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Tália - Livro III

O Egito - a Pérsia - Cambises - Mênfis - o Boi Ápis - a Etiópia - Polícrates - Másis - o Falso Esmérdis - Dardo - o Cerco de Babilônia e Zópiro

I - Foi contra Amásis que marchou Cambises, filho de Ciro, com um exército composto de povos submetidos, entre os quais os Iônios e os Eólios. Eis aqui o motivo dessa guerra: Cambises, por um embaixador, mandara pedir a mão da filha de Amásis. Movera-o a isso o conselho de um médico egípcio, que desejava vingar-se de Amásis, pois este o tinha separado da esposa e dos filhos para enviá-lo à Pérsia, quando Ciro solicitou ao soberano que lhe enviasse o melhor especialista em moléstia dos olhos existente no Egito. Ressentido com seu soberano por ter a escolha recaído sobre ele, o médico não cessava de animar Cambises a pedir a filha de Amásis em casamento, sabendo que, se este recusasse o pedido, Cambises o odiaria. Amásis, que detestava os Persas tanto quanto lhes temia o poderio, não sabia se devia ou não aceder à solicitação do príncipe persa, tanto mais que não ignorava que sua intenção não era desposar a princesa, mas fazê-la sua concubina. Depois de muito refletir, Amásis tomou a seguinte resolução:

Vivia na corte uma filha de Ápries, por ele destronado, única sobrevivente da família e dotada de grande beleza. Chamava-se Nitétis. Fazendo-a vestir riquíssimo traje, todo bordado de ouro, Amásis enviou-a à Pérsia, como se fosse sua filha. Algum tempo depois, como Cambises a saudasse pelo nome do pai, ela replicou nestes termos: "Amásis, senhor, vos enganou. Enviou-me ele a vós com estas ricas indumentárias em lugar de sua filha. Meu pai chamava-se Ápries, por ele destronado e morto pelos Egípcios que se sublevaram sob seu comando". Cambises, irado ante aquela revelação, decidiu prontamente vingar-se, declarando guerra ao Egito.

II - Foi essa, segundo os Persas, a causa da guerra que Cambises moveu contra os Egípcios. Estes, porém, pretendem que Cambises era filho dessa filha de Ápries, pedida em casamento por Ciro e não por esse príncipe, como querem os Persas. Reivindicando, assim, a linhagem de Cambises, os Egípcios alteram a verdade histórica, porquanto, estando eles tão bem informados sobre as leis e os costumes dos Persas, devem saber que, na Pérsia, a lei não permite ao filho natural suceder ao pai no trono. Além do mais, Cambises era filho de Cassandana, filha de Farnaspes, da estirpe dos Aquemênidas, e não de uma mulher egípcia.

III - Conta-se ainda, com relação a essa controvertida origem da guerra persa-egípcia, a seguinte história, pouco verossímil na minha opinião: Indo, certa ocasião, à presença da esposa de Ciro, uma mulher persa mostrou-se impressionada com a beleza e a graça dos filhos de Cassandana, fazendo-lhes os maiores elogios. "Pois saiba - teria respondido Cassandana - que, embora mãe de tão belos filhos, Ciro não me vota senão desprezo, dispensando todos os seus cuidados e atenções à escrava egípcia". Vendo-a falar assim, Cambises, o primogênito, declarou enfaticamente: "Minha mãe, quando eu for homem destruirei o Egito de ponta a ponta". Essas palavras do jovem príncipe, que contava apenas dez anos de idade, assustaram as duas mulheres. Ao subir ao trono da Pérsia, Cambises, lembrando-se do que prometera, declarou guerra ao Egito.

IV - Pouco antes do início das hostilidades sobreveio um acontecimento que muito contribuiu para o êxito das armas persas. Um oficial das tropas auxiliares de Amásis, de nome Fanes, natural de Halicarnasso, muito sensato e guerreiro destemido, descontente com o soberano abandonou o Egito por mar para ir ter com Cambises. Como ocupava posto importante entre as tropas auxiliares e estava bem a par dos negócios do império, Amásis tudo fez para capturá-lo. Ordenou ao mais fiel dos seus eunucos que o perseguisse num trirreme, o prendesse e o trouxesse à sua presença. Este alcançou-o na Lícia e fê-lo prisioneiro, mas não chegou a reconduzi-lo ao Egito, pois Fanes embriagou os guardas e fugiu, atingindo finalmente a corte persa. Cambises se dispunha então a marchar contra os Egípcios, mas retinha-o a dificuldade de atravessar os desertos. Foi quando Fanes ali se apresentou, informando-o sobre a situação no Egito e sobre a estrada que deveria tomar para atravessar os desertos, aconselhando-o, ao mesmo tempo, a mandar pedir ao soberano da Arábia permissão para passar com segurança pelas suas terras.

