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Odisséia de Homero - Livro VI

Enquanto lasso e grave Ulisses dorme,
Corre Minerva ao povo dos Feaces,
Que antes moravam na espaçosa Hipéria.
De arrogantes Ciclopes infestada.
5 À Esquéria os trouxe o divo Nausítoo,
De homens cultos remota; ali fez muros,
Casas e templos, dividiu seus campos.
Desce a Dite, e por numes instruído
O substitui Alcino: aos paços deste
10 Palas de Ulisses foi dispor a entrada.
     Na câmara dedálea de Nausica,
Na beleza e no porte sobre-humana,
Régia virgem, como aura introduziu-se,
Bem que, êmulas das Graças, duas servas
15 Lá de uma e outra banda repousassem
Às reluzentes e cerradas portas.
A eqüeva amiga da princesa, filha
Do marítimo Dimas afamado,
Ela imitando, à cabeceira clama:
20 “Lenta a mãe tua te pariu, Nausica?
Descuidas-te da roupa, e as núpcias instam;
Para ti mesma e a comitiva toda,
Hás mister os vestidos mais formosos:
Ganhas assim renome, dás contento
25 Aos genitores teus. N’alva, a caminho,
O mais depressa lavaremos juntas;
Pois longo tempo não serás donzela:
Pretendem-te os melhores dos Feaces,
Da mesma estirpe tua. Ao rei mus pede,
30 Carroça que amanhã transporte os cintos,
Peplos e mantos: ir a pé mau fora;
Distam muito os lavacros da cidade.”
     Advertida a princesa, a déia ascende
À beata mansão, que deleitosa
35 Nunca ventos açoutam, regam chuvas,
Ou neve asperge; onde ar sereno e limpo,
Onde vivo esplendor eterno brilha.
     A Aurora apoltronada esperta a jovem,
Que, atravessando as casas, vai comota
40 Ao pai contar o sonho e à mãe augusta:
Ela, ao fogão, fiava lã purpúrea
Entre as servas; tardio, ele à soleira,
Para o grande conselho ia saindo.
A filha o atalha: “Genitor amado,
45 Mandas-me aparelhar carroça leve,
Onde carregue à fonte as pulcras vestes
Que cujas guardo? Em conferências cumpre
Estares com asseio ante os senhores;
De cinco filhos teus, são dous casados,
50 Mas lépidos os três querem solteiros
De lavado ir à dança: eu tudo avio”.
     Cala as núpcias ao pai, que assaz percebe:
“Nada, filha, te nego; ágil carroça
Terás de taipas cinta”. Ao mando, os pajens
55 Tiram-na fora e os mus, que ao jugo prendem.
     Ela do plaustro ao leito a roupa desce;
Vários manjares traz a mãe num cesto,
Com sobremessa e um odre bom de vinho;
À filha, já montada, uma áurea entrega
60 Redoma de óleo, que as perfume. A jovem
Brida flagela os mus, que estrepitosos
A carga e o flóreo bando arrebatavam.
     Junto ao rio, onde há poças de água pura
Que a sordidez expurga, os brutos soltam
65 Nas margens a pascer melosa grama
Tiram a roupa, acalcam-na à porfia
Dentro das covas, torcem-na, enxaguada
A estendem pela praia, onde os seixinhos
Tinha alvejado o mar. Enquanto a enxugam
70 Ao Sol fulgente, banham-se elas mesmas,
E de óleo ungidas à ribeira jantam.
Fartas já de comer, as toucas despem
E à pela jogam; doce cantilena
Entoa a bracicândida Nausica.
75 Se, no excelso Taígete cu no Erímanto,
Javalis a caçar e gamos leves,
Das de Jove escoltada agrestes ninfas,
Se diverte a frecheira irmã de Febo;
Com prazer de Latona, alta cabeça,
80 Entre as belas belíssima se estrema:
Tal as outras supera a intacta virgem.
     Mas, jungida a parelha para a volta,
A roupa elas dobravam, quando Palas
Traça a maneira por que veja Ulisses
85 A que aos Feaces conduzi-lo deve.
Eis a princesa a uma atira a pela,
Que errada cai no pego; as moças gritam,
E Ulisses, despertando, em si discursa:
“Ai de mim! que mortais aqui se alvergam?
