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Livro: História de Heródoto

História de Heródoto 
(484 A.C. - 425 A.C.)
Traduzido do grego por
Pierre Henri Larcher
(1726 D.C. - 1812 D.C.)

Fontes digitais desta edição
Digitalização do livro em papel
Volumes XXIII e XXIV
Clássicos Jackson
W. M. Jackson Inc.,Rio, 1950
Versão para o português de
J. Brito Broca
Nota do Editor

Mais de meio século escoou desde a publicação do Heródoto de Larcher, e durante este meio século o sucesso desta obra não cessou de crescer. É hoje um livro clássico, e os próprios sábios lhe deram o justo lugar, assinalando-o como o monumento durável de um grande trabalho que absorveu a vida inteira de seu autor.

Quando Larcher publicou esta tradução, creu necessário juntar-lhe um grande número de notas tiradas das fontes as mais sábias, e úteis seja para o estabelecimento do texto, seja para a inteligência dos fatos. Estas notas encheram quatro volumes de sua primeira edição, e seis de sua segunda. Era muito, era demais, sem dúvida; e entretanto Larcher preparava uma terceira edição, que vimos, à qual juntara um bom número de novas notas.

Acusaram-no com razão deste luxo desenfreado de erudição; e Volney, sábio notável, e ademais homem de gosto, expressou o desejo que uma mão amiga se encarregasse de desbastar este cipoal da ciência, sob o qual a árvore vigorosa de Heródoto ficava como que embalsamada. O objetivo seria eclarar e não sufocar o historiador.

É este trabalho que oferecemos hoje ao público; tentámos realizar o voto de Volney, de suprimir a erudição inútil, acolher os esclarecimentos indispensáveis, e reunir em um muito pequeno número de notas, emprestadas de outros comentadores, tudo o que pudesse facilitar o estudo do pai da história, ou, como o chamava o douto Sainte-Croix, do grande rival de Homero.
L. AIMÉ-MARTIN.
26 de maio de 1842
Vida de Heródoto

Heródoto, nascido em Halicarnasso no ano de 4230 do período juliano, 484 anos antes de nossa era, era Dório de extração, ilustre de nascimento. Teve por pai Lixas e por mãe Drio, que tinham um lugar de destaque entre seus concidadãos. Paniasis, poeta célebre, ao qual alguns escritores adjudicam o primeiro posto após Homero, embora outros o coloquem após Hesíodo e Antímaco, era seu tio por parte de pai ou de mãe; nada há de certo a respeito.

Paniasis nasceu, se déssemos crédito a Suidas, na 78a. olimpíada, isto é, no ano 4247 do período juliano, 407 anos antes da era vulgar. Não posso compartilhar esta opinião, porque se seguiria que Heródoto, seu sobrinho, seria 17 anos mais velho do que ele. Não ignoro que há tios mais jovens que seus sobrinhos: tenho exemplos.

Também insisto menos nesta razão do que sobre o tempo em que faleceu Paniasis, embora não possa ser fixada de maneira certa. Mas sabemos que Ligdamis, tirano de Halicarnasso, foi derrubado no anos 4257 do período juliano, 457 anos antes de nossa era. Ter-se-ia pois que fazer morrer este poeta no mais tardar em 4.256 do período juliano, 458 anos antes da era vulgar.

Se a asserção de Suidas fosse verdadeira, Paniasis teria no máximo 9 anos quando faleceu. Como, com esta idade, poderia ter feito sombra ao tirano? como poderia ter composto estas obras que lhe deram tão grande reputação? Prefiro, por esta razão, colocar seu nascimento na 68a. olimpíada. Teria pois 50 anos quando Ligdamis o mandou matar, e teria tido tempo para compor este grande número de obras que o imortalizaram. Ademais, o próprio Suidas admite que há autores que o fazem mais velho. Paniasis era conhecido pelo Heracleiade e pelo Iônicos. O Heracleiade era um poema heróico em honra a Hércules; nele o poeta celebrava as conquistas deste herói, em catorze livros contendo nove mil versos.

Diversos escritores o mencionam com distinção. Isaac Tzetzès em seus Prolegômenos sobre a Cassanda de Licofron, Proclus em seu Chrestomatia, Suidas na palavra Paniasis, Pausanias, que até lhe cita dois versos, e o escoliasta de Píndaro, que menciona um do terceiro livro. Quintiliano, bom juiz nestas questões, nos diz que ele não igualava em eloqüência nem Hesíodo nem Antimaco, mas que ultrapassava o primeiro pela riqueza de seu tema, e o segundo pela disposição que lhe dera. Denis de Halicarnado, que não se destacava menos na crítica do que na história, nos traz também o mesmo juízo. Atenho-me a estas autoridades, às quais poderia juntar as de diversos outros autores, tais como Apolodoro, santo Clemente de Alexandria, Ateneu, etc.

O mesmo Paniasis tinha escrito em versos pentâmetros um poema sobre Codrus, Neleu e a colônia iônia, que se chamava Os Iônicos. Este curioso poema, do qual nunca seria demais lamentar a perda, porque entrava em uma infinidade de detalhes históricos sobre esta colônia, compreendia sete mil versos. Só nos restou deste poeta dois pequenos pedaços de versos com um fragmento, em que Paniasis celebra o vinho e os prazeres da mesa tomados com moderação. Stobeu e Ateneu os conservaram para nós. Podemos encontrá-los em diversas coletâneas, e muito mais corretamente na dos poetas gnômicos, publicada em 1784 em Strasburgo por Brunck, crítico cheio de gosto e de sagacidade. Há ainda cinco versos deste poeta que se podem ler em Étienne de Bizâncio, na palavra TremÛlh. Suspeito que são do Heracleida. Brunck não julgou apropriado lhes dar um lugar em sua coletânea.

Nestes belos séculos da Grécia, tomava-se um cuidado particular na educação da juventude, formando-lhes o coração, cultivando-lhes o espírito. É de se presumir que a educação de Heródoto não tenha sido negligenciada, embora ignoremos quais foram seus mestres. Não podemos sequer duvidar, quando o vemos empreender em uma idade pouco avançada longas e penosas viagens, para aperfeiçoar seus conhecimentos e para adquirir novos.

A descrição da Ásia por Decideu, a história de Lídia, de Xantus, as da Pérsia de Helanicos de Lesbos e Charon de Lampsaco, gozavam então a mais alta reputação. Estas obras agradáveis, interessantes, foram sem dúvida devoradas por Heródoto nesta idade em que se é ávido por conhecimentos, e lhe inspiraram o vívido desejo de percorrer os países cujas descrições o haviam encantado. Não era contudo uma vaga curiosidade que o levava a viajar; ele se propunha uma finalidade mais nobre, a de escrever história. O sucesso dos historiadores que o haviam precedido não o amedrontou; pelo contrário, serviu para inflamá-lo; e embora Helanico de Lesbos e Charon de Lampsaco tivessem tratado em parte do mesmo assunto, longe de ser desencorajado, ele ousou lutar contra eles, e não se esforçou em vão em superá-los. Ele se propunha escrever, não a história da Pérsia, mas somente a da guerra que os Gregos tiveram que sustentar contra os Persas. Este assunto, simples na aparência, lhe forneceu a ocasião de fazer entrar no mesmo quadro a história da maioria dos povos com que os Gregos tinham relações íntimas, ou que lhes importava conhecer. Sentia que, para executar este plano, deveria recolher materiais, e adquirir um exato conhecimento dos países dos quais se propunha fazer a descrição. Foi com isto em vista que empreendeu suas viagens, que percorreu a Grécia inteira, o Épiro, a Macedônia, a Trácia; e, segundo seu próprio testemunho, não se pode duvidar que tenha passado da Trácia aos Citas, para além de Íster e do Boristeno. Por toda parte, observou com olhar curioso os sítios, as distâncias dos lugares, as produções dos países, os usos, os costumes, a religião dos povos; fuçou em seus arquivos e em suas inscrições os fatos importantes, a seqüência dos reis, as genealogias dos personagens ilustres; e por toda parte ligou-se aos homens mais instruídos, e dedicou-se a consultá-los em todas as ocasiões. Talvez tenha se contentado nesta primeira viagem em visitar a Grécia, e que, em seguida rumou para o Egito, passando daí para a Ásia na Cólcida, à Cítia, à Trácia, à Macedônia, retornando a Grécia pelo Épiro. Seja como for, o Egito, que mesmo hoje em dia ainda desperta o espanto e a admiração dos viajantes inteligentes, não poderia deixar de entrar no plano de Heródoto. Hecateu já havia viajado para ali antes dele e, por todas as aparências, tinha feito uma descrição do Egito. Porfírio pretende que este historiador tenha se apropriado, do Viagem da Ásia deste escritor, da descrição da fênix e do hipopótamo, com a caça do crocodilo, e que apenas fez algumas mudanças; mas o testemunho de Porfírio é mais que suspeito, pois Calímaco atribui esta Viagem da Ásia a um escritor obscuro. Acrescento, com Walckenaër, que se o historiador tivesse sido culpado deste plágio, Plutarco, que compôs um tratado contra ele, não teria deixado de denunciá-lo. Não temos nenhum escritor, seja antigo, seja moderno, que tenha dado deste país uma descrição tão exata e também curiosa. Ele nos faz conhecer sua geografia com uma exatidão que nem sempre tiveram geógrafos de profissão, as produções do país, os costumes, os usos e a religião de seus habitantes, e a história dos últimos príncipes antes da conquista dos Persas, com particuliaridades interessantes sobre esta conquista, que teriam sido para sempre perdidas que ele não as tivesse transmitido à posteridade.

Se crêssemos que nosso autor nada mais fez que recolher rumores populares, erraríamos grosseiramente. Não saberíamos imaginar os cuidados e as penas que tomou para se instruir, e para não apresentar a seus leitores nada além do certo. Suas conferências com os padres do Egito, a familiaridade que desfrutou entre eles, as precauções que tomou para que não lhe impusessem nada, são garantias seguras do que ele afirma. Um viajante menos circunspecto teria se contentado com o testemunho dos sacerdotes estabelecidos em Mênfis. Mas este testemunho, respeitável sem dúvida, não lhe pareceu suficiente. Foi a Heliópolis, e daí para Tebas, a fim de assegurar-se, por conta própria, da veracidade do que lhe haviam dito os sacerdotes de Mênfis. Consultou os colégios de sacerdotes estabelecidos nestas duas grandes cidades, que eram os depositários de todos os conhecimentos; e só depois de achá-los perfeitamente conformes com os sacerdotes de Mênfis acreditou-se autorizado a dar os resultados de seus encontros.

A viagem que Heródoto fez a Tiro nos oferece outro exemplo não menos patente da exatidão de suas pesquisas. Soubera no Egito que Hércules era um dos doze deuses nascidos dos oito mais antigos, e que estes doze deuses tinham reinado no Egito 17.000 anos antes do reino de Amasis. Tal assertiva seria bem capaz de confundir todas as idéias de um Grego que não conhecesse outro Hércules que o de sua nação, cujo nascimento não datava senão do ano 1.384 antes de nossa era, como o provei em meu Essai de chronologie, capítulo XIII. Como esta assertiva estava abalizada pelos livros sagrados e pelo testemunho unânime dos sacerdotes, ele não podia ou não ousava contestá-la. Entretanto, como queria conseguir a propósito uma certeza maior, se fosse possível, foi a Tiro para ver aí um templo de Hércules que se dizia ser muito antigo. Contaram-lhe nesta cidade que este templo fora erigido há 2.300 anos. Viu também em Tiro um templo de Hércules sobrenomeado Tasiano. A curiosidade o levou a Thasos, onde encontrou um templo deste deus, construído pelos Fenícios que, correndo os mares sob o pretexto de procurar Europa, fundaram uma colônia nesta ilha, cinco gerações antes do nascimento do filho de Alcmene. Ficou então convencido que o Hércules egípcio erá muito diferente do filho de Anfitrião; e ficou tão persuadido que o primeiro era um deus e o outro um herói, que diz lhe parecerem agir sabiamente os Gregos que ofereciam a um Hércules, que chamavam de Olímpico, sacrifícios como a um imortal, e que faziam ao outro oferendas como a um herói.

Suas excursões na Líbia e na Cirenaica precedem a viagem a Tiro. A descrição exata da Líbia, desde as fronteiras do Egito até o promontório Soloeis, hoje cabo Spartel, conforma-se em tudo ao que nos dizem os viajantes mais estimados, e o doutor Shaw em particular, não permitindo dúvida de que tenha visto este país por si mesmo. Somos ainda tentados a crer que tenha estado em Cartago; seus encontros com um grande número de cartaginenses autorizam esta opinião. Ele voltou sem dúvida pela mesma rota ao Egito, e daí enfim passou a Tiro, como já disse.

Após alguma estada nesta soberba cidade, visitou a Palestina, onde viu as colônias que Sesostris aí tinha feito edificar; e sobre estas colônias salientou o emblema que caracterizava a lassidão de seus habitantes. Daí foi à Babilônia, que era então a cidade mais magnífica e a mais opulenta que existia no mundo. Sei que muitas pessoas esclarecidas, e des Vignoles entre outras, duvidam que Heródoto tenha viajado à Assíria. Não posso responder melhor a este respeitável sábio que me servindo dos próprios termos de um outro sábio que não o é menos do que aquele, isto é, o presidente Boudhier. Eis como ele se exprime: "Embora as passagens de Heródoto que fizeram muitos crerem que ele tenha realmente estado na Babilônia não sejam muito claras, é quase impossível duvidar que ele não a tenha visto, se nos dermos ao trabalho de examinar a descrição exata que faz nestas passagens de todas as singularidades desta grande cidade e de seus habitantes. Só mesmo um testemunho ocular poderia falar com tanta precisão sobretudo em um tempo em que nenhum outro grego havia escrito a respeito. E mais, atente-se à maneira pela qual fala de uma estátua de ouro maciço de Júpiter Belus, que estava na Babilônia, e que tinha doze côvados de altura. Ao se dizer que ele não a viu, porque o rei Xerxes a havia feito transportar, não é insinuar tacitamente que ele teria visto todas as outras coisas que disse ter visto nesta grande cidade? É forçoso também reconhecer por diversas outras passagens de sua obra, que ele tinha conferenciado nestes lugares com Babilônios e Persas sobre o que dizia respeito a sua religião e sua história. Além do mais, não é admissível que um homem que tinha percorrido tantos países diferentes para se instruir de tudo o que pudesse lhes concernir, tivesse negligenciado de ir ver uma cidade que passava por ser então a mais bela do mundo, e onde poderia recolher as memórias mais seguras para a história que preparava da alta Ásia, sobretudo tendo estado tão perto dela."

