge-me a fome,
A fome, que entre vagas furibundas,
Armadas leva contra alheias terras.”
Aqui, deitado um cão, de orelhas tesas
A cabeça levanta, Argos tem nome:
215 Hoje langue, e o nutria o próprio Ulisses,
Antes que se embarcasse. Costumava
Lebres caçar e corças e veados;
Ora de bois e mus no esterco o deixam,
Que às portas se amontoa, enquanto os servos
220 Para estrume da lavra o não carregam.
Jazia ali de carrapatos cheio,
E meigo, assim que a seu senhor fareja,
As orelhas bulindo, agita o rabo;
Mas não pôde acercar-se. O bom Laércio
225 Uma lágrima enxuga às escondidas,
E questiona o pastor: “Um cão tão belo
Pasmo que esteja, Eumeu, nesse monturo;
Talvez, com tanto garbo, ágil não fosse,
E à mesa por formoso é que o tratavam.”
230 “É do herói, dis Eumeu, roubado à pátria!
Pasmaras sim, ligeiro e forte e guapo
Se fosse qual no tempo era de Ulisses:
O animal dele visto, ou rastejado,
Não lhe escapava em brenha ou fundo vale.
235 Morto meu amo, enfermo e débil Argos,
Negligentes mulheres nunca o pensam:
Do senhor quando a voz não soa, escravos
Furtam-se a obrigações. O Altitonante
Metade anula da virtude ao homem
240 Que a triste luz da servidão respira.”
Argos nesse momento, após vinte anos
Seu dono a contemplar, morreu de gosto.
Eumeu vai-se direito aos feros procos;
No atravessar, Telêmaco lhe acena;
245 Ele, em circuito olhando, um banco puxa,
O do trinchante cozinheiro, e em face
Do príncipe repousa. O arauto à mesa
Traz-lhe pão do açafate e o seu conduto.
Curvo ao bastão se arrima e surde Ulisses,
250 Como um rafado esquálido mendigo;
Dentro ao fraxíneo limiar descansa,
No umbral cuprésseo encosta-se, que destro
Esquadrara e polira um carpinteiro.
Sólido um pão Telêmaco tomando,
255 E nas mãos quanta carne lhe cabia:
“Do hóspede, Eumeu, lhe disse, o quinhão leves;
Ele esmole depois da sala em torno:
A vergonha a pedintes é nociva.”
Do hóspede Eumeu de pronto se aproxima:
260 “Este quinhão Telêmaco te manda;
Quer pelos circunstantes que mendigues:
A vergonha a pedintes é nociva.”
Sem demora o prudente: “O rei Satúrnio
A Telêmaco adite, e lhe conceda
265 O que tem no desejo!” —Aceita Ulisses
A mãos ambas os dons, que aos pés coloca
Sobre o indecente alforje; enquanto come,
Fêmio divino à cítara cantava.
Cessa a música, e os procos tumultuam.
270 Ao Laércio apropinqua-se Minerva,
A exortá-lo a pedir aos pretendentes,
A conhecer qual duro ou justo fosse,
Bem que a nenhum exima do castigo.
A mão pela direita ia estendendo,
275 Como vero mendigo; os mais piedosos
Dão-lhe, quem era atônitos indagam.
Melanto os interrompe: “Ó da rainha
Dignos amantes, eu não sei quem seja,
Bem que visse o porqueiro a dirigi-lo.”
280 Minaz Antino contra Eumeu dispara:
“Aqui, pastor famoso, o endereçaste?
Os desmancha-prazeres já não bastam
Que esta cidade infestam? poucos julgas
E à mesa de teu amo esse outro queres?”
285 Tu retorquiste, Eumeu: “Bom és, Antino,
E não discorres bem. Que homem convida
Vindiço algum sem préstimo e sem arte?
Um médico, um profeta, um marceneiro,
Um deleitoso músico divino,
290 Estes granjeia e atrai a imensa terra;
Mas ninguém chama um comedor inútil.