90 Bárbaros são, injustos e ferozes,
Ou tementes aos deuses e hospedeiros?
Senti femínea voz, talvez de ninfas
Que habitem nestes coles, nestas fontes,
Nestes ervosos lagos. Inquiramos
95 Se homens são porventura e conversáveis”.
     Com mãos inchadas quebra um denso ramo
Que os genitais encubra, e da espessura
Sai qual montês leão, que, em si fiado,
Arrosta o vento e a chuva, e de olho em brasa
100 Cães e ovelhas comete e agrestes corças;
Mesmo a curral seguro o ventre o impele:
Tal, em nudez forçada, à companhia
Pulcrícoma o varão se apresentava
Horrível da salsugem, dele fogem
105 Por entre as ribas: só de Alcino a jovem,
Por Minerva animada, o encara afouta.
     Reflete o sábio se lhe abrace as plantas,
Ou rogue-lhe de longe que um vestido
Preste e a cidade ensine: e, receoso
110 De lhe ofender o pejo, este segundo
Meio prefere e brandamente implora:
“Deusa ou mulher, suplico-te, ó rainha.
Se és íncola do Olimpo, representas
Em talhe e porte esbeíto a grã Diana,
115 Prole de Jove sumo; se és terrestre,
Oh! três vezes teus pais e irmãos felizes,
Que alegras nas coréias graciosas!
De todos felicíssimo o que à cheia
Casa te guie bem dotada e rica!
120 Nunca de sexo algum meus olhos viram
Tão formoso mortal: admiro e pasmo.
Nesta rota sinistra, eu fui-me a Delos
Com boa gente, e ao pé crescia da ara
Apolínea um renovo de plameria,
125 Cujo aspecto assombrou-me; eu não pensava
Que maravilha tal brotasse a terra:
Assim, mulher, me espantas, nem me atrevo
Nesta grave miséria, os pés tocar-te.
Pós dias vinte que da ilha Ogígia
130 Flutuava em borrascas, enfim ontem
Um deus cá me aportou, para outros males;
Inda os Céus não cansaram de afligir-me.
De mim tem dó, rainha, a ti primeira
Na desgraça recorro; uma alma viva
135 Eu não conheço: aponta-me a cidade;
Se o tens acaso, um roto ou velho pano
Dá que me esconda as carnes. Justos numes
Te concedam, senhora, o que desejas,
Marido e paz doméstica e família:
140 Do acordo conjugal nasce a ventura;
Tudo medra, os consortes são ditosos;
Causa prazer aos bons e aos maus inveja”.
     E a cândida Nausica: “Hóspede, ignóbil
Nem insano te julgo. A seu falante
145 Aquinhoa os mortais o Olímpio Jove:
Se te coube o infortúnio, a fronte acurva.
Já que abordaste aqui, terás vestidos
E o que pede um mesquinho suplicante.
Vou guiar-te à cidade; habito nela
150 E em seu distrito o povo dos Feaces.
Filha me honro de Alcino generoso,
Que tem do império o cetro soberano”.
Vira-se à comitiva: “Olá! criadas,
Fugis deste varão, como inimigo?
155 Ninguém nos hostiliza; aqui num cabo
Do undoso campo, sem comércio externo,
São dos deuses validos os Feaces.
Um triste peregrino, o envia o Padre,
Aos pobres compassivo; a contentá-lo
160 Tênue dom basta. Ao nosso, ó companheiras,
Dai bebida e comer; do rio em parte
Ide-o banhar dos ventos abrigada.”
     Param; mútuo exortando-se, o conduzem
Ao prescrito lugar, e apõem-lhe e entregam
165 Manto, as mais vestes, a redoma de ouro,
E a meter-se o convidam na corrente.
Mas o divino Ulisses: “Apartai-vos,
Quero mesmo limpar-me da salsugem,
E o que há muito não faço, ungir-me de óleo:
170 Temo lavar-me todo nu, de moças
Ofendendo o pudor.” - Elas se afastam
E o contam à contam à senhora. Imundas costas,
Cabeça e largos ombros, ele esfrega;
Veste o que a virgem dera, enxuto e ungido.