A Cólcida foi o último país da Ásia que percorreu. Queria assegurar-se pessoalmente se os Cólcidos eram de origem egípcia, como lhe tinham dito no Egito, e se eram descendentes de uma parte do exército de Sesostris que tinha se estabelecido neste país. Da Cólcida passou pelos Citas e os Getos, daí à Trácia, da Trácia à Macedônia; e enfim voltou à Grécia pelo Épiro. Se não tivesse conhecido tão bem todos estes diferentes países, como poderia ter dado uma descrição exata, falar com clareza da expedição de Dario entre os Citas, e da de Xerxes à Grécia?

De volta à sua pátria, aí não se demorou. Ligdamis, filho de Pisindelis, e neto de Artemisa, que tinha se distinguido na jornada de Salamina, era o tirano. E havia mandado matar Paniasis, tio de nosso historiador. Heródoto, não crendo sua vida em segurança sob um governo suspeitoso e cruel, buscou asilo em Samos. Foi neste doce retiro que colocou em ordem o material que tinha trazido, que fez o plano de sua historia e compôs os primeiros livros. A tranqüilidade e os desvelos de que desfrutava não extinguiram contudo nele o gosto da liberdade. Este gosto, inato por assim dizer nos Gregos, unido ao poderoso desejo de vingança, inspirou-lhe o desejo de combater Ligdamis. Com isso em vista ligou-se aos descontentes, e sobretudo com os amigos da liberdade. Quando sentiu a hora azada, reapareceu de súbito em Halicarnasso; e, colocando-se à frente dos conjurados, bateu o tirano. Esta ação generosa não teve outra recompensa que a mais negra ingratidão. Era preciso estabelecer uma forma de governo que conservasse a igualdade de todos os cidadãos, este direito precioso que todos os homens trazem de nascença. Mas isso não era possível em uma cidade dividida em facções, onde os cidadãos imaginavam ter, por seu nascimento e por suas riquezas, o privilégio de governar, e excluir de honras a classe média, ou mesmo de vexá-la. A aristocracia, a pior espécie de todos os governos, era seu ídolo favorito. Não fora o amor pela liberdade que os havia armado contra o tirano, mas o desejo de se atribuir sua autoridade e de reinar com o mesmo despotismo. A classe média e o povo, que tinham tido pouca coisa a reclamar do tirano, acreditaram ter perdido com a troca, vendo o governo nas mãos de um pequeno número de cidadãos dos quais era preciso absorver a avidez, temer os caprichos e mesmo as suspeitas. Heródoto tornou-se odioso a uns e a outros: a uns porque o viam como o autor de uma revolução que se mostrara desvantajosa para eles; a outros porque o viam como um ardente defensor da democracia.

Espremido entre as duas facções que partilhavam o Estado, disse um eterno adeus à sua pátria, e partiu para Grécia. Celebrava-se então a 81a. olimpíada. Heródoto se apresentou aos jogos olimpicos: querendo se imortalizar, e ao mesmo tempo fazer sentir aos seus cidadãos quem era o homem que tinham forçado a se expatriar, leu nesta assembléia, a mais ilustre da nação, a mais esclarecida de houve, o começo de sua História ou, talvez, os trechos mais apropriados para inflar o orgulho de um povo que tinha tantos motivos para se crer superior aos demais. Tucídides, que não tinha então senão quinze anos, mas no qual já despontava o brilho de seu belo gênio, que foi um dos mais brilhantes ornamentos do século de Péricles, não pôde conter as lágrimas à leitura desta História. Heródoto, que o percebeu, disse ao pai do jovem: Olurus, vosso filho queima de desejo por conhecimentos.

Detenho-me um momento para provar foi na 81a. olimpíado que Heródoto leu uma parte de sua Historia à Grécia reunida. É certo que Heródoto, tendo abandonado Halicarnasso e desejando fazer seu nome, foi a Olímpia, e que leu uma parte de sua História, que foi de tal modo apreciada, que se deu aos nove livros que a compunham o nome de Musas. Luciano o diz da maneira mais clara e mais formal. De outro lado, Marcelino nos informa que Tucídides verteu lágrimas ao ouvir esta leitura, e que Heródoto, testemunha da sensibilidade deste rapaz, endereçou a seu pai as palavras que mencionei. Tucídides nasceu no primeiro ano da 77a. olimpíada, na primavera, e por conseqüência no ano 4.243 do período juliano, 471 antes da nossa era. Tinha pois quinze anos e alguns meses quando assistiu a esta leitura. Poderia já ser sensível às delícias do estilo: mas esta sensibilidade não era menos surpreendente em uma idade tão tenra, e fazia conceber grandes esperanças. Se supusermos que este acontecimento pertence à olimpíada precedente, torna-se ainda mais maravilhoso, para não dizer inacreditável. Se, ao contrário, recuarmos à 82a. olimpíada, Tucídides tendo então 19 anos e alguns meses, sua sensibilidade não teria tido nada de surpreendente, e não se teria feito notar. É preciso pois constar, com Dodwell, que este historiador tinha então quinze anos. O padre Corsini, clérigo regular de Escolas pias, é também deste parecer em seus Fastes Attiques, e cita, para prová-lo, Luciano no tratado sur la Manière d’écrire l’histoire, embora não fosse questionado nesta obra. Este sábio, contudo, não tinha sobre o fato idéias bem definidas, uma vez que, na página 213 do mesmo trabalho, recua esta leitura ao primeiro ano da 84a. olimpíada, quer dizer doze anos, o que me faz crer que ele confunde aí a leitura feita nos jogos olímpicos com a que fez o mesmo historiador nas Panatenéias, embora esta festa preceda a 84a. olimpíada em mais de 15 dias.

Voltemos ao nosso assunto. Encorajado pelos aplausos que recebera, Heródoto emprega os doze anos seguintes a continuar sua História e em aperfeiçoá-la. Foi então que viajou por toda a Grécia, que até então só tinha percorrido, que examina com a mais escrupulosa atenção os arquivos de seus diferentes povos, e que se assegura dos principais trechos de sua história, bem como as genealogias das mais ilustres casas da Grécia, não apenas percorrendo seus arquivos, mas lendo suas inscrições. Porque nestes tempos antigos transmitia-se à posteridade os acontecimentos mais interessantes, como os mais remarcáveis, por meio de inscrições gravadas sobre monumentos duráveis, ou sobre tripés que eram conservados com o maior zelo nos templos. Estas inscrições continham os nomes dos que tinham tomado parte nestes acontecimentos, com os de seus pais e de suas tribos; de modo que vários séculos após era impossivel se equivocar, malgrado a identidade dos nomes que se notavam às vezes nestes monumentos.

Em uma destas excursões foi a Corinto, onde recitou, se dermos fé a Dion Crisóstomo, a descrição da batalha de Salamina, com as circunstâncias honoráveis para os Coríntios, e sobretudo para Adimanto que os comandava. "Mas, continua o sofista no discurso que endereça aos Coríntios, Heródoto tendo vos pedido uma recompensa, e não a tendo obtido, porque vossos ancestrais desdenhavam colocar preço na glória, mudou as circunstâncias desta batalha, e as conta de maneira que vos é desfavorável." Um fato de tal natureza, se fosse provado, revelaria uma alma vil; e, longe de procurar justificar Heródoto, contentando-me em admirar o escritor, abandonaria o homem ao justo desprezo que mereceria. Mas a resposta me parece muito fácil. 1.º Se não tivesse tido duas opiniões muito constantes sobre a conduta que os Coríntios tiveram na jornada de Salamina, Heródoto não teria se exposto narrando-as, com o risco de ser desmentido pela maior parte da Grécia, de que procurava captar a benevolência, e que era então aliada e amiga dos Coríntios; 2.º Dion Crisóstomo viveu mais de cinco séculos depois desta batalha, enquanto que nosso historiador nascera quatro anos antes que ela se desse. O primeiro não poderia conhecer as particuliaridades senão pela história e pelos monumentos, enquanto que o outro estava instruído não só pelos monumentos, mas também pelo testemunho de uma infinidade de pessoais que ali estiveram. 3.º A autoridade destes monumentos não é tão grande nesta ocasião quanto é na maioria das outras; porque o próprio Heródoto conta que muitos povos, ao se mostrar a sepultura em Plateia, vergonhosos de não terem ido a combate, tinham erigido cenotáfios com terra amontoada, a fim de se fazerem honrar na posteridade. Os Coríntios podem ter feito o mesmo após a jornada de Salamina. 4.º Os versos que Simonides fez em honra aos Coríntios e Adimanto, seu general, não parecerão jamais uma prova conclusiva aos que conhecerem a cupidez deste poeta, e a que ponto prostituía sua pena à melhor oferta. 5.º Se o fato relatado por Dion Crisóstomo tivesse sido verdadeiro, Plutarco, que não deixou escapar ocasião alguma para mostrar sua animosidade contra Heródoto, não teria deixado de fazer a respeito as mais cruéis críticas, porque confessadamente o detestava, porque este historiador tinha dito verdades sobre seus compatriotas que não lhes eram vantajosas. Ele pretende, é verdade, que os Coríntios comportaram-se valentemente na jornada de Salamina e que Heródoto suprimiu seus elogios por malignidade. Entretanto, longe de as suprimir, ele relatou o que os Gregos contavam de mais ufanosos para este povo; mas, como fazia profissão de imparcialidade, não acreditou dever passar em silêncio o que diziam também os Atenienses. Aqui seria o lugar para refutar o que diz Plutarco para provar que os Coríntios se cobriram de glória nesta batalha; mas como isso me levaria muito longe, e que provavelmente muitos poucos leitores teriam interesse nesta discussão, creio dever deixá-la de lado inclusive porque esta digressão já está um pouco longa.

Doze anos após ter lido uma parte de sua História nos jogos olímpicos, Heródoto leu outra em Atenas, na festa das Panatenéias, que se celebravam em 28 de hecatombaeon, isto é em 10 de agosto. A leitura aconteceu no ano 4.270 do período juliano, 444 anos antes de nossa era, e no primeiro ano da 84a. olimpíada. Os Atenienses não se limitaram a elogios estéreis: fizeram-lhe presente de 10 talentos, por um decreto proposto por Aninto e ratificado pelo povo em assembléia, como o atesta Diilo, historiador muito estimado. É sem dúvida desta recompensa que é preciso entender o que disse Eusébio, no lugar que citei, que Heródoto foi honrado pelos Atenienses.

Parece que esta acolhida teria devido fixá-lo em Atenas. Entretanto ele se juntou à colônia que os Atenienses enviaram a Thurium no começo da olimpíada seguinte. O gosto que tinha pelas viagens foi superior, talvez, ao reconhecimento que deveria aos Atenienses; mas talvez também não cresse ele que abandonasse Atenas ao acompanhar um tão número de Atenienses, entre os quais havia muitos distinguidos. Lísias, então com somente 15 anos, que se tornaria depois um grande orador, estava entre os colonos. Heródoto tinha então quarenta anos; porque havia nascido no ano 484 antes de nossa era, e no primeiro ano da 74a. olimpíada. O autor anônimo da Vida de Tucídides coloca também este historiador no número dos colonos. Mas como é o único escritor que o menciona, é permitido duvidar-se.

Ele fixa seu domicílio em Thurium; ou, se daí saiu, foi só para fazer algumas excursões pela grande Grécia, quero dizer nesta parte da Itália que estava povoada por colônias gregas, e que foi assim nomeada, não porque fosse mais considerável que o resto da Grécia, mas porque Pitágoras e os pitagóricos lhe deram uma grande celebridade. Há muita aparência que ele passou o resto de seus dias nesta cidade, e parece certo que foi por esta razão que se lhe dá às vezes o sobrenome de Heródoto de Thurium. Strabrão o diz positivamente. Eis como se exprime este sábio geógrafo ao falar da cidade de Halicarnasso: "O historiador Heródoto era desta cidade. Chamaram-no depois Thurien, porque estava entre os que foram enviados em colônia a Thurium." O imperador Juliano não o chama de outra forma no fragmento de uma carta que Suidas nos conservou: Se o Turiano parece a qualquer um digno de fé, etc. A coisa foi mesmo levada tão longe, que Heródoto tendo começado sua História com estas palavras: Publicando suas pesquisas, Heródo de Halicarnasso, etc.; Aristóteles, que cita este começo, mudou esta expressão pela de Herodoto de Thurium. Este sábio não é o único a fazê-lo; porque Plutarco obsera que muitas pessoas haviam feito a mesma mudança.

O lazer que gozou nesta cidade lhe permitiu retocar sua História, e fazer algumas adições consideráveis. É assim que é preciso entender esta passagem de Plínio: Urbis nostrae trecentesimo anno.... auctor ille (Herodotus) Historiam condidit Thuriis in Italia; porque é certo que ele havia lido uma parte de sua História em Atenas antes de partir para Thurium, e que doze anos antes havia lido outra nos jogos olímpicos. Esta passagem de Plínio induziu em erro o sábio des Vignoles. Não vou me dar o trabalho de refutá-lo, o presidente Bouhier já o fez com sucesso no capítulo primeiro de seu Recherches et Dissertations sur Hérodote.

Não se pode duvidar que ele tenha acrescido muitas coisas durante sua estadia em Thurium, pois relata fatos que são posteriores à sua viagem à grande Grécia. Alguns sábios notaram antes de mim, e sobretudo Bouhier e Wesseling. Entre eles: 1.º a invasão que os Lacedemônios fizeram na Ática no primeiro ano da guerra do Peloponeso, invasão na qual este país foi devastado, exceto Deceléia, que pouparam por reconhecimento a uma boa ação dos Decélienses; 2.º a sorte funesta dos embaixadores que os Lacedemônios enviaram à Ásia no segundo ano da guerra do Peloponeso, e no ano 430 antes de nossa era; 3.º a defecção dos Medas sob Darius Nothus, que este príncipe colocou pouco depois novamente sob jugo. Este acontecimento, que Heródoto conta, e que é certamente da 93a. olimpíada, do 24.º ano da guerra do Peloponeso, e de 408 antes de nossa era, prova que Heródoto teria acrescido este fato em uma idade bem avançada. Ele tinha então 77 anos.

O presidente Bouhier colocou também após a viagem de Heródoto à grande Grécia a retirada de Amirtéia para a ilha de Elbo, de que fala Heródoto. Este sábio, enganado por Syncelle, supunha que este príncipe ter-se-ia refugiado nesta ilha no 14.º ano da guerra do Peloponeso, e no ano 417 de nossa era. Dodwell e Wesseling tinham bem visto que a revolta de Amirtéia tendo começado no segundo ano da 79a. olimpíada, o fim desta revolta foi no segundo ano da olimpíada seguinte, e por conseqüëncia anterior em 14 anos à partida de nosso historiador para a grande Grécia. Não relatarei aqui as provas, já o tendo feito de maneira bem ampla em meu Essay sur la Chronologie.