Aos servos és de Ulisses o mais duro,
Mormente a mim: que importa? eu nada temo,
Enquanto aqui Penélope sisuda
295 E o divinal Telêmaco viverem.”
Telêmaco ajuntou: “Cala, és sobejo
Em responder. Com chascos sempre irrita,
Provocando a imitá-lo os companheiros.”
E então virou-se: “Antino, como o filho
300 Me governas, meu hóspede enxotando:
Um nume o não permita. A mal não tenho,
Amo à larga lhe dês; perde o receio
De minha mãe, dos servos desta casa.
Mas um tal pensamento nem te ocorre:
305 Comer sem repartir é teu cuidado.”
Replicou ele: “Altíloquo Telêmaco,
Soberbo destemperas? Dessem-lhe outros
Como darei, que ao menos por três luas
Daqui se iria.” Então levanta e mostra
310 O escabelo que estava aos pés luzidos.
De carne e pães o alforge os mais lhe enchiam.
Ei-io à soleira a desfrutar se volta
As esmolas dos Gregos; junto pára
De Antino e clama: “Tem piedade, amigo;
315 Não te creio o pior, no aspecto régio
Vê-se que és maioral: dá mais que os outros,
E hei de louvar-te pela imensa terra.
Já ditoso habitei palácio altivo,
E acolhi peregrinos e indigentes;
320 Servos em cópia tive, e a pompa toda
Com que os mortais se inculcam venturosos.
Quis Júpiter porém, para meu dano,
Que ao rio Egito eu fosse com piratas:
Mantenho a bordo a gente, e as naus em seco,
325 Despacho exploradores. Estes néscios,
A impulsos do apetite, agros talando,
Matam, mulheres e crianças preiam;
Mas, ao rumor, de madrugada acorrem
Éqüites e peões erifulgentes
330 A juncar a campina, e o Fluminante
Medo incutindo aos meus, nenhum resiste:
Cercados sendo, a bronze agudo expiram,
E é reduzido o resto a cativeiro.
Ao rei Dmétor Iáside fui dado,
335 Que transportou-me a Chipre onde imperava:
Dali vim cá, passando horríveis transes.”
Torvo Antino: “Que peste um deus nos trouxe!
Desta mesa te aparta, ao meio tem-te:
Olha outro Egito e Chipre não te amarguem.
340 Descarado mendigo, a sala corres,
E cada qual, nadando na abundância,
Do alheio às cegas e sem dó largueia.”
E afastando-se Ulisses: “Hui! não quadra
Com teu desplante o siso: à tua porta
345 Mesmo sal a um pedinte recusaras,
Tu que do alheio na abundância nadas,
E um pedaço de pão sem dó me negas.”
De cólera abafado, o encara Antino:
“Já que insultos proferes, fico-te ora
350 Que não saias daqui sem vitupério.”
E despede o escabelo, que lhe apanha
Do ombro direito a ponta: firme rocha,
Do tiro zomba, tácito a cabeça
Meneia e urde vingar-se. Ao portal volve
355 Com seu provido alforje: “Amantes, clama,
Da grã rainha, est’alma vos descubro:
Mágoa e opróbio não é feridos sermos
Em defensa dos bens e bois e ovelhas;
Mas Antino feriu-me, porque a fome,
360 Causa de infindos males, me atormenta.
Se o pobre é caro aos numes e às Erínies,
Antes do seu noivado a morte o sorva!”
E o filho de Eupiteu: “Come tranqüilo,
Ou mosca-te, importuno, antes que os servos
365 Por mão ou pé rojando-te, insolente,
Retalhem-te esse corpo.” — Os mais se indignam,
E um diz: “Por que esse mísero maltratas?
Nume será talvez: que em trajo os numes
De peregrinos as cidades vagam,
370 Mil formas revestindo e inspecionando
A dos homens justiça ou petulância.”