175 Maior o torna e mais robusto Palas,
Solta-lhe a coma ondada e semelhante
À jacintina flor; qual fabro exímio,
Que ela mesma adestrara e o coxo mestre,
Graça lhe imprime na pessoa a déia.
180 Marcha, e à praia sentado, em gentileza
Resplandecia; às aneladas servas
Diz absorta a senhora: “Albinitentes
Companheiras, ouvi-me: sem mistério
Não veio o herói; vulgar primeiro o cria;
185 E aos numes o comparo. Oh! se eu tivesse
Tal marido, e na Esquéria nos ficasse!
Vós do que houver servi-o.” Assim fizeram.
Por tão longo jejum, sôfrego Ulisses
Come e bebe; e Nausica bracinívea
190 Na carroça depõe dobrada a roupa,
Os ungüíssonos ata, monta, amoesta
O alto varão: “Sus, hóspedes, à cidade;
Ao paterno palácio te encaminho,
Onde os magnatas acharás Feaces.
195 Razoável te suponho, isto executes:
Por agros e plantios, eu diante,
Com minhas servas anda após o carro;
Mas retém-te às muralhas da cidade,
Que dous portos possui de estreita boca
200 Lá vara cada um na sua estância
O açoutado baixel. Medeia aos portos
Largo foro, com lajes das pedreiras
Dos contornos calçado, e nele o templo
Alteia de Netuno. Ali conservam
205 Mastros, cabos, maçame, e remos talham;
Que os Feaces não curam de arco e aljava,
Sim de antenas e velas, que bizarros
Pelo espumoso pélago os naveguem.
O pé digo reprimas; que, insolente
210 Como é do bairro a plebe, a desluzir-me
Algum pode morder-me: — “Olhai Nausica;
Segue-a gentil estranho apessoado;
Será marido? Perto nenhum mora;
De um navio errabundo o ajuntaria?
215 Ou deus será do Olimpo que, a seus rogos
Baixe e lhe assista sempre? É bom que fora
Fosse-o tomar; que os muitos que a desejam
Da Feácia nobreza, ela os despreza.”
Desta afronta e censura hei de correr-me;
220 E em caso igual censurarei aquela
Que, a despeito dos pais, antes das núpcias,
Com homens se mostrasse. Hóspede, à risca
Preenche o meu conselho, a fim que obtenhas
Do rei gente e socorro e pronta volta.
225 No caminho, alameda encontraremos,
Luco Paládio, e fonte e em roda prados,
Onde meu pai tem quinta e flóreos hortos,
E dali à cidade em grito alcança:
Neste lugar espera, e quando penses
230 Que é tempo já de estarmos recolhidas,
Entra no muro, indaga onde o palácio
Do magnânimo Alcino; outra morada
Os Feaces não têm que a rivalize,
E um menino qualquer pode ensinar-ta.
235 Do átrio penetres velozmente à sala,
E busques minha mãe: sentada ao lume
Do aceso lar, é maravilha vê-la
E detrás dela escravas; encostada
Ao pilar, volve um fuso purpurino.
240 Próximo está meu pai qual deus, no sólio
Almo vinho gostando: o rei pretiras,
E os joelhos abraces da consorte,
Para que da partida a luz te raie;
Por distante que habites, se a comoves,
245 Ver conta a celsa casa e a doce pátria.”
     Ei-la verbera os mus, que o rio deixam
À desfilada, airoso o passo alternam;
Mas de jeito regia o açoute e as rédeas,
Para os a pé de vista a não perderem.
250 Cai o sol; ao delubro de Minerva
Demorando-se Ulisses, a depreca:
“Do aluno de Amaltéia, ouve-me, ó filha!
Se tu não me atendeste quando jogo
Fui do ínclito Netuno, atende-me ora,
255 Dá que os Feaces mísero me amparem.”
     Palas o escuta, sem que lhe apareça,
Com temor de seu tio, que iracundo
Até Ítaca mesma há de vexá-lo.