Foi também nestas viagens que aprendeu diversas peculiaridades sobre as cidades de Rhégium, de Géla, de Zancle, e sobre seus tiranos; particuliaridades que transmitiu à posteridade.

Acabamos de ver que nosso historiador tinha 77 anos quando acrescentou à sua História a revolta dos Medas. Ignora-se até que idade levou sua carreira, e em que país a terminou. É verossímil que morreu em Thurium; e temos, para apoiar esta pressuposição, o testemunho positivo de Suidas, que nos conta também que foi enterrado na praça pública desta cidade. O que pode nos fazer duvidar, é que o mesmo escritor acrescenta que alguns autore o fazem morrer em Pella na Macedônia. Mas como ignoramos até mesmo o nome destes autores, não sabemos que têm qualquer autoridade, e qual o grau de confiança que merecem.

Marcelino escreveu, em Vie da Thucydide, que se ve, entre os monumentos de Cimon em Coelé, perto das portas Mélitides, o túmulo de Heródoto. Poder-se-ia concluir desta passagem que Heródoto morreu em Atenas, e é esse o sentimento do presidente Bouhier. Quem nos garante porém que fosse um verdadeiro túmero e não um cenotáfio? Se foi erigido ao nosso historiador um monumento no lugar destinado à sepultura da casa de Cimon, é porque partindo para Thurium obteve em Atenas o direito de cidade, e que foi provavelmente adotado por alguém desta casa, uma das mais ilustres desta cidade: porque sem esta adoção não lhe teriam erigido um monumento neste lugar, onde não era permitido inumar ninguém que não fosse da família de Miltíades. É o que muito bem provou Dodwell.

Resta entretanto ainda alguma incerteza: a inscrição relatada por Étienne de Byzance a faria desaparecer, se fosse assegurado que tivesse sido encontrada em Thurium; porque o primeiro verso desta inscrição atesta que as cinzas de nosso historiador repousariam sob esta tumba. Creio que não posso melhor terminar sua Vida que por este epitáfio, que relata Étienne de Byzance: "Esta terra encobre em seu seio Heródoto, filho de Lixas, Dório de origem, e o mais ilustre dos historiadores iônios. Ele se retirou para Thurium, que via como uma segunda pátria, a fim de se colocar a coberto das mordidas de Momus."

Plano da História de Heródoto

Heródoto não se propunha, como o diz ele mesmo no começo de sua História, senão celebrar os feitos dos Gregos e dos Persas, e desenvolver os motivos que haviam levado estes povos a se fazerem a guerra. Entre as causas desta guerra, as havia distantes e próximas. As distantes eram os raptos recíprocos e algumas mulheres da Europa e da Ásia, que, tendo dado azo à guerra de Tróia, haviam ulcerado os corações dos Asiáticos contra os Gregos. As causas próximas eram os socorros que os Atenienses haviam dado aos Iônios em sua revolta, a invasão da Iônia e o incêndio de Sardes pelos Atenienses. Os Persas, irritados com estas hostilidades, resolveram praticar uma vingança fragorosa. Os Persas até então eram pouco conhecidos dos Gregos. Era pois necessário fazê-los conhecer esta nação, contra a qual haviam lutado com tanta glória. Para chegar a este fim, Heródoto tomou este povo em sua origem, e nos fez ver por que meios havia sacudido o jugo dos Medas; e, como isso não teria dado aos leitores idéias bem claras e bem nítidas, foi preciso lhes apresentar um vislumbre rápido da história dos Medas. Esta história estava, ela mesma, tão ligada com a dos Assírios, dos quais os Medas tinham sido súditos, que foi preciso instruir os leitores da maneira pela qual romperam o jugo, e dar-lhes igualmente uma súmula da história da Assíria. Estas três histórias não são pois senão aperitivos. Não se pode desvendar uma sem tirar da obscuridade as duas outras; e se se suprime todas as três, não se terá senão um conhecimento muito imperfeito das dificuldades que os Gregos tiveram de suplantar.

Ciro, tendo subjugado a Média, marcha de conquista em conquista. Esse poderio formidável dá inquietude a Creso. Ele a quer reprimir, e ao fazê-lo atrai sobre si as armas de Ciro; foi batido, e seu país conquistado. É ocasião para dar a conhecer os Lídios. Heródoto não a deixa escapar, dando ao menos um esboço destes príncipes que tinham submetido a maioria dos Gregos estabelecidos na Ásia. Contudo, como não perdia jamais de vista o plano de sua História, não diz senão duas palavras sobre a origem do reino da Lídia, de seus progressos e de sua destruição. Ciro, após esta conquista, deixa a seus generais o cuidado de submeter os Gregos asiáticos; marcha em pessoa contra os Babilônios e os povos de sua dependência, e os subjuga. Heródoto só se detém alguns instantes sobre os objetos os mais importantes e os mais interessantes. Assim não fala nem dos Báctrios nem dos Sácios, que Ciro havia subjugado. Se se estende sobre os Masságetas, é porque a guerra que lhes fez Ciro lhe foi muito funesta, e porque pereceu em um combate que lhes deu.

Cambises, seu filho, sucedeu-o. Confiante em seu poderio, marchou contra o Egito. Este pais era então o mais célebre que havia no mundo; e os Gregos começavam a viajar para lá, mais por interesse comercial do que por curiosidade e pelo desejo de se instruir, embora estes dois últimos motivos também existissem. Era pois de última importância dar-lhes conhecimento deste país singular, de suas produções, costumes e religião de seus habitantes, com uma relação sucinto de seus reis. Heródoto dedica a isso seu segundo livro. Submetido o Egito, Cambisses marcha contra os falsos Esmérdis, que haviam se revoltado contra ele; perece por um acidente. Pouco tempo após sua morte, descobre-se a trapaça do mago Esmérdis; ele foi massacrado, e elegem por rei Dario. Este príncipe volta a subjugar os Babilônios que se haviam revoltado, e, como era muito ambicioso, quer sujeitar os Citas. Estes povos só eram conhecidos por seus vizinhos, e pelos Gregos estabelecidos nas cidades limítrofes à Cítia. Os Citas eram então para os Gregos objeto de curiosidade tanto mais espicaçante à medida em que já havia na Trácia e nas bordas do Ponto Euxino, quer na Europa como na Ásia, colônias gregas. Se nosso historiador não se estendeu sobre estas povos com a mesma complacência que sobre os Egípcios, ao menos o faz com extensão suficiente para dar aos Gregos uma idéia da forma de seu governo e de seus costumes, com uma descrição sucinta de seu país. Esta descrição é tão exata, que se encontra confirmada na maioria de seus pontos pelos relatos daqueles entre os modernos que viajaram pela Bulgaria, Moldávia, Bessarábia, Czernigow, Ucrânia, Criméia e os Cossacos do Don. Dario viu-se obrigado a voltar vergonhosamento aos seus Estados. Os Iônios, que não sabiam nem ser livres nem ser escravos, se revoltaram.

Levantam-se contando com o socorro dos Atenienses que, entretanto, não só o deram medíocres. Com estes socorros, apossaram-se de Sardes e a incendiaram. Dario, compreendendo a parte que os Atenisenses tinham tido na tomada e no incêndio desta cidade, jura vingar-se. Começa por colocar novamente sob jugo os Iônios. Submetidos os Iônios, envia contra os Atenienses um exército formidável. Os Persas foram batidos em Maratona. Com esta notícia, Dario, furioso, fez preparativos ainda mais consideráveis. Nestes entretantos, tendo o Egito se sublevado, era necessário reduzi-lo. A revolta do Egito apenas suspendeu a vingança de Dario. Logo que este país foi submetido, retomou o desejo de castigar os Atenienses; mas sua morte, que sobreveio logo depois, suspendeu sua execução. Xerxes, seu filho e sucessor, que não era nem menos ambicioso nem menos vingativo que seu pai, não contente de castigar os Atenienses, queria também subjugar o resto da Grécia. Resoluto a marchar em pessoa contra os Gregos, levantou o exército mais numeroso e mais formidável de que se ouviu falar. Equipou uma frota considerável, e durante diversos anos não se ocupou senão em fazer transportar para as cidades fronteiriças da Grécia os trigo e os víveres necessários à subsistência desta multidão inumerável de homens. Sofreu logo uma derrota nas Termópilas. Tendo sua frota a seguir sido batida em Salamina, voltou vergonhosamente à Àsia; mas, tendo deixado Mardônio na Grécia com a elite de suas tropas, este general, vencido na Plateia, pereceu na ação com a maioria de seu exercito. No mesmo dia da batalha de Plateia, livrou-se em Mícale, na Cária, um sangrante combate. Os Gregos tiveram aí uma vitória significativa.

É aqui que Heródoto termina sua História. Vê-se, por esta curta exposição, que há em todas as partes desta bela obra uma ligação íntima; que não se pode destrinçar nenhuma sem tirar a obscuridade de outras; que nosso historiador caminha com rapidez, e se pára às vezes pelo caminho, é só para administrar (ménager) a atenção de seus leitores, e para instrui-los agradavelmente de tudo o que lhe é importante saber. LARCHER

Por Pierre Henri Larcher

Pierre Henri Larcher (1726-1812), francês, foi um arqueólogo e erudito do século XVIII, nascido em Dijon. Após ter freqüentado um colégio de jesuítas na juventude, seus pais o destinavam a uma carreira na magistratura, mas ele se orientou para as línguas e os escritores da antiguidade.

Apesar de anônima, sua tradução de Callirhoe, de Chariton, em 1763, assinalou-o como um exclente erudito grego. Seu ataque à Filosofia da história, que Voltaire escrevera sob o pseudônimo de Abbé Bazin, suscitou considerável interesse à época. Seu arqueológico e mitológico Memoire sur Venus, de 1775, foi comparada a trabalhos similares de Heyne e Winckelmann.

Traduzido um certo número de obras antigas de autores gregos, tais como Eurípides e Xenofonte. Pela qualidade de seus trabalhos e o renome que adquirira nos estudos clássicoas, foi incorporado à Académie des Inscriptions et belles lettres.

Após a fundação da Universidade Imperial, foi indicado como professor de literatura Grega (1809) tendo Boissonade como seu assistente.
Seu trabalho mais memorável foi a tradução de Heródoto (1786), que levou 15 anos para completar e na qual trabalhou até o fim de seus dias, acrescentando-lhe notas e comparando-a com outras traduções.

Prólogo - Genealogia de Ciro - Livro I

Prólogo - Genealogia de Ciro - Exercícios de cada idade - Ocupação das crianças, dos púberes, dos homens feitos e dos velhos - Ciro parte para a Média com sua mãe - Jovialidade de Ciro - Mandane volta para a Pérsia, deixando seu filho na Média - Caçadas de Ciro - Primeiros feitos militares de Ciro nas fronteiras da Média - Ciro torna para a Pérsia - Ciro é eleito general do exército auxiliar na guerra entre os assírios e Ciaxares, sucessor de Astíages - Longo diálogo entre Ciro e Cambises, durante a marcha até chegar à Média.

Prólogo
Refletimos um dia no grande número de estados populares que sucumbem ao poder dos partidos, no grande número dos partidos, no grande número de monarquias e oligarquias que sucumbem ao poder de partidos democráticos, e também no grande número de reis, que, tendo usurpado o cetro, foram uns imediatamente privados dele, outros, enquanto o empunharam, foram sempre objeto de admiração por sua sabedoria e felicidade. Igualmente notámos que entre os particulares, uns tinham muitos domésticos, outros tinham poucos, e que estes mesmos lhes não obedeciam. Ocorreu-nos enfim, que os boieiros. os eguariços e todos os pastores podem com razão ser considerados como régulos dos animais que estão debaixo da sua guarda. Embebidos nestes pensamentos, observámos que mais prontamente obedecem os animais a seus pastores, do que os homens a seus chefes. Os animais caminham por onde os conduzem, pastam nos campos a que os levam, não entram naqueles de onde os desviam, e consentem que tirem deles todo o proveito. Não consta que jamais houvesse entre eles alguma sedição, ou para não seguir a voz de seus pastores, ou para não consentir que deles se utilizassem. Pelo contrário, a ninguém são mais inclinados, do que aos que os governam e que deles se aproveitam. E que fazem os homens? Esses contra ninguém mais facilmente se levantam, do que contra aquele em quem reconhecem pretensões de governá-los. Portanto, deduzimos destas reflexões que mais facilidade tem o homem em governar os animais do que os próprios homens.
Mas depois que nos recordámos que existiu um persa chamado Ciro, que soube conservar sujeitos ao seu domínio muitos homens, muitas cidades, muitas nações, fomos obrigados a mudar de sentimentos, e a pensar que não é impossível nem difícil governar os homens, uma vez que para isso haja suficiente capacidade. De feito, víamos que de bom grado se sujeitavam ao domínio de Ciro, povos que viviam afastados de seu reino, distâncias de muitos dias e meses, povos que nunca o tinham visto, e povos que nem mesmo esperanças podiam ter de vê-lo: contudo obedeciam-lhe todos prontamente. Grandíssima vantagem levou este príncipe a todos os outros, que, ou ocuparam o trono de seus antepassados, ou o adquiriram por conquista. Os reis da Cítia, da Trácia, da Ilíria e de outras nações, apesar de seus numerosos súditos, nunca puderam alargar seus domínios, e contentavam-se com governar sua gente. Segundo se diz, ainda hoje há na Europa várias nações autônomas, governadas por príncipes independentes.

Sabendo que na Ásia havia nações autônomas, Ciro pôs-se em marcha com um pequeno exército de persas, dominou os medos e hircanos, que espontaneamente receberam o jugo, venceu a Síria, a Assíria, a Arábia, a Capadócia, ambas as Frígias, a Lídia, a Cária, a Fenícia, a Babilônia, a Bactriana, a Índia, a Cilícia, os sacas, paflagônios, megadinos, e outras muitas nações, que seria prolixo mencionar. Subjugou também as colônias gregas da Ásia, e, fazendo uma descida às regiões marítimas, meteu debaixo do seu império Chipre e o Egito. Todas estas nações falavam línguas diferentes entre si, e diferentes da do conquistador; e contudo penetrou Ciro tanto além com suas armas, e com o terror de seu nome, que a todos encheu de medo, nenhuma ousou sublevar-se. E de tal maneira soube captar o amor dos povos, que todos queriam viver sujeitos às suas leis. Finalmente, fez dependentes de seu império tão grande número de reinos, que é dificultoso percorrê-los, partindo da capital para qualquer dos pontos cardeais, para leste ou para oeste, para o norte ou para o sul. Indagaremos, pois, qual foi a origem deste varão extraordinário, qual sua índole, qual sua educação, que o fizeram tão superior na arte de governar. Narraremos o que dele ouvimos, e o que pudemos alcançar por investigação própria.