V - Era esse, realmente, o único meio de que ele poderia dispor para penetrar no Egito, pois a Síria se estende da Fenícia aos confins de Cadítis. Desta cidade, que rivaliza em tamanho com Sardes, até Jenísus, todas as praças marítimas pertencem aos Árabes. De Jenísus ao lago Serbónis, perto do qual se acha o monte Cásio, que se prolonga até o mar, e onde se penetra novamente em terras dos Sírios, estende-se um imenso deserto. Leva-se três dias de marcha forçada para transpô-lo. O Egito começa no lago Serbónis, no qual se diz ter-se ocultado Tifão.

VI - Entre aqueles que têm ido ao Egito por mar, poucos são os que conhecem este interessante costume ali praticado: Duas vezes por ano, grande quantidade de jarros de barro cheios de vinho procedentes de todas as regiões da Grécia e, também, da Fenícia, é levada para o Egito. Entretanto, não se vê ali nenhum desses jarros. Que é feito deles? Eis a explicação: Em cada uma das cidades, o chefe local é obrigado a reunir todos os jarros ali encontrados e a enviá-los para Mênfis. De Mênfis, são levados, cheios de água, às regiões mais áridas da Síria. Assim, todos os jarros enviados para o Egito cheios de vinho, servem, depois de vazios, para amenizar a aridez das terras sírias. É esse o motivo por que não são encontrados no Egito tais jarros.

VII - Foram os Persas que facilitaram a passagem através do deserto até a Síria por meio desse transporte de água em jarros, quando se tornaram senhores do Egito. Como, porém, na época da aludida expedição não havia absolutamente provisão de água no local, Cambises, seguindo os conselhos de Fanes de Halicarnasso, enviou embaixadores ao rei dos Árabes para pedir-lhe passagem franca pelas suas terras, o que obteve, em seguida a um juramento recíproco.

VIII - Não há povo mais religioso e fiel aos juramentos do que os Árabes. A prestação de um juramento obedece, entre eles, a certos requisitos considerados indispensáveis à sua completa validez e garantia. Quando querem empenhar a palavra a alguém, recorrem à intervenção de um terceiro. Esse mediador, de pé, entre os dois contratantes, faz, com uma pedra aguçada de que se acha munido, uma incisão na palma da mão de ambos, perto do polegar. Toma, em seguida, da pelúcia do traje de cada um e embebe-a no sangue resultante da incisão. Feito isso, toma das sete pedras colocadas entre ambos e atrita-as umas contra as outras, enquanto invoca Baco e Urânia. Terminada a cerimônia, o que empenhou sua palavra oferece ao estrangeiro - ou ao seu concidadão, se for este o caso - seus amigos como garantia. Os Árabes não conhecem outros deuses senão Baco e Urânia, a que denominam Urotal e Alilá, respectivamente. Têm o hábito de raspar a cabeça como, segundo dizem, Baco raspava, isto é, em círculo e em redor das têmporas.

IX - Concluído o tratado com os embaixadores de Cambises, o rei da Arábia mandou encher de água os surrões e carregar com eles todos os camelos existentes no país, enviando-os para as regiões áridas, onde ficaram aguardando o exército de Cambises.

Há, na Arábia, um grande rio denominado Córis, que desemboca no mar da Eritréia. Pouco além desse rio, o rei da Arábia mandou fazer um aqueduto com peles de bois e outros animais, ligadas umas às outras. O aqueduto estendia-se do rio aos lugares áridos, levando a água para grandes cisternas, cavadas especialmente para recebê-la e conservá-la. Do rio ao deserto há doze dias de marcha. Dizem alguns que a água era conduzida de três lugares por três aquedutos diferentes.

X - Psaménito, filho de Amásis, acampou perto da embocadura pelusiana do Nilo, onde esperou o inimigo. Acabava de suceder ao pai, que já não vivia quando Cambises iniciou sua marcha sobre o Egito. Tinha morrido, depois de um reinado de quarenta e quatro anos, durante os quais não sofrera nenhum revés. Depois de sua morte, embalsamaram-no e puseram-no num monumento erguido no recinto sagrado do templo de Minerva.