NOTAS AO LIVRO VI
42-66 - Alguns vertem que Nausica achou o pai ao limiar, a partir, com os outros chefes para o conselho, onde os Feaces o esperavam: eu com Pindemonte, verto que ela o achou ao limiar a partir para o conselho, onde o esperavam; porque, sendo madrugada, é inverossímil que os magnatas fossem tão cedo incomodar a Alcino. - Note-se que este costume de bater com os pés a roupa dentro d’água, dura ainda na mourama, v. g. em Túnis: muitos costumes dos tempos homéricos, uns conservam-se no Oriente, e não poucos no Ocidente.
96-102 - Tomam pacheiè por forte: creio que o adjetivo grego, significando propriamente grosso ou gordo, aqui não quer dizer forte mas inchado; porque Ulisses deixou a pele das mãos ao rochedo a que esteve agarrado, e elas deviam estar inflamadas ou inchadas, sentindo que mais se aproxima ao próprio: certo é que isto mesmo demonstra a sua fortaleza, todavia por uma indução e não diretamente. M. Giguet, com escrúpulo talvez de servir-se do correspondente ao nosso termo genitais, verte que Ulisses cobriu com o ramo a sua nudez, e logo adiante que, malgré sa nudité, veio ter com as moças: ora ou ele não cobriu a sua nudez, ou não veio ter com as moças nu. Quem seguir o texto, solve esta contradição: Ulisses com o ramo cobriu os genitais, e apesar da nudez dos outros membros, apareceu forçado a Nausica e às servas. Não tenho escrúpulo de usar do termo próprio, que não encerra obscenidade alguma: obscenas são as palavras que, ao declararem a cousa, indicam em quem as profere uma torpe e maligna intenção. O nosso épico, na estância XVIII do canto sexto, acerca de Tritão nos diz: “O corpo nu e os membros genitais”.
128 - No hemistíquio do verso 169, a que este meu corresponde, alguns põem um ponto final, e tomam o segundo hemistíquio, principiando pela palavra chalepon, como cousa inteiramente separada: cuido, ao contrário, que um se refere ao outro, e que a palavra penthos não comemora todas as misérias de Ulisses, mas unicamente a de ver-se obrigado a falar a uma senhora no vergonhoso estado em que se achava. Isto é mais da situação, e mostra o grande respeito do herói para com mulheres jovens e pudicas.
236-239 - Estes versos, com leve mudança, os traz Filinto em uma nota ao livro I dos Mártires. Sempre que tamanho mestre houver traduzido uma passagem de Homero, de seus versos me aproveitarei, e das suas frases principalmente.

Odisséia de Homero - Livro II

Veste-se, à luz da dedirrósea aurora,
Sai da alcova o amadíssimo Ulisseida
Ao tiracolo a espada e aos pés sandálias,
Fulgente como um deus, expede arautos
5 A apregoar e reunir os Gregos.
De hasta aênea, ao congresso alvoroçado,
Não sem dous cães alvíssimos, se agrega;
Minerva graça lhe infundiu celeste.
Seu porte e ar admira o povo inteiro;
10 Cedem-lhe os velhos o paterno assento.
Egípcio ergueu-se, de anos curvo e sábio,
A lembrar-se de Antifo, que audaz indo
Com Ulisses a Tróia, do Ciclope
Foi na seva espelunca última ceia;
15 O herói carpia o filho, e bem que houvesse
Três outros, um dos procos Eurínomo,
Dous nas lavouras ocupados sempre,
Concionou lagrimando: “Nunca, atentos
Cidadãos, em congresso nos sentamos,
20 Desde que Ulisses embarcou divino:
Que provecto ou mancebo o ajunta agora?
Que urge? anúncio há exército inimigo?
Ou tratar vem de público interesse?
Nas justas intenções o assiste Jove”.
25 O Ulisseida não mais fica em seu posto;
Ledo, orar cobiçando, em pé recebe
Do arauto Pisenor sisudo o cetro,
Por Egípcio começa: “Eis-me, tens perto
Quem, ancião, convoca esta assembléia;
30 Nem há novas de exército inimigo,
Nem trato hoje de público interesse,
Mas do meu próprio. Hei duas graves penas:
Falta-me o pai, que o era do seu povo;
O pior é que amantes importunos,
35 Filhos dos principais aqui presentes,
Minha mãe vexam, minha casa estragam.