Genealogia de Ciro
Ciro era filho de Cambises, rei da Pérsia. Este Cambises era da geração dos Perseidas, que se gloriam de descender de Perseu. A mãe de Ciro chamava-se Mandane, era filha de Astíages, rei da Média. Ciro, cujo nome ainda hoje é celebrado pelos bárbaros, era de estatura elegantíssima, de um coração cheio de benevolência, e muito amante da sabedoria e da honra. Para ganhar aplausos, sofria os maiores trabalhos, e arrostava-se com os mais evidentes perigos. Tais foram suas qualidades morais e físicas, que a história nos transmitiu.

Exercícios de cada idade - Ocupação das crianças, dos púberes, dos homens feitos e dos velhos
Ciro foi educado segundo as leis da Pérsia, que todas tendem ao bem comum. Estas leis diferem das por que se regula a maior parte das nações. Na maioria das nações é por lei permitido aos pais darem a seus filhos o gênero de educação que lhes apraz, e chegados os filhos a certa idade, também é lícito a estes viverem independentes. Nestes países só é proibido o furto, o roubo, o entrar violentamente nas casas, os ultrajes injustos, o adultério, a desobediência aos magistrados, e outras coisas tais. O que infringe algum destes artigos, é castigado. As leis dos persas não são assim, tratam de obviar a que logo desde a primeira idade os cidadãos sejam inclinados à dissolução e desonestidade. Eis como elas são dispostas:

Há uma praça chamada Eleutera, onde estão os tribunais e o palácio real. Nela não ficam os vendedores, que com suas vozes, inurbanidades, e ordinária azáfama, confundiriam a regularidade dos exercícios. Esta praça acha-se dividida em quatro repartições: a primeira é para as crianças, a segunda para os púberes, a terceira para os homens feitos, a quarta para os que já não têm idade de militar. Estes indivíduos são obrigados a ocupar suas respectivas classes: as crianças e os homens feitos, todos os dias, logo que amanhece; os velhos só têm obrigação de comparecer em dias marcados, nos outros dias vêm se lhes apraz; os púberes celibatários pernoitam armados em roda dos tribunais; os casados, só por aviso são obrigados a comparecer, ficando todavia mal vistos se fazem longas ausências.

Cada uma destas classes tem doze chefes (pois doze são também as tribos em que a Pérsia se divide). As crianças são governadas por chefes tirados da classe dos anciãos, sendo escolhidos os mais capazes de lhes dar uma educação fecunda. Os púberes são dirigidos por superiores da classe dos homens feitos, havendo cuidado de fazer seleção dos mais idôneos para o bom desempenho de tão importante ministério. Os homens feitos têm chefes da sua mesma classe, sendo escolhidos os mais aptos para sugerir a seus colegas o pundonoroso estímulo de cumprir as obrigações marcadas pelo supremo magistrado. Os velhos também têm um chefe da sua classe, que os contenha em seus deveres. Narraremos, agora, os exercícios de cada uma das idades, para que se veja claramente quão grande cuidado há na Pérsia em fazer bons cidadãos.

Os meninos, que freqüentam esta casa de instrução, aprendem a justiça, e dizem que andam cultivando esta virtude, assim como entre nós dizem que andam aprendendo as letras os meninos que principiam a cursar as escolas. Seus preceptores gastam a maior parte do dia em julgar as acusações, que entre eles como entre os homens, têm lugar, acusações de furto, violência, fraude, ultraje e outras desse gênero. Uma vez verificado que qualquer destes crimes foi cometido sem motivo justificável, uma pena é imposta ao delinqüente; e ao acusador, se provada a injustiça da sua acusação. Aliás castiga, e se castiga com severidade, um crime, o principal causador de ódios entre os homens, a ingratidão. De feito, o rigor da punição é certo, sabido que seja que qualquer deixa de ser grato, podendo sê-lo. Um ingrato é considerado como desprezador dos deuses, dos pais, da pátria, dos amigos. A perda da vergonha, que parece abrir caminho a todos os crimes, é íntima companheira da ingratidão.

Os meninos também aprendem a sobriedade, e nisto são excitados pelo exemplo dos mais velhos, a quem vêem em contínuo exercício desta virtude. Aprendem a obedecer a seus superiores, no que têm um estímulo fortíssimo, vendo os mais velhos obedecerem pontualmente a seus chefes. Aprendem a não ser escravos de suas necessidades estomacais, e para isto concorre poderosamente verem que os mais velhos não saem antes de seus chefes, por causa de satisfazerem tais precisões; também para o mesmo fim concorre não comerem à mesa com suas mães, mas sim com seus mestres, e à hora pelos chefes determinada. De casa trazem o alimento, que consiste em pão, conduto que não passa de mastruço, e uma vasilha para ir ao rio buscar água quando têm sede. Afora tudo isto aprendem a manejar o arco e a seta. Tais são os exercícios das crianças até à idade de dezesseis a dezessete anos. Passam então para a classe dos púberes. Vejamos agora em que consiste o teor da vida destes.

Por espaço de dez anos depois de terem deixado a primeira classe, certo número pernoita, como fica dito, em roda dos tribunais, e isto com dois fins: guardar a cidade e exercitar a temperança. É esta a idade que demanda mais desvelada solicitude. Todo o dia estão prestes a executar as ordens dos magistrados, conducentes ao bem público; e mesmo, se é preciso, passam todos a noite em roda dos tribunais. Quando o rei vai à caça, o que faz amiudadas vezes em cada mês, leva consigo metade da guarda dos púberes; os quais devem ir munidos de arco, aljava, espada na bainha ou machado, escudo, e duas lanças, uma para arremessar, outra para ferir de perto quando for necessário. A caça é um verdadeiro simulacro da guerra; por isso os persas se aplicam publicamente a ela, e o rei, como na guerra, põe-se à testa dos caçadores, ele mesmo caça, e obriga a caçar à sua comitiva. Desta maneira adquirem o hábito de levantar-se de madrugada, de tolerar os frios e as calmas, e se predispõem para as grandes marchas. Quantas vezes é forçoso armar o arco, e despedir a seta, onde quer que o animal apareça? Quantas vezes é preciso que o caçador se encha de denodo, aparecendo um animal feroz? Porquanto umas vezes há de feri-lo, quando vier caminhando contra ele, outras vezes deve pôr-se a coberto de sua investida. Por conseqüência, o exercício da caça é igual ao da guerra em todas as suas partes.

Quando vão para a caça, levam consigo o jantar, que em tudo é semelhante ao dos meninos, sendo porém, como deve ser, mais abundante. Não jantam durante a caça; e se esta se demora, ou por livre vontade, ou porque a isso algum animal os obrigue, o jantar é reservado para a ceia, e no dia seguinte caçam até ao tempo da ceia, sendo estes dois dias contados por um só, porque em um só é consumido o alimento de dois. Desta forma se habituam a não estranhar, quando na guerra se virem obrigados ao mesmo. Os animais mortos na caça lhes servem de conduto; mas se não apanham nenhum animal, não têm mais que mastruço. Ora, se alguém se persuade de que eles comem e bebem sem apetite o mastruço e a água, lembre-se quão agradável é o pão, quando comido com fome, e a água, quando bebida com sede.

Os que ficam na cidade, entretêm-se nos mesmos exercícios da primeira classe, armar o arco, dardejar as setas; o que fazem disputando entre si. Têm também exercícios públicos, nos quais se propõem prêmios. Se se encontra uma tribo, composta de grande número de mancebos bem disciplinados, valorosíssimos e obedientíssimos, os cidadãos elogiam e honram não só seu atual chefe, mas também o que os dirigiu na primeira classe. Os que ficam na cidade são igualmente empregados pelos magistrados em meter guardas, procurar facinorosos, perseguir ladrões, e em outras coisas que requerem força e agilidade. Estes são os exercícios dos púberes. Tendo assim passado dez anos, entram na classe dos homens feitos, onde passam vinte e cinco anos, como vamos dizer.
Primeiro que tudo, do mesmo modo que os púberes, eles estão prontos a receber as ordens dos magistrados, que os empregam nos serviços públicos que já demandam madureza de juízo, e ainda requerem forças corpóreas. Nas expedições militares não vão armados de arco e lança; mas usam armas curtas, uma loriga sobre o peito, um escudo na mão esquerda, tal qual põem na mão dos persas quando os pintam, e uma espada na mão direita. É desta classe que são tiradas todas as autoridades, exceto os mestres das crianças. Passados vinte e cinco anos nesta classe, têm os indivíduos dela mais de cinqüenta, e entram então na classe dos chamados velhos, e efetivamente o são.

Os velhos não militam fora da pátria, e ocupam-se aqui no julgamento das coisas públicas e particulares. Eles têm a faculdade de proferir sentenças de morte, e de eleger todos os magistrados. Se algum indivíduo da segunda e terceira classe infringe alguma lei, é acusado pelos chefes das tribos, ou por qualquer outra pessoa, os velhos tomam conhecimento do crime, e o expulsam. O réu passa coberto de opróbrio o resto de seus dias.

Para mais claramente fazer conhecer o regime governamental dos persas, voltarei ainda um pouco ao mesmo objeto, posto que com suma brevidade, dispensando-nos de larga difusão o que atrás fica dito. Há na Pérsia cento e vinte mil homens, nenhum dos quais é por lei excluído das honras e dignidades, sendo permitido a todos mandar seus filhos às escolas públicas de justiça. Acontece, porém, que os mandam somente aqueles pais que têm posses para sustentá-los nos estudos. Os que têm sido instruídos por mestres públicos nas matérias da primeira classe, podem passar à segunda; e se nesta preencherem todos os preceitos da lei, podem entrar na terceira, e serem admitidos às honras e dignidades, ficando excluídos delas os que não cursaram as duas primeiras classes. Os da terceira classe, que passaram uma vida irrepreensível, entram na classe dos anciãos. Assim é esta última classe constituída por homens sempre tirados de entre os bons.

Tal é o regime governamental com que os persas julgam formar ótimos cidadãos. Ainda hoje eles conservam hábitos que bem testemunham sua frugalidade no comer, e seus esforços na pronta digestão. Entre eles são atos indecorosos cuspir e assoar-se, deixar volatizar os gazes da economia, e até sair do lugar em que se está para urinar, ou para satisfazer qualquer outra necessidade análoga.
Estas as idéias gerais que tínhamos que apresentar a respeito dos persas. Agora narraremos os feitos de Ciro, cuja história empreendemos começando pela sua puerícia.

Ciro parte com sua mãe para a Média - Jovialidade de Ciro
Até à idade de doze anos ou pouco mais, Ciro foi educado segundo os costumes da Pérsia, levando sempre vantagem a seus coetâneos, assim na facilidade com que aprendia, como no tino e varonilidade de suas ações. Depois desta idade, Astíages, atraído pela fama da beleza e boas qualidades de seu neto, desejou vê-lo e mandou chamar sua filha, recomendando-lhe que o trouxesse em sua companhia. Mandane executou as ordens de seu pai. Apenas chegou, e conheceu que Astíages era seu avô, logo Ciro, como um menino naturalmente amigo de seus parentes, o abraçou, como se fora um antigo condiscípulo ou outra pessoa com quem há muito tempo tivesse relações de amizade; e vendo que trazia os olhos arrebicados, e uma cabeleira postiça, conforme o costume dos medos (os medos também usavam capas e vestidos de púrpura, colares e pulseiras em ambos os punhos: pelo contrário os persas em suas casas ainda hoje usam de extrema simplicidade tanto no traje como na comida) vendo-o, digo, assim enfeitado, fitou nele a vista, e disse: "- Minha mãe, quão gentil me parece o avô!" E perguntando-lhe ela qual lhe parecia mais gentil, se seu pai ou seu avô, respondeu: "Minha mãe, meu pai é o mais gentil dos persas, e de todos os medos que vi nas estradas e às portas, meu avô é certamente o mais gentil". Astíages o abraçou, vestiu-lhe uma brilhante capa, e o honrou e enfeitou com colares e braceletes. Quando saía do palácio, consigo levava sempre seu neto, montado, como ele também costumava, em um cavalo com freio de ouro. Ciro, que apesar de seus curtos anos era amante da elegância e da honra, folgava em vestir aquela capa, e sua alegria era desmarcada, quando dava lições de equitação. Na Pérsia é raro ver-se um cavalo, por ser difícil não só criar esta espécie de animais, mas também andar a cavalo, sendo montanhoso o território.