Ele surdo mofafa; mas seu golpe
A Telêmaco no íntimo doía,
Que mudo, a ruminar, também meneia,
375 Sem verter uma lágrima, a cabeça.
Ouviu dentro Penélope o sucesso,
E imprecou: “Tal o fira o arqueiro Apolo!”
Mas a ecônoma Eurinoma: “Valessem
Pragas nossas, que um só do rubro eôo
380 Não reveria o coche.” E inda a senhora:
“Maus, ama, todos são, maquinam todos;
Porém Antino iguala a nera Parca.
Da penúria impelido, um miserável
Pedia esmola: os príncipes lha davam;
385 Ele o escabelo à espádua arremessou-lhe.”
Ceava o herói; na câmara entre as servas
Desabafa Penélope, e chamado,
Ao bom pastor ordena: “Eumeu divino,
Aqui venha teu hóspede informar-me,
390 Pois ter parece errado pelo mundo,
Se viu, se há novas do sofrido Ulisses.”
A quem Eumeu: “Deixassem-te, ó rainha,
Os Aquivos silentes escutá-lo,
Para no imo folgares! De um navio
395 Em meu teto abrigou-se, e por três noites
E três dias narrou seus infortúnios,
Se todos memorar. Quando um poeta
Canta inspirado e cessa o doce canto,
Que o repita anelamos: tal na choça
400 Me aconteceu. Inculca-se de Ulisses,
Paterno amigo, da Minóia Creta;
Que veio cá ludíbrio da fortuna;
Que dos Tesprotes soube que opulento
Já teu marido à pátria se encaminha.”
405 “Pois tudo me refira, insta a senhora.
Eles ao pórtico e na sala jogam;
Porque poupam seus víveres, a servos
Só nutrindo, e em banquetes nesta casa
Diariamente à grande nos consomem
410 Cabras e ovelhas, bois e ardente vinho.
Falta varão que ensine esses intrusos;
Ulisses nos ressurja, e incontinenti
Punirá com seu filho audácia tanta.”
Nisto, espirra Telêmaco, estrondando
415 Em redor; a mãe solta uma risada:
“Vai pelo hóspede, Eumeu. Sentiste agora
O espirro de meu filho às vozes minhas?
É que infalível morte os cerca todos.
Se o teu mendigo, na memória o imprimas
420 Falar verdade, espere bons vestidos.”
Apressou-se o pastor: “Hóspede padre,
Quer-te a mãe de Telêmaco sisuda
Inquirir do marido, angustiada.
Sê franco, e a roupa ganharás precisa,
425 Capa e túnica: o pão, que mate a fome,
A quem quer pedirás de porta em porta.”
“Nua a verdade, Eumeu, responde Ulisses ,
Vou revelar à comedida Icária:
Dele sei tudo, e padecemos juntos.
430 Receio o ruim tropel dos pretendentes,
Cuja violência o férreo céu penetra:
Um com cego furor, pouco há, vibrou-me
Golpe que me doeu; nenhum dos outros,
Nem Telêmaco, obstou. Portanto, amoestes
435 A conter-se a rainha até Sol posto;
Ao depois, do marido me interrogue,
Sentada ao lar: primeiro eu supliquei-te;
Rotas as vestes, bem conheces, tenho.”
Volta o pastor, e ao limiar Penélope:
440 “Que é dele, Eumeu? que pensa? há de alguém medo,
Ou da casa vergonha? Ai do pedinte
Mui fácil em vexar-se!” — E Eumeu: “Rainha,
Falou como o fizera o de mais tino,
Os prepotentes príncipes receia;
445 Roga-te paciência até Sol posto.
Conversardes a sós é preferível.”
Penélope acudiu: “Quem quer que seja,
Lerdo não é. Convenho tais perfídias
Nunca os maiores monstros intentaram.”
450 O divino pastor, isto acabado,
Aos demais se reúne, e a fronte inclina
Em voz baixa a Telêmaco advertindo:
“Ó dileto a cuidar me vou dos porcos,
Dos teus bens e dos meus. Tem cobro em tudo,
455 E vigia-te e guarda: o mal projetam
Ímpios, a quem primeiro o Céu castigue!”