A Icário temem ir, que a filha dote
E escolha o genro que lhe for mais grato;
Em diários festins, meus bois tragando,
40 Cabras e ovelhas, minha adega exaurem.
Nem outro Ulisses que remova o dano,
Nem forças tenho e militar perícia;
Mal seria tentá-lo: oh! se eu pudesse!
Da ruína e infâmia, cidadãos, salvai-me,
45 Os vizinhos temei, temei que os deuses
Em vós a indigna tolerância punam:
E vos rogo por Júpiter, por Têmis,
Que demite ou congrega as assembléias,
Socorro, amigos; só me reste a mágoa
50 Do extinto pai. Se dele ofensas tendes,
E contra mim os instigais, mais vale
Vós os móveis e imóveis consumirdes:
Assim, tinha o recurso de que a tempo
Em Ítaca meus bens vos reclamasse,
55 Compensações recíprocas fazendo.
Ora, insanável dor me infligis n’alma”.
De cólera chorando, o cetro arroja;
Comisera-se o povo. À queixa amarga,
Em roda emudeceram, mas Antino,
60 Rompe o silêncio: “Altíloquo e impotente
Da ignomínia o ferrete em nós imprimes?
A ninguém mais, Telêmaco, a mãe cara
Somente arguas, que de astúcias mestra,
Quatro anos quase, nos contrista, ilusos
65 De promessas, recados e esperanças,
E al tem no coração. Com novo engano,
Nos disse, ao predispor fina ampla teia:
— Amantes meus depois de morto Ulisses,
Vós não me insteis, o meu lavor perdendo,
70 Sem que do herói Laertes a mortalha
Toda seja tecida, para quando
No longo sono o sopitar o fado:
Nenhuma Argiva exprobre-me um funéreo
Manto rico não ter quem teve tanto. —
75 Esta desculpa ingênuos aceitamos.
Ela, um triênio, desmanchava à noite
À luz da lâmpada o lavor diurno;
Ao depois, avisou-nos uma escrava,
E a destecer a teia a surpreendemos:
80 Então viu-se obrigada a concluí-la.
Saibas nossa resposta, e a saibam todos:
Penélope de Icário ao paço envies,
Marido a sabor dela o pai lhe escolha.
De indústria, engenho e ardis, a ornou. Minerva,
85 Quais não dera às mais célebres Aquivas,
Tiro e Alcmena e Micena emadeixadas;
Mas dos dotes abusa em que as supera,
A príncipes da Grécia atormentando.
A insistir na repulsa, na vontade
90 Que os imortais no peito lhe puseram,
Terá glória perene, embora sintas
Esgotados rebanhos e tesouros;
Pois, o assevero, a empresa não largamos,
Antes que ela um consorte a gosto eleja”.
95 Logo Telêmaco: “A expulsar, Antino,
Quem me pariu e amamentou me instigas?
Viva Ulisses ou não, se tal cometo,
A meu avô dar cumpre estreita conta;
Aflito pelo pai, depois que as Fúrias
100 Penélope, este lar deixando, impreque,
Me incitará mau gênio humanos ódios:
Não, não proferirei tamanho crime.
Mutuando os festins, comei do vosso,
A casa despejai-me. A preferirdes
105 Gastar os bens de um só, recorro aos deuses:
Júpiter o castigo vos fulmine,
E nestes paços expireis inultos”.
Aqui despede o próvido Satúrnio
110 Do alto águias duas, que, de pandas asas
Pelas auras a par, ante o congresso
Mirando em giro e sacudindo as penas
Sobre as cabeças, prometiam mortes;
Lacerando-se à unha a testa e o colo,
Da cidade por cima à destra voam.
115 No anúncio a refletir, pasmaram todos.
Ergueu-se o herói Mastórida Haliterse,
Agoureiro o melhor entre os coevos,
E orou de grado: “Cidadãos, ouvi-me,
Risco iminente pressagio aos procos:
120 Não tarda Ulisses, que vizinho traça
Deles o exício e de outros Itacenses.