Um dia estavam para cear, Astíages, sua filha e Ciro. Astíages tinha mandado vir para a mesa condutos, molhos e iguarias de todas as qualidades, para que Ciro, comendo com muito prazer, sentisse menos as saudades da pátria.
- Avô - disse Ciro admirando tanta profusão - muito trabalho haveis de ter, se vos for preciso estender os braços para todos estes pratos, e saborear todas estas iguarias.
- Pois esta ceia - disse-lhe Astíages - não te parece melhor que as ceias da Pérsia?
- Não, avô - respondeu Ciro - o caminho por que nós satisfazemos a fome é mais simples e mais reto, sendo-nos bastante para isso pão e carne, enquanto que vós, para o mesmo objeto, vos encheis de fadiga, e, discorrendo por uma e outra parte, apenas chegais onde nós há muito chegámos.
- Mas meu filho - tornou Astíages - esse discorrer, a que aludes, não nos é desagradável. Prova tu, e conhecerás quão saboroso é.
E dizendo-lhe Ciro ter notado que ele mesmo aborrecia os manjares, perguntou-lhe Astíages em que fundava sua conjetura.
- Tenho visto - respondeu ele - que não limpais a mão quando tocais no pão; e quando tocais em alguma destas iguarias, logo a limpais, como aborrecendo-vos tê-la untada com essas mesmas iguarias.
- Visto assim pensares - replicou Astíages - come, meu filho, somente carnes. Não quero que emagreças até voltares ao teu país.
Ao mesmo tempo lhe mandou trazer carnes de feras e de animais domésticos, tudo em grande abundância. Vendo Ciro tanta profusão, exclamou:
- Acaso me dais, avô, tão grande abundância de carnes, para que eu faça delas o que quiser?
Ouvindo uma resposta afirmativa, Ciro principiou a distribuí-las pelos criados de seu avô, acrescentando a cada um deles:
- A ti, porque prontamente me ensinas a andar a cavalo; a ti, porque me deste uma lança, a qual ainda conservo; a ti, porque serves bem meu avô; a ti, porque respeitas a minha mãe.
Desta forma foi continuando a distribuição; até que deu tudo. Astíages tomou então a palavra e disse para seu neto:
- Não dás nada ao meu copeiro Sacas, pessoa que eu tenho em particular estima?
Sacas era um homem gentil, e tinha a seu cargo conduzir ao aposento de Astíages as pessoas que precisavam falar-lhe, e proibir a entrada quando não julgava oportuna a ocasião. Então Ciro, como um menino que nada temia, perguntou arrebatadamente a seu avô por que tinha Sacas em tão grande estima, Astíages respondeu gracejando:
- Não reparas com que perfeição e airosidade ele nos copos derrama o vinho?
De feito, os copeiros dos reis da Média têm certa elegância no exercício de suas funções, lançam o vinho com asseio, e oferecem o copo segurando-o com três dedos somente, de maneira que os que hão de recebê-lo o podem pegar com facilidade.
- Avô - disse Ciro, - ordenai a Sacas que me entregue o copo, para que eu, lançando o vinho com igual perfeição, possa também captar vossa estima.
Astíages consentiu. Então Ciro pegou do copo, levou-o como tinha visto fazer a Sacas, e com ar sério e elegante o ofereceu e entregou a seu avô, tudo isto de maneira que excitou o riso de Astíages e Mandane. E rindo o mesmo Ciro, corre para o avô e entre seus abraços exclama:
- Ó Sacas, estás perdido; privar-te-ei de tuas dignidades. Em tudo serei melhor copeiro que tu, e não beberei o vinho.
Os copeiros dos reis, quando entregavam o copo, segundo o costume, tiravam com uma colher uma pequena porção de vinho, que lançavam na mão esquerda e sorviam. Era isto uma precaução, para que, no caso de terem deitado algum veneno, fossem os primeiros envenenados.
Astíages disse gracejando:
- Por que razão, ó Ciro, imitando Sacas em todas as coisas, só não sorveste o vinho?
- Porque temi - respondeu Ciro - que no copo houvesse veneno misturado. Quando vos banqueteáveis com vossos amigos no dia de vossos anos, eu claramente notei que ele tinha deitado veneno nos copos.
- E como percebeste isso? - perguntou Astíages.
- Percebi-o muito bem - respondeu ele. Todos vós estáveis perdidos de faculdades intelectuais e físicas. Vossas ações eram tão reais, que vós mesmos não consentiríeis que fossem praticadas por crianças. Todos ao mesmo tempo gritavam, não se entendendo uns aos outros. Cantavam ridiculamente e sem ouvirem aquele que cantava, afirmavam com juramento que era um ótimo cantor. Cada um de vós gabava sua força, e quando se levantavam para dançar, não só não dançavam com cadência, mas nem se podiam sustentar em posição vertical. Todos estavam esquecidos, vós de que éreis rei, os demais de que vós éreis seu rei. Foi então que eu, pela primeira vez, aprendi que em tais incurialidades consistia a igual liberdade de falar. Não estáveis calados um momento.
Perguntou-lhe Astíages se seu pai nunca se embriagava, e respondendo ele negativamente, tornou a perguntar-lhe como fazia.
- Satisfaz a sede, respondeu Ciro, e nada mais. Não tem lá um Sacas, como julgo, para lhe deitar o vinho.
Então Mandane tomou a palavra, e perguntou a seu filho por que tratava Sacas tão injuriosamente.
- Porque o aborreço - respondeu Ciro. - Muitas vezes, desejando eu ir ter com meu avô, este mau homem me impediu. Eu peço-vos, avô, que três dias me deixeis ter poder sobre ele.
E perguntando-lhe Astíages que uso faria desse poder, Ciro continuou:
- Pondo-me, como ele, à porta, quando Sacas quisesse entrar para o jantar, dir-lhe-ia: - Ainda se não pode jantar, porque o avô está tratando de negócios importantes com algumas pessoas. Quando viesse para a ceia, dir-lhe-ia: - O avô está agora no banho. Quando viesse com fome, havia de lhe dizer: - O avô está agora com suas mulheres. Assim atormentá-lo-ia, como ele me atormenta, quando não consente que eu vá ao vosso aposento.

Com tais jovialidades de Ciro se passou o tempo da ceia. Nos demais dias, quando seu avô, ou seu tio, queriam alguma coisa, era dificultoso que alguém os servisse primeiro que ele. Tomava Ciro extremo prazer em servi-los no que podia.

Dispondo-se Mandane a voltar para seu marido, pediu-lhe Astíages que deixasse ficar Ciro. Mandane respondeu que em tudo desejava dar gosto a seu pai, mas que lhe custava muito deixar ficar seu filho contra a vontade dele. Então Astíages falou assim a seu neto:
- Meu filho, se ficares comigo, Sacas não há de obstar a que venhas a meu aposento, hás de ter nisso plena liberdade, e minha alegria será à proporção das vezes que vieres visitar-me. Servir-te-ás de meus cavalos e de tudo que te aprouver. Quando saíres, levarás uma comitiva da tua escolha. À mesa, usarás da frugalidade que quiseres. Dou-te os animais que atualmente estão em meu parque; e ajuntarei outros de várias espécies, que tu, logo que saibas andar a cavalo, perseguirás, lançarás por terra, armando o arco, e despedindo a seta, à maneira dos homens crescidos. Dar-te-ei outros meninos que te acompanhem em teus divertimentos. Enfim alcançarás de mim tudo o que me pedires.
Ditas estas palavras, a mãe perguntou a Ciro se queria ficar ou retirar-se. Ele, sem vacilar, respondeu imediatamente que queria ficar. E outra vez perguntando-lhe por que, respondeu:
- Lá na Pérsia, entre os meninos da minha idade sou eu o mais perito em lidar com o arco e setas, e todos como tal me reconhecem. Aqui, entre os mesmos, sou o mais ignorante na arte da equitação. Isto, minha mãe, sabei que me causa grande desprazer. E se aqui me deixardes, e eu aprender a andar a cavalo, quando for para a Pérsia parece-me que hei facilmente de exceder esses mesmos que se distinguem nos exercícios pedestres; e voltando à Média, sendo eu o melhor cavaleiro entre os bons cavaleiros, procurarei acompanhar o avô na guerra.
- Mas meu filho - tornou a mãe - como hás de aprender aqui a justiça, estando lá os mestres?
- Nos preceitos da justiça - respondeu Ciro - estou eu perfeitamente instruído.
- Como assim? - replicou Mandane.
- Meu mestre - instou Ciro - tão cônscio me julgava nos ditames dessa virtude, que chegou a fazer-me juiz de meus condiscípulos. Em certo julgamento eu levei pancadas, por não ter julgado com retidão. 

E foi este o caso: Um menino crescido, que tinha uma capa muito curta, tirou a outro menino menor a capa, que era muito comprida, deu-lhe a sua, e vestiu a dele. Sendo eu o juiz desta pendência, julguei que a ambos convinha ficar com a capa acomodada à sua altura. Por esta sentença castigou-me meu mestre, dizendo que, quando eu fosse juiz de uma causa que versasse em semelhante congruência, assim convinha praticar; mas cumprindo ajuizar quem era o dono da capa, só importava ter em vista determinar quem devia justamente possuí-la, se quem a tinha tirado à força, se quem a tinha feito ou comprado. Disse-me depois que era justo o que estava em conformidade com as leis, e que se reputava violência tudo que a elas se opunha. Ordenava, portanto, que o juiz proferisse a sentença à vista da lei. Assim, minha mãe, conheço perfeitamente os preceitos da justiça; e quando precise de alguma elucidação, aqui está o avô para ma dar.
- Mas olha, filho - redargüiu Mandane - nem todas as coisas que são justas na Média, o são igualmente na Pérsia. Teu avô fez-se senhor de toda a Média; na Pérsia reputa-se justo terem todos igual posse de direitos. Teu pai rege a cidade segundo os ditames das leis, e só recebe o que estas ordenam. A lei, não seus deleites, é quem regula seu governo. Toma conta, não sejas açoitado se tomares à Pérsia com máximas próprias, não de verdadeiro rei, mas de tirano, segundo as quais um só pode assumir todos os direitos.
- Minha mãe - replicou Ciro - vosso pai é capaz de me incutir o sentimento de possuir menos que os outros. Porventura não reparais como ele ensinou todos os persas a possuir menos que ele? Não tenhais medo, pois, que eu ou outro aprenda com ele a ser ambicioso.

Maneira discorria Ciro.
Mandane volta para a Pérsia, deixando seu filho na Média - Caçadas de Ciro
Finalmente a mãe partiu, Ciro ficou e aqui foi educado. Logo Ciro travou relações com os meninos de sua idade, de maneira que vivia entre eles familiarmente. Depressa captou a amizade dos pais, visitando estes e dando mostras da afeição que aos filhos consagrava; de modo que, se queriam algum bom despacho da parte do rei, ordenavam a seus filhos que pedissem a Ciro que o solicitasse. Ciro, como era filantropo e amante da honra, não fazia outra coisa sem obter o que lhe pediam. Astíages não podia deixar de anuir às petições de Ciro. Tinha razões para isso. Durante uma doença de Astíages, Ciro não se retirava um instante de sua companhia, chorando incessantemente, e temendo muito sua morte. De noite, se Astíages chamava alguém, Ciro era o primeiro que ouvia, o primeiro que corria a servir o seu avô. Desta sorte ganhou radicalmente sua amizade.

Talvez alguém tache Ciro de nimiamente loquaz: mas devemos advertir que isto procedia de seus mesmos exercícios escolásticos; pois era por seu mestre obrigado não só a dar conta de seus estudos, mas também a ouvir os outros em suas contendas. Demais, como era muito amigo de aprender, fazia muitas vezes perguntas a seus condiscípulos, e às que eles lhe faziam, como era mui vivo de engenho, respondia rapidamente. Por estes motivos parecia falar demasiadamente. Mas assim como nos meninos que prematuramente têm ganhado certa estatura se descobrem todavia sinais infantis que acusam seus poucos anos, assim também a loquacidade de Ciro não era sinal de amor-próprio, mas candura e desejo de agradar a seus mestres. Assim antes queriam ouvi-lo falar muito do que vê-lo calado. Mas à medida que ia entrando na idade da puberdade, seus discursos eram mais breves, mais baixa sua voz. Encheu-se de tal timidez que na presença das pessoas mais velhas subia-lhe à face o rubor. Já não tinha aquela liberdade que induz a ter entrada em toda parte. Tornou-se, portanto, mais circunspecto, e nas conversações fez-se geralmente agradável. Nos diversos objetos sobre que os mancebos da mesma idade costumam muitas vezes disputar entre si, não escolhia aqueles em que sabia que levava vantagem, mas aqueles relativamente aos quais reconhecia sua própria inferioridade, asseverando sempre que venceria seus antagonistas. Não podendo ainda sustentar-se muito bem sobre o cavalo, ele era todavia o primeiro a montar, e mesmo montado entesava o arco e disparava a seta. Quando era vencido, ele principalmente ria da sua derrota. Como não recusava entrar segunda vez nos mesmos certames em que fora vencido, procurando então portar-se com mais destreza, depressa conseguiu igualar os da sua idade na arte de andar a cavalo, e por sua assiduidade não tardou a excedê-los. Em breve fez desaparecer da tapada os animais, perseguindo-os, ferindo-os e matando-os; de maneira que Astíages não podia já reuni-los. Ciro, conhecendo que Astíages, apesar do seu desejo, não podia dar-lhe animais para caçar, repetidas vezes lhe dizia:
- Meu avô, para que tendes trabalho em andar buscando animais para eu caçar? Se me deixardes ir à caça com o tio, quantos animais vir suporei que os criais todos para mim.
Mas Ciro, ainda que desejasse ardentemente ir à caça fora da tapada, não insistia com seu avô como costumava fazer na infância; visitava-o menos vezes; de maneira que naquilo mesmo em que ele antes censurava Sacas, por este lhe vedar a entrada, se havia tornado para si próprio um novo Sacas. Não ia ter com seu avô sem primeiro saber se era ocasião oportuna, e pedia muito a Sacas que o avisasse de quando a ocasião era efetivamente oportuna e quando não. Desta maneira Sacas, assim como todos, o amava afetuosamente.

Notando Astíages que Ciro desejava ardentemente ir caçar fora da tapada, o deixou ir acompanhado de seu tio e de outros cavaleiros mais velhos, que o desviassem dos lugares perigosos e dos animais bravios. Ciro cuidadosamente perguntava a seus companheiros de que animais não devia aproximar-se, e quais podia perseguir com confiança. Os companheiros lhe diziam:
- Muitos caçadores, por se aproximarem de ursos, leões, javalis e onças, têm sido vítimas de sua ferocidade: mas são inofensivos os veados, as cabras, as ovelhas e asnos selvagens. Também há lugares tão perigosos que não requerem menos cautela que as mesmas feras. Muitos caçadores com os próprios cavalos têm sido abismados em precipícios.