“Sim, pai, torna o mancebo acautelado.
Anda, merenda, a noite não te apanhe;
De manhã traze as reses do costume.
460 O mais fica a meu cargo e dos Supremos.”
Senta-se Eumeu de novo, e bebe e come,
Do recinto saindo, a casa deixa
Plena de comensais, que, ao vir a tarde,
A dançar e a cantar se divertiam.
NOTAS AO LIVRO XVII
22-67 — Nas obras de Homero nem sempre trono é a cadeira do rei; é as mais das vezes uma poltrona mais ou menos ornada. — Fala aqui, bem como em inumeráveis lugares, de bacia e jarro para se lavarem as mãos: a minha versão é mais resumida, não só para poupar ao leitor enfadonhas repetições, mas porque não falta quem afirme que esta passagem é uma interpolação, e alguns tradutores a suprimiram; ao que não me atrevi, posto que a este respeito ache a crítica não sem fundamento.
124 — Confessa Rochefort que deipnon significa o jantar, ou a comida principal do dia, mas o traduz por festim; porque, diz ele, si au lieu de festin, il y avait diner, qui est le terme propre, le vers deviendrait du genre comique, et ne serait plus du style de l’originel, qui n’a rien de bas ni de plaisant (!) Para mim, jantar não é termo baixo, quando bem empregado; e o lugar é jocoso, pois o arauto Médon, admitido à mesa dos procos, tinha com eles bastante confiança para gracejar e dizer que um bom jantar vinha muito a propósito.
155-170 — Tudo isto é evidentemente cômico; e muito louvo a diferença de estilo nas cenas várias deste poema, cujo entrecho e andamento não é menos admirável que o da Ilíada. Esforçaram-se tradutores por nobilitar à sua maneira esta passagem, crendo fazer a Homero um serviço; pois eles têm para si que tudo numa epopéia deve ser sublime, ou elevado: o cego de Esmirna pensava de outro modo.
180 — Creio, com M. Giguet e outros, que não há neste lugar sentença, ou epifonema: a palavra nomêes decide a questão.
218-240 — Ainda hoje, na Suíça por exemplo, ajunta-se o estrume encostado às casas de campo; e quem pensa que dentro são elas imundas, muito se engana, porque ali a maior parte são limpas e asseadas. — No verso 237-238, não se trata de súditos e de reis, como julgam não poucos, sim de senhores e escravos. É sabido que estes nada fazem quando não são instigados: natural defeito a quem trabalha só para outros, sabendo que, por mais que faça, ficará sempre no viltamento; conta como um ganho o furtar-se ao trabalho.
246-257 — Os que amodernam Homero, distinguem o copeiro do cozinheiro; mas ele nunca fala de copeiro: é sempre uma mulher quem trata ou da copa ou da despensa, e o cozinheiro mesmo estava na sala e servia de trinchante. Ainda hoje, nas Índias Orientais, o cozinheiro é recebido com certas honras, e aparece no fim dos banquetes para colher os aplausos dos convidados. — Os dicionários só trazem esmolar por dar esmolas, posto que também signifique pedir esmolas; o que se vê do seguinte verso dos Mártires de Filinto: “Eles que aos pés dos grandes o ouro esmolam.”
345 — No Maranhão, na minha meninice ainda se dizia que a ninguém se deve negar água, sal e fogo; mas por fogo não entendiam o combustível, porém, somente o lume necessário para acender a candeia do vizinho, pois nesse tempo não era geral o uso das mechas. Isto nos veio de Portugal, segundo se colhe de Tolentino e de Ferreira na sua comédia do Cioso.
414 — O espirrar, entre os antigos, era um sinal próspero; ao depois, foi de mau agouro. Não quis Rochefort traduzir esta passagem, e sacrificou o dever de representar uma preocupação de que fala o autor, à suposta nobreza de estilo, que tanto o amofinava.
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