De os refrear o modo averigüemos,
Ou se abstenham por si, que é mais cordato.
Inexperto não sou; predisse aos Gregos,
125 No embarcar para Tróia o astuto Ulisses,
Que sem nenhum dos seus, após vinte anos
E transes mil, ignoto aqui viria:
Quanto prenunciei vai ser cumprido”.
Eurímaco retorque: “Eia, a teus filhos
130 Corre a vaticinar, para que um dia
Sério desastre, ó velho, não padeçam:
Profeta eu sou maior; nem quantas aves
Ao sol adejam, pronosticam males.
Como Ulisses, ao longe oh! pereceras,
135 Áugur falaz; com olho só no lucro,
O ódio nunca em Telêmaco excitavas.
Mas, se de teu prestígio e idade abusas
Irritando o mancebo, eu te asseguro,
Funesto lhe serás, sem nada obteres,
140 E a ti multa imporemos, que te grave
E ao vivo doa. Mande, eu lho aconselho,
A Icário a mãe: as núpcias lhe aprontemos,
E um dote para a filha haja condigno.
Cesse a porfia assim; pois ninguém medo,
145 Nem o loquaz Telêmaco, nos mete.
Predições desprezamos, cujo efeito
Único é detestarmos o adivinho.
A desfalcar seus bens continuaremos,
Enquanto ela indecisa entretiver-nos:
150 Todos rivais, pela virtude sua,
Longos dias passamos na esperança,
Outras nobres senhoras enjeitando”.
Dissimula Telêmaco: “Não quero
Nisto, Eurímaco e ilustres pretendentes,
155 Falar mais: tudo os Céus e os Gregos sabem.
Mas dai-me ágil baixel de vinte remos,
No qual, o instável pélago sulcando,
Eu vá, na Esparta e na arenosa Pilos,
Do suspirado pai colher notícias:
160 Talvez alguém me informe, ou soe o brado
Com que Jove aos mortais gradua a fama.
Vivo Ulisses, paciente um ano espero;
Morto, aqui volto, e um monumento exalço
E consagro-lhe exéquias dignas dele;
165 De mim novo marido a mãe receba”.
Mal toma o seu lugar, Mentor ergueu-se,
Sócio do grande Ulisses que à partida
Confiou-lhe interesses da família,
Que ao velho obedecia; este prudente
170 Orou de grado: “Cidadãos, ouvi-me,
Cetrígero nenhum benigno seja,
Nem precatado e bom, sim duro e injusto,
Já que o povo deslembra o divo Ulisses,
Rei homem, rei e pai, senhor e amigo.
175 Aos cegos procos a violência passo,
Porque, a seu risco devorando a casa,
Pensam que Ulisses nunca mais ressurja;
Ardo só contra o povo, que estais mudos,
Que, tantos sendo, ao menos com palavras,
180 Não reprimis o orgulho de tão poucos”.
Bradou Leócrito Evenório: “Bronco
E insolente Mentor, nós desistirmos!
Disputar-se o festim será difícil
Dos príncipes à flor: se o próprio Ulisses
185 Maquinasse expelir de casa os procos,
Não folgava de o ver a amante esposa;
Crua morte os convivas lhe dariam.
Fútil arenga. Ao trabalho, ó povo;
Naliterse e Mentor, muito há paternos
190 E amigos seus, dispunham-lhe a viagem.
Falho o projeto, longamente, eu creio,
Tem de inquirir em Ítaca estrangeiros”.
Ei-lo, solve o congresso; os mais às próprias,
De Penélope à casa os procos foram.
195 Telêmaco da praia ao longo parte;
No alvo mar banha as mãos, suplica a Palas:
“Socorro, ó nume que a meu lar vieste,
E ontem mandaste que, talhando as vagas,
De Ulisses fosse em busca; obstam-me os Gregos,
200 E sobretudo os feros pretendentes”.
Palas à prece acorre, em voz e em corpo
A Mentor semelhando: “Siso e esforço,
Ó mancebo, terás, se em ti se instila
O ânimo de teu pai em dito e em feitos,
205 Nem baldarás teus passos: a não seres
De Penélope sangue e do Laércio,
Que lograsses o intento eu duvidara.