Ciro prestava atenção a estas coisas; mas logo que viu pulando uma corça, esquecido de tudo que acabava de ouvir vai em seu seguimento, só olhando para o caminho que ela tomava: o cavalo, saltando, ajoelha, e pouco faltou para lançá-lo em terra. Ciro susteve-se com dificuldade, o cavalo levantou-se, e ele entrou na planície, disparou a seta e matou a corça, que era animal formoso e corpulento. Ciro ficou muito alegre. Os companheiros, caminhando para ele, o censuraram, representaram-lhe o perigo a que se tinha exposto e o ameaçaram de acusá-lo ao avô. Ciro, tendo-se apeado, conservava-se em pé, e ouvia com pesar esta repreensão. Nisto ouve um grito, monta a cavalo como fora de si, vem um javali correndo para ele, sai-lhe ao encontro, e com tanta destreza lhe arremessa a lança, que lhe acerta na fronte, e a presa é sua. O tio repreendeu sua temeridade; mas apesar de repreendido, Ciro pedia a concessão de oferecer a presa a seu avô.
- Mas se ele souber - disse o tio - que tu perseguiste uma fera, não é a ti só que há de increpar, mas a mim também, por ter consentido.
- Se for de sua vontade - disse Ciro - castigue-me, muito embora, depois de eu lhe oferecer a presa. Vós mesmo, se quiserdes, podeis castigar-me, conquanto que me concedais o que peço.
- Faze o que quiseres - disse-lhe afinal Ciaxares. Tu já pareces nosso rei.
Ciro mandou levar os dois animais, e os apresentou a seu avô, dizendo-lhe que para ele os tinha caçado. Não lhe mostrou as setas ensangüentadas, mas pô-las onde julgava que ele havia de vê-las.
Meu filho - disse Astíages - com satisfação recebo o que me ofereces; mas não tenho precisão destas coisas para que tu por minha causa te exponhas a perigos.
- Se não tendes precisão - replicou Ciro - deixa-me repartir estes animais por meus camaradas.
- Reparte - tornou Astíages - por quem quiseres, não só estes animais, mas tudo que for da tua vontade.
Ciro principiou a distribuição, dizendo:
- Camaradas, notai quão frivolamente nos entretínhamos, quando íamos à caça dos animais do parque. Era o mesmo que caçar animais que estivessem atados. Um espaço mui pequeno, animais fracos e cheios de lepra, uns coxos, outros estropiados. Nos montes e nos prados, que belos animais aí aparecem, tão corpulentos, tão nédios! As corças são como pássaros, saltam até às nuvens. Os javalis, como se diz dos homens valentes, acometem de perto: sua corpulência não deixa errar o golpe. A mim, mesmo mortos me parecem mais belos que vivos os que estão encerrados na tapada. Mas acaso permitirão vossos pais que vades a uma caçada?
- Por certo - responderam eles - se Astíages o ordenar.
- Mas quem há de ir falar a Astíages? - tornou Ciro.
- Quem melhor que tu - tornaram eles - o pode persuadir?
- Eu - instou Ciro - não sei que diferença sinto em mim. Não posso falar a meu avô nem olhar para ele como dantes. Receio mesmo, se assim for crescendo, tornar-me inteiramente covarde e imbecil. Quando eu era menor parecia muito falador.
A isto responderam eles:
- Não tens razão no que dizes, pois tu não podes fazer nada a nosso favor, e nós havemos de pedir a outro o que te compete pedir?
Ciro irritou-se com estas palavras, saiu em silêncio, exortando-se a ser animoso, e pensando como havia de falar a seu avô sem lhe causar desgosto, para obter sua permissão. Entrou e lhe falou nestes termos:
- Dizei-me, avô, se um escravo vos fugir, e vós o apanhardes, que lhe fareis?
- Que outra coisa lhe hei-de fazer? - respondeu ele. - Prendo-o e obrigo-o a trabalhar.
- E se voluntariamente vier apresentar-se - tornou Ciro, - que lhe haveis de fazer?
- Açoito-o - respondeu ele - para que não reincida no crime, e depois sirvo-me dele como antes.
- Então - tornou Ciro - disponde-vos para me irrogardes esse castigo. Tenho tenção de fugir, levando à caça meus camaradas.
- Avisaste a tempo - replicou Astíages - proíbo-te que saias daqui. Seria mui decente que eu, por causa de bocadinhos de carne, fizesse andar errante um filho de minha filha!
Ciro sujeitou-se a esta proibição e deixou-se ficar, mas triste, com aspecto carregado e em silêncio. Astíages, que notou sua grande tristeza, quis dar-lhe gosto e saiu a uma caçada. Congregou muitos infantes e cavaleiros, e também meninos, fez conduzir os animais para lugares onde era fácil o exercício da equitação, e houve uma grande caçada. Astíages estava presente com todo o aparato régio, e não consentia que alguém ferisse sem que Ciro estivesse farto de ferir. Esta exclusão não agradou a Ciro.
- Meu avô - disse ele - se quereis que eu cace com prazer, consenti que todos que me acompanham persigam e contendam cada um como puder.
Astíages dá seu consentimento e, tomando certa posição, dela observava os combatentes, que cheios de emulação perseguiam os animais e despediam as setas. Astíages notava com prazer os movimentos de Ciro, que cheio de alegria não se calava um momento, e, à maneira de um cão valente, gritava ao aproximar-se dos animais, e animava os companheiros, chamando-os pelos seus nomes. Também lhe era agradável ver seu neto, ora rindo-se de um, ora elogiando outro, tudo sem sombra de ciúme. Finalmente, tendo já muita caça, Astíages retirou-se. E foi tão grande o prazer que teve neste dia, que, sempre que tinha ocasião, voltava ao mesmo divertimento acompanhado de Ciro, levando grande número de caçadores e meninos, para que seu neto se divertisse mui jucundamente. Assim passava Ciro a maior parte do tempo, dando a todos ocasião de prazer e benefício, a ninguém de desgosto.
Primeiros feitos militares de Ciro nas fronteiras da Média

Era Ciro chegado aos quinze ou dezesseis anos. O filho do rei dos assírios, que estava para casar, desejou por este tempo ir a uma caçada, e ouvindo dizer que nas fronteiras que confinavam com a Média havia muita caça por causa da guerra não ter permitido as explorações dos caçadores, escolheu estes lugares. Trazia para segurança muitos cavaleiros e peltastas, que sacudissem os animais das brenhas para as planícies. Chegando ao pé dos castelos, aqui ceou, com tenção de caçar na manhã seguinte. Pela tarde chegou da cidade a guarda composta de cavaleiros e infantes, que vinha render a guarnição dos castelos. Parecendo ao príncipe possuir aqui um grande exército, que se compunha das duas guarnições e da gente que consigo tinha trazido, assentou que era muito acertado saquear o território da Média, pensando que isto seria uma ação de mais lustre do que uma partida de caça, e que por ela apanhariam animais em grande cópia. Rompe a manhã, levantado o príncipe, marcha à frente do exército, deixa nas fronteiras a infantaria, que era muita, caminha com a cavalaria para os castelos da Média, e fica neste lugar com grande número dos melhores cavaleiros, para impedir que o presídio saísse contra os que fossem correndo de tribo em tribo, uns por uma parte, outros por outra, com ordem de apoderar-se de tudo que encontrassem e trazê-lo à sua presença.

Davam à execução esta ordem, quando Astíages foi noticiado de terem entrado inimigos em seu país. Logo ele com sua guarda acode às fronteiras, acompanhado de seu filho e dos cavaleiros que pôde ajuntar e a todos os outros deixava ordenado que acudissem. À vista dos soldados assírios postados em ordem de batalha, e da cavalaria em descanso, os medos fizeram alto. Ciro, que observava os preparativos bélicos, acode também, vestindo primeiro suas armas, persuadido que nunca as vestiria. Tão ardentemente esperava ocasião de fazer uso delas! Era uma armadura muito elegante, que seu avô lhe tinha mandado fazer muito apropriada ao corpo. Assim armado montou a cavalo, e pôs-se a caminho. Astíages, vendo-o, admirou-se, não podendo conjeturar quem o tivesse exortado a vir ter com ele. Disse-lhe contudo que se deixasse ficar. Ciro, tendo à vista grande número de cavaleiros, disse para Astíages:
- Avô, porventura são inimigos todos aqueles que estão imóveis sobre seus cavalos?
Astíages respondeu afirmativamente, e Ciro tornou a perguntar:
- E também aqueles que andam correndo?
- Também, - respondeu ele.
- Oh! pois gente que parece tão covarde e que vem tão mal montada, atreve-se a saquear os nossos territórios! É preciso que alguns de nós corram sobre eles.
- Mas filho, não vês quão numeroso é o esquadrão de cavalaria? Se marcharmos contra ele, seremos cortados. Ainda não temos bastante forças.
- Mas se vos deixardes aqui ficar - redargüiu Ciro - com as tropas que vêm chegando, esse esquadrão encher-se-á de terror, e não fará movimento algum; enquanto que, os que andam pilhando, largarão a presa, apenas virem correr sobre eles.
Estas reflexões não pareceram desarrazoadas a Astíages.
Astíages, admirado do seu bom juízo e penetração, ordena a seu filho que com uma manga de cavaleiros vá dar sobre os que levam as presas, e diz:
- Contra estes marcharei eu mesmo, se contra ti fizerem algum movimento: e desta sorte atrairei sobre mim sua atenção.

Ciaxares pôs-se em marcha à testa da melhor cavalaria. Ciro ouvindo isto, rompe também a marcha e coloca-se na vanguarda. Ciaxares o segue e os outros igualmente. À sua aproximação, os que andavam saqueando largaram a presa e fugiram. Os que iam sob o comando de Ciro cortaram os fugitivos e feriam quantos lhes caíam nas mãos, sendo Ciro o primeiro a dar o exemplo. Os que escapavam, eram perseguidos até serem alguns deles aprisionados. Assim como um cão valente, mas falto de experiência, inconsideradamente se arremessa sobre o javali, também Ciro a nenhuma outra coisa atendia senão a ferir o que lhe caía nas mãos.

Os inimigos, observando o perigo de seus camaradas, fizeram avançar o esquadrão, esperando fazer cessar a perseguição. Ciro, sem desistir, chamava repleto de alegria, em altas vozes, por seu tio; continuou a perseguição, e pôs os inimigos em desatada fuga. Ciaxares o seguia, talvez com algum receio de ser repreendido por seu pai. Todos os outros seguiam seu exemplo, mais numerosos agora no alcance do que tinham sido na ocasião do combate.

Astíages, vendo que suas tropas perseguiam temerariamente, e que os inimigos apinhados corriam para elas em boa ordem, teve medo que alguma desgraça acontecesse a seu filho e a Ciro, se estes com soldados em má ordem se lançassem sobre tropas bem preparadas, e sem dilação se encaminhou para os inimigos. Estes, vendo que os medos entravam em movimento, enristaram lanças, entesaram arcos, e fizeram alto, esperando que eles fizessem o mesmo, quando chegassem a tiro de seta, como quase sempre costumavam. Até este tempo, quando estavam muito perto, arremetiam uns contra os outros, e muitas vezes até à boca da noite arrojavam seus dardos. Os assírios, logo que viram os seus correndo em fuga para o grosso do exército, perseguidos pelos soldados de Ciro, e já a tiro de seta a cavalaria comandada por Astíages, desviam-se e fogem; mas sendo perseguidos pelas forças reunidas dos medos, muitos ficaram prisioneiros. Os medos feriam tudo que apanhavam, homens ou cavalos; matavam os que caíam: e só cessou a perseguição quando chegaram à sua infantaria os assírios, receosos de alguma emboscada. Astíages voltou muito satisfeito com a vitória eqüestre, que acabava de ganhar, mas não sabendo o que havia de dizer a Ciro; porque se este devia ser elogiado, por ser o verdadeiro autor do bom êxito do combate, não podia deixar de ser censurado, pela temeridade com que nele se tinha havido.

Com efeito, retiraram-se as tropas para a cidade, e ele só se deixou ficar no campo de batalha; e montado a cavalo andou contemplando os mortos. Os enviados de Astíages com dificuldade o desviaram deste espetáculo, e o conduziram à sua presença; aqui Ciro deixou-se muito atrás deles, porque em seu avô notava sinais de pouca satisfação ao vê-lo.
Tal foi a vida de Ciro durante sua estada na Média. Por toda parte se falava de Ciro; em todas as conversações, em todas as cantigas entrava o nome de Ciro. Ciro, que ao princípio era o objeto das complacências de seu avô, tornou-se depois o alvo de suas admirações.

Ciro torna para a Pérsia
Cambises folgava com as notícias que tinha de seu filho, e informado de suas ações, já próprias de um homem, o mandou chamar, para acabar de se instruir nos costumes da Pérsia. Conta-se que, nesta ocasião, disse Ciro que queria partir, para não dar desgostos a seu pai e não incorrer na censura de seus compatriotas. Astíages, obrigado a dar seu consentimento, deu-lhe os cavalos que ele mesmo escolheu, e, feitos todos os necessários preparativos, o deixou partir. Astíages, além do afeto que lhe consagrava, nutria-se de grandes esperanças de que ele havia de ser o sustentáculo de seus amigos, o flagelo de seus adversários.
Todos acompanharam Ciro, meninos, mancebos, homens, velhos e o mesmo Astíages, tudo a cavalo; e dizem que nenhum voltou sem lhe correrem as lágrimas Ciro também se apartou debulhado todo em pranto, e por seus coetâneos distribuiu muitos presentes dos que Astíages lhe havia dado, e uma capa, que trazia vestida, doou a um deles, asseverando que o tinha em particular estima. Os que tinham sido brindados, entregaram os presentes a Astíages, que os tornou a mandar a Ciro. Ciro outra vez os enviou à Média, com estas palavras:
- Avô, se quereis que não volte à vossa corte cheio de opróbrio, consenti que cada um possua as dádivas com que os presenteei. Astíages a tudo anuiu.

Ciro é eleito general do exército auxiliar na guerra entre os assírios e Ciaxares, sucessor de Astíages
Ciro, quando voltou à Pérsia, ainda passou um ano na classe das crianças. Seus companheiros, ao princípio, zombavam da sua vida efeminada, que ele na verdade tinha adquirido na Média; mas quando viram que se acomodava com o alimento e bebida de que eles usavam, e que, se em certos dias de festa havia algumas iguarias mais delicadas, longe de achar seu quinhão demasiadamente módico, pelo contrário ainda repartia com os outros; enfim, quando o reconheceram em tudo superior, olhavam para ele com admiração. Terminado este curso, passou à classe dos púberes, e ali se distinguiu por sua aplicação aos diversos exercícios, por sua paciência, pelo respeito aos anciãos e pela submissão aos magistrados.

Entretanto morreu Astíages. Ciaxares, seu filho, e irmão da mãe de Ciro, começou a reinar na Média. Ao mesmo tempo o rei da Assíria, depois de ter vencido a nação dos sírios, sujeitado o rei da Arábia, submetido os hircânios, invadido a Bactriana, persuadiu-se que facilmente subjugaria todos os povos circunvizinhos, se enfraquecesse os medos, que lhe pareciam ser os mais poderosos. Enviou logo embaixadores aos príncipes e povos seus tributários, a Creso, rei da Lídia, ao rei da Capadócia, aos habitantes das duas Frígias, aos cários, paflagônios, índios e cilícios. Encarregou-os de espalharem más informações dos medos e persas, de representarem que estas duas nações, numerosas e opulentas, sendo amigas e unidas por casamentos recíprocos, era de temer que chegassem, se se lhes não fizesse oposição, a esmagar as outras, atacando-as sucessivamente. Todos se ligaram com ele, uns levados por estas considerações, outros seduzidos pelos presentes e pelo ouro do rei da Assíria, príncipe muito rico. Logo que Ciaxares, filho de Astíages, foi informado dos desígnios e preparativos da aliança, não se descuidou pela sua parte para se pôr em estado de defesa. Enviou aos persas, e ao rei Cambises, seu cunhado, um mensageiro com ordem expressa de falar a Ciro, e pedir-lhe que, se os persas dessem tropas aos medos, solicitasse o comando delas.

Ciro, depois de ter passado dez anos na classe dos púberes, entrou na dos homens feitos. Foi eleito pelos senadores general das tropas que deviam marchar para a Média, posto que ele aceitou. Permitiram-lhe que se associasse com duzentos homotimos, cada um dos quais teve a liberdade de agregar a si outros quatro cidadãos da mesma ordem, o que formou um número de mil. Demais, foi permitido a cada um dos mil homotimos, que escolhesse na classe inferior, dez peltastas, dez atiradores de funda e dez besteiros: o que fazia ao todo dez mil besteiros, dez mil peltastas e dez mil atiradores de funda, não contando os mil homotimos.

Tal era o exército confiado a Ciro. Logo que foi nomeado, seu primeiro sentimento foi para com os deuses. Fez sacrifícios debaixo de felizes auspícios, e tomou depois seus duzentos homotimos, que por seu turno escolheram quatro de seus iguais. Tendo todos reunidos, lhes dirigiu este discurso:
- "Meus amigos, não é só de hoje que vos conheço; eu vos escolhi por vos ter visto, desde a vossa infância, tão constantes em observar o que entre nós é havido por honesto, como fiéis em vos absterdes do que o não é. Vós ides saber por que motivos eu aceitei o comando, e por que eu vos ajunto aqui. Sei que nossos antepassados não nos eram inferiores, e que nenhuma virtude lhes era estranha; mas não vejo que vantagem tirassem disso eles ou a república. Entretanto parece-me que não se pratica a virtude senão para ter melhor sorte do que aqueles que a desprezam. Quem se priva de um prazer presente, não o faz com o sentido de não gozar dele jamais; pelo contrário, é a fim de preparar-se, mesmo por esta privação dos gozos mais vivos, para outro tempo. Quem aspira a brilhar na carreira da eloqüência, não tem por fim estar sempre a falar; espera que, adquirindo o dom de persuadir, será um dia útil à sociedade. O mesmo acontece àquele que se dedica às armas. Não é para combater sem descanso que se entrega a penosos exercícios; fia-se em que, tornando-se hábil guerreiro, ganhará glória, honras e prosperidade. Se entre estes homens se encontra algum, que depois de longos trabalhos envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles, compará-lo-ei ao lavrador, que, zeloso de sua profissão, semeia e planta com o maior cuidado, e que depois, em lugar de colher seus grãos e apanhar seus frutos na estação própria, deixá-los-ia cair por terra; ou a um atleta que, depois de se ter laboriosamente exercitado, e estar em estado de merecer o prêmio, não entrasse na arena: parece-me que se poderia, sem injustiça, chamar-lhes loucos.

"Amigos, nunca nos aconteça tal desgraça: e já que a consciência nos diz que temos, desde a infância, adquirido o hábito da coragem e da virtude, vamos ter com o inimigo, que eu sei, pelo ter visto de perto, ser incapaz de nos resistir. Sabei que não se pode jamais aplicar o epíteto de bom guerreiro àquele que, apenas sabendo com destreza vibrar um arco, despedir uma seta, guiar um cavalo, desanima quando a guerra demanda maior atividade, não podendo suportar trabalhos que o oprimam: nem tampouco compete este epíteto àqueles que se deixam vencer do sono, quando todas as circunstâncias da guerra altamente pedem que esteja alerta. Neste mesmo caso estão os nossos adversários, que até ignoram o modo por que hão de comportar-se para com os aliados e para com os inimigos, e absolutamente desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantíssima arte da guerra. Vós, pelo contrário, estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia, considerais os trabalhos como meios de tornar agradável a vida, e a fome é o vosso conduto: excedeis os leões no apetite com que bebeis água. Em vossas almas se acha enraizado o sentimento mais belo e mais proficiente na guerra, qual é o desejo de glória, que a tudo antepondes; porquanto, quem aspira à aquisição de glória, constitui-se rigorosamente na obrigação de sujeitar-se às mais incomportáveis fadigas, e de arrostar os mais iminentes perigos. Toda esta exposição é a mais exata expressão da idéia que concebo de vós; aliás iludia-me a mim mesmo; porque, se o resultado desta expedição não coincidir com o que me assegura vossa intrepidez, todo o dano recairá sobre mim. Porém minha experiência, a afeição que me consagrais, e a pouca disciplina dos inimigos, me asseguram que não serão frustradas minhas esperanças. Partamos portanto confiadamente, já que estamos longe de nos persuadirmos de que injustamente desejamos tomar posse do que não nos pertence. Agora os inimigos se aproximam, sendo eles os que romperam as hostilidades, e nossos aliados imploram nosso socorro. Que ação há pois mais justa do que rechaçar os adversários, e mais louvável do que auxiliar os amigos? Ainda tendes um motivo mais poderoso para estardes em plena confiança, saberdes que empreendi esta expedição não prescindindo dos votos às divindades, que são sempre o objeto por onde começo em todas as empresas, quer as grandes quer as pequenas. Que mais é preciso dizer? Ide escolher e reunir os soldados; depois dirigi vossa marcha para a Média. Eu primeiramente vou ter com meu pai, depois partirei, para que quanto antes me informe das circunstâncias dos inimigos, faça os preparativos que puder, e mui galhardamente pelejeis com o socorro da divindade."
Todos trataram de executar suas ordens.

Longo diálogo entre Ciro e Cambises, durante a marcha até chegar à Média
Ciro chegou ao palácio, dirigiu suas adorações a Vesta, Júpiter e outras divindades tutelares, e foi juntar-se ao exército, na companhia de seu pai. Logo que saíram as portas do palácio, sentiram relâmpagos e trovões, como sinais precursores da boa fortuna da expedição. Animados por estes sinais, que eles julgavam ser do deus máximo, cujos prodígios são sempre claros, foram caminhando sem mais agouros.

Durante a marcha, Cambises fez a seu filho este arrazoado:
- Meu filho, que os deuses te acompanham propícios e benignos, claramente se vê nos sacrifícios e sinais celestes. Isto mesmo tu deves conhecer, porque já de propósito eu te instruí em todas estas coisas, para que não precisasses de recorrer a outros intérpretes para saber os desígnios das divindades; mais, para que vendo e ouvindo os prodígios, penetrasses esses desígnios sem recorrer aos adivinhos, que, se quiserem, te podem enganar, prognosticando coisas diversas das que os deuses anunciam. Também para que, sucedendo não teres adivinho, não ficasses perplexo à vista dos prodígios. Enfim, para que instruído da vontade dos deuses por meio da arte dos agouros, desempenhes teu dever para com eles.

- Meu pai - disse Ciro - para que as divindades queiram sempre dar-nos conselhos salutares, eu empregarei, quanto estiver em mim, todo o cuidado de aproveitar-me de vossos preceitos. Lembra-me de vos ouvir dizer que quem dirige suas preces aos deuses, como também aos homens, mais facilmente ganha os efeitos de sua benevolência suplicando no tempo da prosperidade, do que adulando na adversidade. Também dizeis que para com os amigos devia haver o mesmo comportamento.
- Procedendo assim, meu filho, confiadamente apresentas tuas súplicas perante os deuses, e esperas ser ouvido, porque tua consciência te está dizendo que nunca os desprezaste.
- Meu pai, estou possuído do sentimento de que os deuses me são propícios.
- Lembras-te ainda, meu filho, daquela doutrina em que ambos concordávamos, isto é, que as concessões dos deuses são mais facilmente obtidas pelo sábio do que pelo ignorante; que o homem laborioso tira mais resultado de seu trabalho do que o negligente; que o cuidadoso vive com mais seguridade que o desacautelado, e que sem sermos pontuais na prática dos nossos deveres não devemos ir implorar sua proteção?
- É verdade - respondeu Ciro - lembra-me muito bem, e com tal doutrina jamais eu deixaria de concordar. Igualmente vos ouvia dizer repetidas vezes que não é justo que um ignorante na arte de equitação peça aos deuses uma vitória eqüestre, que o que não sabe vibrar um arco peça para vencer neste objeto o que nele se instruiu; para salvar um navio, o que não sabe a arte de marear; para colher bom trigo, sem ter semeado; para que o livre dos perigos da guerra, o que não toma as necessárias precauções. Acrescentáveis que tais súplicas eram contrárias às leis divinas, e que tais suplicantes não deviam ser ouvidos pelos deuses, assim como também os homens não deferem a petições ilegais.
- Esquecias-te, meu filho - tornou Cambises - daquilo sobre que um dia eu e tu raciocinávamos, isto é, que devia ser tido na conta de homem abalizado aquele que com procedimento virtuoso provia abundantemente sua família das coisas necessárias à vida; e que se tal homem, por assim comportar-se, se fazia credor dos maiores elogios, devia ser objeto da maior admiração aquele que, governando os outros homens, lhes fornecesse cópia de todo o necessário, e os contivesse no círculo de suas obrigações?
- Lembro-me muito bem. Eu tinha a mesma opinião, que saber governar bem era uma virtude muito recomendável; e ainda hoje penso do mesmo modo, quando contemplo com madureza a arte de governar. Mas quando lanço a vista e considero os outros povos, seus chefes, seu atrevimento de voltar as armas contra nós, parece-me vergonhoso temer tal gente, e recusar cometê-la. Todos eles, principiando pelos nossos aliados, estão persuadidos que os reis devem diferir dos súditos, em comer mais suntuosamente, possuir maiores riquezas, dormir mais e trabalhar menos. Eu, pelo contrário, estou na persuasão de que a diferença de um chefe de estado a respeito de seus súditos está não nas comodidades da vida, mas em sua vigilância e amor do trabalho.
- Mas, filho, há certas dificuldades que dependem não dos homens, mas da mesma natureza das coisas, e que com custo se vencem. Por exemplo, tu sabes que, se faltarem os víveres ao exército, teu mando sobre ele cedo acabará.
- Ciaxares prometeu fornecer vitualhas a todas as tropas que daqui forem.
- Tu vais confiado no dinheiro de Ciaxares?
- Vou.
- E sabes o estado de suas finanças?
- Não.
- Então depositas tua confiança em uma coisa de que não tens verdadeiro conhecimento? Não sabes que tens de prover a muitas precisões, e que agora mesmo és compelido a fazer muitas e diversas despesas?
- Bem sei disso.
- Ora, se faltar dinheiro a Ciaxares, ou se ele não quiser cumprir a palavra que te deu, que acontecerá a teu exército? Por certo que não há de passar bem.
- Mas se vós conheceis, meu pai, algum meio que esteja ao meu alcance para remediar tais necessidades, declarai-o enquanto estamos em terras aliadas.
- Perguntas, filho, se tens algum meio ao teu alcance? Pois ao alcance de quem há de estar a maneira de municionar um exército, senão do que tem as rédeas do comando? Tu levas da Pérsia um exército de infantaria tão valoroso que não o trocaras por outro muito maior. Com ele juntar-se-á a cavalaria dos medos, a melhor que se conhece. Qual das nações circunvizinhas deixará de obedecer-vos, querendo atrair vossa afeição, e receando alguma calamidade? Em tuas públicas conferências com Ciaxares tem sempre em vista o municiamento do exército. Mesmo para exercício dos soldados é bom empregá-los na aquisição das munições. E lembra-te principalmente deste meu conselho: que não é quando urge a necessidade que deves entender nas provisões; mas enquanto tiveres abundância de mantimentos, vai-te sempre prevenindo para o tempo de escassez. Serás mais facilmente atendido em teus pedidos se conhecerem que estás bem aprovisionado, e teus soldados não terão razão de se queixarem. Além disto serás mais respeitado, tuas tropas obedecer-te-ão de melhor vontade, ou tu queiras destruir algum inimigo, ou favorecer algum aliado; sabe que teus discursos terão maior grau de confiança quando puderes mostrar que tens forças bastantes para fazer bem e mal.
Ciro replicou:
- Não só, meu pai, tem sólido fundamento o que acabais de dizer-me, mas também é certo que os soldados não têm que agradecer-me o soldo que hão de receber; e como sabem as condições com que Ciaxares os chama em seu auxílio, tudo o que receberem além do que foi estipulado será havido por eles como galardão de seus serviços; e será mui grande seu reconhecimento. Um general que tem às suas ordens um exército com que pode retribuir os favores de seus amigos, tentar tirar vingança de seus inimigos, e não cura de aprovisioná-lo, pensai vós que é digno de menor vitupério do que um lavrador que tendo terras e trabalhadores com que as amanhe, as deixa ficar de pousio? De mim podeis conservar o sentimento de que nunca hei-de ser negligente no aprovisionamento do exército, quer em territórios aliados, quer em inimigos.
- Lembras-te, meu filho, das outras coisas que nos parecia de grave importância não perder de vista?
Ciro respondeu neste teor:
- Muito bem me recordo. Um dia em que eu vos fui pedir dinheiro para pagar ao mestre, que dizia ter-me instruído na ciência de general, vós mo destes, e comigo tivestes este diálogo: - "Teu mestre deu-te alguma lição de economia doméstica, visto que os soldados em um exército não têm menos necessidade do que os domésticos em sua casa? - Não. - Deu-te alguma lição acerca do modo de conservar a saúde e o vigor dos soldados, pedindo isto a atenção do general tanto como a estratégia propriamente dita? - Não. - Ensinou-te a maneira de adestrar os soldados nos exercícios bélicos? - Não. - Ensinou-te a infundir coragem às tropas, sendo a coragem o que constitui a principal diferença dos exércitos? - Não. - Fez-te algum discurso a respeito do método de conter os soldados nos limites da obediência? - Não. - Então em que te instruiu teu mestre, para dizer que te ensinou a ciência de um general? - Ensinou-me a tática militar. - Olá, a tática militar! De que utilidade será a tática militar, sem provisões, sem saúde, sem saber as invenções da arte na guerra, sem obediência dos soldados! A tática é um pequeno ramo da ciência de um general. - Podeis vós - perguntei eu - ensinar-me todas essas coisas? - Vai ter com pessoas instruídas nestas matérias, e sobre cada uma delas escuta seus discursos." Nós tivemos este diálogo e depois deste tempo freqüentei pessoas que tinham fama de versadas em tais doutrinas. Enquanto a mantimentos, estou persuadido que há de ser bastante o que Ciaxares nos fornecer. Enquanto à saúde, ouvindo eu e vendo que não só nas cidades, onde se quer lograr boa saúde, se escolhem médicos, mas também que os generais costumam levar médicos em suas expedições para curar os soldados, assim eu, logo que subi a esta dignidade, tratei deste objeto, e creio, meu pai, que trago comigo pessoas mui peritas na medicina.