Muitos filhos do tronco degeneram,
Raros o imitam, raros se avantajam;
210 Pois de Ulisses herdaste o gênio e o brio,
O teu projeto conseguir esperes.
Desses loucos e injustos não te importes;
Sem previdência, ignoram que atra morte
Para um só dia lhes comina o fado.
215 Não mais o teu propósito retardes:
Mesmo agora aparece aos pretendentes;
Vitualhas apresta e acondiciona,
Em ânforas o vinho e em densos odres
Mete a farinha, dos barões medula.
220 Paterno sócio, te serei companha,
Em baixel que te esquipe: ondicercada
Ítaca abunda em naus de toda a sorte;
A melhor se aparelhe e ao mar se deite”.
À voz da filha do Satúrnio, à casa
225 Dirige-se o Ulisseida angustiado;
Os soberbões encontra a esfolar cabras,
A assar no pátio suculentos porcos.
Rindo lhe ocorre Antino e a mão lhe trava:
“Fraco e loquaz Telêmaco, desterra
230 Mau pensamento; investe, como dantes,
Ao comer e ao beber, valente e guapo.
Gregos te escolherão navio e remos,
Onde a Pilos divina, ao som da fama,
Tu vás de Ulisses indagando novas”.
235 Sério o príncipe: “Antino, com soberbos
Folgar não devo ou conviver forçado.
Não basta que os meus bens dilapidásseis
Na infância minha? Alerta e mais crescido,
Aconselhei-me, e a ira em mim referve:
240 Seja em Pilos ou Ítaca, procuro
Vossa ruína; os passos meus não frustro.
Passagem pagarei, pois vos aprouve
De embarcação privar-me e de remeiros”.
E a mão da mão de Antino arranca fácil.
245 Rompe o festim, e a charlear um deles:
“Hui! Telêmaco a perda nos prepara!
Ou da arenosa Pilos ou de Esparta
Vingadores trará, se é que de Éfira
Não nos trouxer letíficos venenos,
250 Que na cratera a todos nos propine”.
E outro a zombar: “Quem sabe se naufrague
E longe expire, como o errante Ulisses?
Seria um grã trabalho o dividirmos
Tamanhas possessões, à mãe deixando,
255 Ou a quem a esposasse, este palácio”.
Ele à paterna estância ampla e sublime
Corre, onde amontoavam-se ouro e cobre,
Óleo odorífero e de vestes arcas;
Dentro, em redor envelheciam pipas
260 De almo divino baco, se inda Ulisses,
Depois de tanta angústia, ao lar voltasse.
Desperta as portas bífores cerradas
Guardava a ecônoma Euricléia, filha
De Opes de Pisenor; chamou-a e disse:
265 “Em ânforas bom vinho, ama, embotelha,
Do mais suave que a tornada espera
Do infeliz nobre herói, se a morte o poupa,
Delas enche uma dúzia e arrolha todas;
Alqueires vinte em odres bem cosidos
270 Vaza de grãos de elaborada Ceres.
Tudo arruma em segredo; à noite venho,
Mal Penélope a câmara procure.
A Esparta e a Pilos arenosa vou-me,
Do pai dileto a recolher notícias”.
275 Clama Euricléia, debulhada em pranto
“Filho, que insânia a tua! ires sozinho
Por esse mundo! É morto o grande Ulisses,
Ai! longe do seu ninho, em terra ignota:
Fica entre nós; para teus bens gozarem,
280 Se partes, eles te armarão ciladas;
Ao cruel vago mar não te confies”.
“Ama, responde o príncipe, sossega;
Isto não é sem deus. Jura à mãe cara
Onze dias ou doze encobrir tudo,
285 Salvo se o tenha ouvido ou queira ver-me:
Não deforme chorando as faces belas”.
Firma a velha um solene juramento,
E enquanto o vinho em ânforas transfunde
E despeja nos odres a farinha,
290 O jovem se reúne aos pretendentes.
Mais excogita Palas: disfarçada
No régio garfo, as ruas percorrendo,
Incitava um por um a achar-se prestes,
Ao lusco e fusco, ante um baixel veleiro
295 Ao de Frômio pedido egrégio filho,
Que o prometeu benévolo e previsto.