A isto redargüiu Cambises:
- Meu filho, os médicos são como os que remendam vestidos, porque só curam depois que as doenças têm estabelecido sua sede no corpo humano; mas preveni-las é o que mais te deve importar, merecendo grande cuidado não adoecerem os soldados.
- Mas como hei-de chegar a esse resultado, meu pai?
- Quando te for preciso demorar-te por algum tempo no mesmo lugar, deves escolher um acampamento salubre, no que acertarás havendo cuidado, porque os homens costumam sempre falar acerca da salubridade e insalubridade dos lugares. O corpo e a cor dos naturais são testemunhas claros da qualidade da terra. E não é bastante examinar a salubridade da terra, é preciso que ponhas todo o cuidado em tua saúde.
- Por Júpiter, eu não encho muito o estômago, o que é anti-higiênico, e ponho toda a diligência em digerir bem os alimentos. Assim parece-me que minha saúde se conservará, e minhas forças aumentarão.
- Essa mesma diligência deves pôr acerca dos que são confiados ao teu comando.
- Mas para os exercícios do corpo, sobejará tempo aos soldados?
- Sobeja e deve sobejar. É preciso que um exército bem preparado esteja em contínuos exercícios, ou danificando os inimigos, ou procurando as próprias vantagens. Difícil coisa é sustentar um só homem na ociosidade, mais difícil uma família inteira, dificílima um exército. Um exército tem sempre grande número de bocas, e principiando a guerra com poucos mantimentos, consome abundantemente o que podem tomar aos contrários.
- Segundo me parece, vós quereis dizer que tanto vale um general ocioso como um lavrador negligente.
- Eu estou convencido que um general vigilante estará sempre provido (se algum deus se não opuser) das necessárias vitualhas, e saberá manter a saúde de seus soldados.
- Pelo que toca aos exercícios bélicos, que devem ser objeto da meditação de um general, se este instituir jogos e propuser prêmios aos vencedores, conseguirá que suas tropas estejam bem exercitadas para os marciais labores.
- Belo pensamento, meu filho, procedendo assim podes ter a certeza de ver tuas tropas cumprindo suas obrigações com a regularidade de um coro de música.
- Para inspirar coragem à soldadesca, nada me parece mais consentâneo do que nutri-la de boas esperanças.
- Porém, meu filho, isso é semelhante ao caso de um caçador que chama sempre suas cadelas com a mesma voz que costuma empregar quando vê o animal. Ao princípio acodem as cadelas prontamente à chamada; mas se muitas vezes repete o engano, já por fim não acodem, embora seja certa a presa. Eis o que acontece a respeito de esperanças. Se um homem enganar outro muitas vezes com ligeiras esperanças, ao fim, ainda que fale verdade, não é acreditado. Importa não falar afirmativamente senão do que é de plena infalibilidade; se bem que outros, praticando o contrário, possam acertar. Cumpre conservar acreditada a exortação para as ocasiões de grande perigo.
- Por Júpiter, tuas reflexões me parecem exatas. Meu pai, eu não me considero incapaz de manter os soldados na obediência. Desde a infância vós me doutrinastes neste objeto, obrigando-me a ser-vos obediente, e entregando-me depois à direção de mestres que também exigiam que eu lhes obedecesse. Quando entrei na classe dos púberes, nosso chefe rigorosamente exigia nossa obediência. O objeto principal de quase todas as leis me parece ser conseguir esses dois pontos: mandar e obedecer. Por conseqüência, pensando sobre elas, em todas vejo esta principal exortação para conter os homens na obediência, isto é, recompensar a obediência com louvores e honras, punir a desobediência com opróbrios e outros castigos.
- Para conseguir uma obediência forçada, esse é certamente o caminho, meu filho. Porém mais breve é o caminho de conseguir uma obediência voluntária, que é muito mais vantajosa. Os homens obedecem com a melhor vontade àquele que reputam mais sábio, e por isso capaz de lhes promover seus interesses. Hás de saber que é isto o que geralmente acontece, com especialidade nos doentes, que prontamente chamam o médico para lhes ordenar o que hão de fazer; nos navegantes, que prontamente seguem as ordens do piloto; nos caminhantes, que jamais desamparam seu guia. Pelo contrário, quando pensam que sua obediência traz após si alguma calamidade, nem castigos nem prêmios são capazes de movê-los. Ninguém quer receber prêmios que hão de ser origem de males.
- Vós dizeis, meu pai, que nenhum meio há mais eficaz para gerar nos homens a obediência do que parecer mais sábio do que eles em seu conceito.
- É verdade.
- Mas como é possível conseguir em brevíssimo tempo a reputação de sábio?
- Consegue-se com facilidade, sendo-o efetivamente. Se refletires em cada um destes pontos, conhecerás a veracidade de minhas asserções. Se tu, sem os necessários conhecimentos, quiseres parecer hábil agrícola, hábil cavaleiro, hábil médico, hábil flautista, hábil, enfim, em qualquer arte, imagina a quantos ardis tens de recorrer. A fim de adquirir fama de sábio, embora tu persuadisses a muitos que apregoassem tua fingida sabedoria, e possuísses bons instrumentos de cada uma das artes; ainda que se ao princípio produzisses a ilusão, logo depois a prática de teu fingimento te cobriria de vitupérios, e poria patente tua impostura.
- Mas como é possível obter instrução do que deve ser vantajoso?
- Meu filho, assim como tu aprendeste a tática militar, também podes aprender tudo que é acessível à compreensão humana. No que excede a compreensão e providência humanas, podes ser mais sábio que os outros, interrogando os deuses por meio da arte divinatória, e executando o que reputares mais acertado. É próprio do homem sábio curar do que é útil. Para captar a afeição dos subordinados (objeto da maior relevância) pratica-se o mesmo que para atrair a amizade dos amigos. Importa dar mostras claras de beneficência. É verdade, meu filho, que é difícil estar sempre a fazer benefícios; mas ao menos sé seu companheiro na alegria da prosperidade, na dor da adversidade, no desejo de acudir a seus males, no temor de serem enganados, no cuidado de prevenir os enganos. Durante as operações militares deve o general, à vista de suas tropas, expor-se às calmas e aos frios, e suportar os trabalhos, se for preciso. Tudo isto concorre para captar o afeto dos soldados.
- Quereis dizer, meu pai, que o general há de ser mais sofredor que os soldados.
- É verdade: mas não percas o ânimo. Os mesmos trabalhos não impressionam do mesmo modo o corpo do general e do soldado raso. As fadigas do general são suavizadas pela glória que delas lhe provém, e pela convicção de que seus feitos não ficam no esquecimento.
- Meu pai, quando as tropas estiverem providas de mantimentos, gozarem de boa saúde, puderem suportar as fadigas, estiverem exercitadas nos artifícios da guerra, ambicionarem mostrar-se valorosas, acharem mais suave a obediência, nestes casos não é prudente guiá-las sem perda de tempo contra os inimigos?
- Certamente, uma vez que se julgue vantajoso. No caso contrário, quanto maior confiança tiver no meu valor e no de meus soldados, tanto maior cautela terei: e isto pela razão de que deve haver maior cuidado na segurança dos objetos de maior valia.
- Mas como é possível levar vantagem aos inimigos?
- Por Júpiter, essa questão é importante, e não de fácil solução. Deves saber que o general que quiser levar vantagem a seus adversários, há de ser insidioso, dissimulado, enganador, malicioso, ladrão, salteador, e em tudo isto ser superior aos contrários.
- Olá, por Hércules, em que homem é preciso que eu me converta!
- É preciso que sejas um homem muito justo e observador das leis.
- Então para que me ensináveis o contrário na infância e na adolescência?
- Por Júpiter, e ainda hoje te ensino o mesmo para com os amigos e cidadãos. Mas para prejudicar os inimigos, não te lembras que aprendeste muitas maldades?
- Não, meu pai.
- Então, para que aprendíeis a manejar o arco e despedir a seta, a apanhar javalis com redes e fossos, a apanhar com laços os veados, a procurar sempre uma posição vantajosa para atacar os leões, os ursos e as onças? Não vês que todos estes exercícios são maldades, enganos, fraudes, desejos de melhor posição?
- É verdade: mas tudo isso era com os animais: porque, para ser rigorosamente castigado, bastava parecer que tinha vontade de enganar algum homem.
- Isto era assim, meu filho, porque eu não consentia que dirigisses as setas contra os homens; ensinava a dirigi-las a um alvo, não para maltratar os amigos, mas para no caso de guerra poderes acertar nos inimigos. Com os homens nunca vos ensinei a usar de enganos, nem a buscar vantagens: com as feras sim, para aprenderes a não ofender os amigos, e no caso de guerra não vos faltar o exercício destas coisas.
- Mas se é preciso, meu pai, saber fazer bem e mal aos homens, ambas estas coisas convinha aprender.
- Olha, meu filho, dizem que, no tempo de nossos avós, houve um mestre que dava lições de justiça como tu julgas que deve ser. Ensinava ele a não mentir e a mentir; a não enganar e a enganar; a não caluniar e a caluniar; a não promover os próprios interesses em prejuízo de outrem e a promovê-los. Distinguia, porém, quais destas coisas deviam praticar-se para com os amigos e quais para com os inimigos. Ainda avançava mais, ensinando que era justo enganar e roubar os amigos, quando o bem destes o reclamasse. Obrigava seus discípulos a exercitar-se uns com outros nestes misteres, assim como dizem que usam na luta os gregos, os quais ensinam a enganar. Há todavia alguns naturalmente tão propensos aos enganos, às fraudes, e talvez tão interesseiros, que não se abstêm de fomentar seus interesses mesmo à custa de seus amigos. Então uma lei, que ainda hoje guardamos, ordenou que simplesmente se ensinasse aos meninos como fazemos a respeito dos escravos, a falar verdade, a não enganar, a não roubar, a não promover seus interesses em prejuízo de outrem; e isto sob pena de serem castigados. Educavam-nos nestes hábitos para virem a ser cidadãos mais pacatos. Chegados à tua idade, já parecia seguro ensinar-lhes as leis da guerra; porque educados em ter respeito uns aos outros, não se receava que se fizessem cidadãos intratáveis.
- Por Júpiter, já que me instruíste tarde nesses meios de levar vantagem aos outros, não vos abstenhais, meu pai, de me ensinar como, sobre os inimigos, eu hei-de alcançar esta vantagem.
- Espreita, meu filho, quanto estiver ao teu alcance, a ocasião de apanhar os inimigos desordenados, achando-se teus soldados em ordem de batalha, desarmados estando armados os teus, dormindo e os teus alerta, à tua vista e sem te verem, em uma posição desvantajosa e tu em um lugar seguro.
- Como é possível, meu pai, que um general consiga apanhar os inimigos assim desprevenidos?
- Filho, é forçoso que estas desprevenções muitas vezes tenham lugar, não só no exército contrário, mas também no teu. Os soldados de ambos os exércitos têm de comer, têm de dormir, têm de pela manhã afastar-se do arraial, e quase todos ao mesmo tempo, para satisfazer suas naturais precisões, têm finalmente de marchar pelas estradas, tais quais elas são. Reflete em cada uma destas coisas, e da tua parte está resguardar-te quando te vires mais fraco, acometer quando te parecer fácil a vitória.
- Porventura só nessas circunstâncias é possível levar vantagem aos inimigos, ou em algumas outras?
- Em outras, meu filho, e mais vantajosas: pois naquelas ocasiões o inimigo toma sempre as necessárias cautelas. Mas o general versado na estratégia incute ao inimigo certo grau de confiança, e o apanha descuidado, deixa-se perseguir e o põe em desordem, atrai o inimigo a posições desvantajosas e o acomete. Importa que tu, desejoso de saber todos estes estratagemas, não empregues só os que te ensinarem: tu mesmo deves inventá-los. Os músicos também não usam só das peças que lhes foram ensinadas, inventam outras; e se eles recebem aplausos por suas brilhantes invenções, muito mais aplaudido há de ser o general que descobrir novos ardis, com que mais facilmente possa surpreender os inimigos. Mesmo empregando tu os artifícios que excogitavas para apanhar os pequenos animais, pensas que não podes alcançar grandes vantagens sobre os inimigos? No pino do inverno tu te levantavas ainda de noite, e partias para a caça. Antes de se moverem as aves, já teus laços estavam armados, e de tal maneira que o terreno parecia não ter sido mexido. Tinhas ensinado algumas aves, que te eram úteis para enganar as outras; e tu, posto em lugar de onde sem seres visto vias o que se passava, tinhas o cuidado de te lançares sobre a presa antes que fugisse. Para as lebres, como elas pastam na escuridão e fogem da luz, criavas cadelas, que pelo faro as iam achar, e para que não fugissem, tinhas outras destinadas a segui-las. Se assim mesmo escapavam, notavas por onde era seu trânsito, e qual seu couto, estendias as redes de tal maneira que dificultosamente as vissem, e nelas caíam as lebres que vinham em precipitada fuga. Para evitar que fugissem das redes, punhas guardas, que corriam logo sobre elas. Davas ordem aos guardas para que em silêncio se conservassem emboscados, e tu ias gritando atrás da lebre; assim a aterravas de sorte que incautamente era apanhada. Ora, como te disse, se usares de tais argúcias contra os adversários, duvido que um só possa escapar ao teu ferro. Quando for preciso combater em uma planície, armados os exércitos, e à vista um do outro, é então que as preparações prévias têm útil emprego, quero dizer, quando os corpos de soldados estiverem bem exercitados, seu ânimo bem estimulado, a arte militar bem sabida. Também deves ter em vista este princípio: que aqueles de quem exigires obediência hão de exigir que tu cuides em seus interesses. Tua atenção jamais deve estar ociosa, pensando de noite no que hás de entreter teus soldados durante o dia, de dia cogitando qual seja o melhor entretenimento para durante a noite. Para que hei-de falar-te acerca do modo de formar o exército para entrar em ação? De dirigir a marcha de dia ou de noite, por estradas estreitas ou largas, íngremes ou planas? De acampar, de postar sentinelas noturnas ou diurnas, de avançar contra o inimigo ou retirar, de invadir uma cidade, aproximar-se das muralhas ou desviar-se, de atravessar bosques e rios, de acautelar-se contra a cavalaria, seteiros e archeiros; de resistir aos inimigos, qualquer que seja a forma que leve teu exército, e qualquer que seja o lado por onde eles te ataquem; de descobrir os planos dos inimigos, e de ocultar-lhes os teus? Toda a minha ciência a este respeito freqüentes vezes a tens ouvido. Demais, tu tens tirado proveitoso partido das lições de mestres peritos. Cumpre, portanto, empregar os meios que te parecerem mais adequados. Também te quero dar alguns preceitos, meu filho, sobre esta importante doutrina. Sem precederem sacrifícios e agouros, nunca te arrisques a ti e ao teu exército. Pois deves saber que os homens, ignorando o que mais lhes aproveita, agem fundados em conjetura. Por exemplo: Muitos povos, aconselhados por homens havidos por consumados políticos, têm declarado guerra a seus inimigos e têm sido destruídos; muitos elevaram grande número de particulares, e até de cidades, e os mesmos agraciados têm causado sua ruína; muitos, querendo ter em lugar de escravos pessoas a quem deviam dar entrada em sua amizade, e isto por meio de recíprocos benefícios, foram castigados por solicitações destas mesmas pessoas; muitos, não satisfeitos com a parte que lhes tocou, pretenderam apossar-se de toda a herança, e esta ambição lhes fez perder o próprio quinhão; muitos, finalmente, senhores de grandes riquezas, por isso mesmo pereceram. É, portanto, certo que as ações inspiradas por uma escolha prudente, não são mais prudentes que as filhas do acaso. Porém, meu filho, os deuses imortais, que conhecem o pretérito, o presente e o futuro, aconselham os homens a que são propícios, e lhes indicam o que devem fazer. Não é para admirar que não aconselhem a todos, pois não são obrigados a curar dos que eles não querem patrocinar. Ler mais...