Obumbrava a cidade o Sol no ocaso:
Do porto à boca, a mesma Olhicerúlea,
Em nado posta a nau bem petrechada,
300 Congrega e exorta a pontual maruja.
Depois anda ao palácio; os pretendentes
Entre o vapor do vinho em sono enleia,
Turba-os, das mãos os copos lhes sacode:
Eles para dormir, da mesa erguidos,
305 Carregadas as pálpebras, se espargem.
Retoma a forma de Mentor a deusa,
Fora chama a Telêmaco: “Nos bancos
Te aguardam prontos os grevados Gregos;
Não demoremos a partida, vamos.”
310 Já caminha, e Telêmaco após ela.
Chegados ao baixel, na praia encontram
Comantes nautas, a quem fala o moço:
“Os víveres, amigos, transportemos
Que hei no aposento: exceto uma cativa,
315 Nem minha mãe conhece este segredo.”
Ei-los, colocam tudo na coberta:
Embarca o príncipe, adiante Palas,
Que a par o assenta à popa. Safam cabos
E abancam-se remeiros, bem que a deusa
320 Mande favônio Zéfiro, que aleia
E encrespa o turvo ressonante pego.
A vozes de Telêmaco, manobram:
De abeto o mastro levantado encaixam
Em sua base e o ligam de calabres,
325 Com táureas cordas brancas velas içam.
Venta em cheio; a fremir, purpúreas vagas
O buco açoutam, que as retalha e voa.
Finda a mareação, do mais estreme
Em pé crateras coroando, libam
330 Aos imortais, principalmente à prole
De Júpiter Minerva, que da noite
À nova aurora viajou com eles.

NOTAS AO LIVRO II

68-71 — Nesta passagem, usa Rochefort de estilo erótico alheio de Homero: Antino fala no tom do Pastor Fido ou da Marília de Dirceu. Apesar de ser Pindemonte um bom poeta, caiu no mesmo erro, na aparição dramática de Penélope no livro I, pondo-lhe na boca, não palavras convinháveis ao conjugal amor daquela mãe de um filho de vinte anos, sim próprios da mais ardente mocidade. Amiúde, como sucede em outros lugares deste livro II, emprestam os tradutores aos seus quadros cores modernas mal assentes, por mero enfeite. Ora, pode-se uma ou outra vez ornar o pensamento, contanto que não se abuse da licença, e o ornato seja no gosto do autor; e, se tal se permite, é por uma espécie de compensação, visto que em não poucas ocasiões deixa o tradutor forçosamente de passar com a mesma gala muitas expressões do original. A simplicidade homérica é um grande escolho para nós outros.
118-174 — Éu phroneon tomam alguns na acepção de prudente: Homero, penso, diz que Haliterse falou contente, por ver que as águias reforçavam o seu antigo prognóstico. — No verso 150, trato só da virtude, não da beleza de Penélope, como alguns acrescentaram, contra a precisão do texto: refiro-me à nota antecedente. — Com M. Giguet, tenho que o verso 169 não é Laertes; é Mentor, que, menos idoso, encarregou-se da família na ausência do herói. — O 174 é o enérgico e belíssimo verso de Ferreira na carta primeira, o qual orna o pensamento sem fugir do estilo simples do poeta grego.
219-244 — Chama-se aqui a farinha ou o pão medula dos varões: não quis eu esfriar esta expressão com um equivalente; o mesmo praticou M. Giguet, em prosa e numa língua menos ousada. — O Reia do 322 do original, verti-o à letra por fácil: parece-me que no seu advérbio indica o autor a força do braço de Telêmaco, de bom agouro para o futuro. Este belo toque de mestre é como o de Virgílio, que no verso 652 do livro VII só no advérbio nequidquam aponta a morte futura de Lauso. Muitos não fizeram caso algum desta passagem, mas Rochefort acertou, bem que a sua versão, longa e prolixa, pareça antes uma explanação do texto. — Ondicercada, no meu verso 221, imitado do italiano, é o mesmo que circúnflua, adjetivo já da nossa língua, do qual falei anteriormente.