Logo que Psaménito subiu ao trono, deu-se no Egito um fato bastante curioso e que a todos causou espanto: choveu em Tebas, coisa que ali jamais se registrara e que, como afirmam os próprios Tebanos, nunca mais se registrou desde essa época até os nossos dias. Foi uma ocorrência verdadeiramente excepcional, pois jamais chove no Alto Egito.

XI - Quando os Persas transpuseram a região árida e acamparam a pouca distância dos Egípcios, preparando-se para lhes dar combate, os Gregos e os Cários a soldo de Psaménito, indignados com a atitude de Fanes trazendo ao Egito um exército estrangeiro, vingaram-se nos filhos que o traidor havia deixado no país ao partir para a Pérsia. Levaram-nos ao acampamento e, colocando-os bem à vista do pai, junto a uma cratera, degolaram-nos um após outro. Em seguida, misturando o sangue com vinho e água na cratera, beberam-no, iniciando então o combate. A luta foi rude e sangrenta, ficando o campo juncado de cadáveres de ambos os lados. Por fim, os Egípcios, com suas fileiras dizimadas e esgotadas pela refrega, bateram em retirada.

XII - Visitando o local onde se travou essa batalha, ainda tive oportunidade de ver as ossadas dos que tombaram para sempre na peleja. Alguns dos crânios estavam tão frágeis pela ação do tempo, que, tocando-se-lhes mesmo de leve, logo se desfaziam em pó. Outros, ao contrário, mantinham-se duros e resistentes, fendendo-se somente sob um forte golpe. Os que tão frágeis se mostravam pertenciam a soldados persas; os sólidos, a combatentes egípcios. Foi o que me disseram moradores daquela região, que acrescentaram serem capazes de identificá-los por uma razão muito simples: os Egípcios começam desde tenra idade a raspar a cabeça, de que resulta o endurecimento do crânio pela ação do sol. Daí ser bem menor a proporção de homens calvos no Egito do que nos outros países. Os Persas têm o crânio frágil porque não o expõem ao sol e às intempéries, trazendo a cabeça sempre protegida por uma tiara. Essa observação, que me pareceu muito lógica, eu a fiz pouco mais tarde em Paprémis, com relação às ossadas dos que foram derrotados sob o comando de Aquêmenes, filho de Dario, por Inaros, rei da Líbia.

XIII - Vendo perdida a batalha contra os Persas, os Egípcios se retiraram em desordem para Mênfis, onde se entrincheiraram. Ciente disso, Cambises mandou, por um emissário, convidá-los a negociar com ele. O emissário subiu o rio num navio mitileno. Ao verem a embarcação aportar em Mênfis, os Egípcios saíram em massa da cidadela e destruíram-na, reduzindo a pedaços seus tripulantes e levando os membros decepados para o reduto; os Persas, em vista dessa atitude violenta, resolveram sitiar a cidade, e eles foram obrigados a render-se.

Os Líbios, vizinhos dos Egípcios, receando a mesma sorte, submeteram-se sem luta. Impuseram a si mesmos um tributo e enviaram presentes a Cambises. Sua ação foi imitada pelos Cireneus e pelos Barceus. O soberano recebeu favoravelmente os presentes destes últimos, mas não apreciou os dos Cireneus, naturalmente porque não eram valiosos - não iam além de quinhentas minas de prata, por ele distribuídas entre os soldados.

XIV - No décimo dia após a captura de Mênfis, Cambises, para humilhar Psaménito, que reinara durante seis meses apenas, mandou conduzi-lo, com outros Egípcios, a um arrabalde, e, para pôr à prova sua firmeza de ânimo, fez vestir a filha do príncipe de escrava, enviando-a, com uma bacia na mão, em busca de água. Acompanhavam-na várias outras jovens escolhidas pelo conquistador entre as da melhor categoria e igualmente vestidas de escravas, as quais, ao passarem perto de seus pais, caíram em pranto, pondo-se a gritar e a lamentar-se. Estes, vendo as filhas em tão humilhante situação, não puderam conter as lágrimas. Psaménito, porém, limitou-se a baixar os olhos.

Em seguida àquele espetáculo, Cambises fez desfilar diante do soberano vencido seu filho e mais dois mil compatriotas da mesma idade, tendo uma corda ao pescoço e um freio à boca. Iam aplicar-lhes a pena de morte para vingar os Mitilenos massacrados em Mênfis. Os juízes reais tinham determinado que, para cada vítima daquele massacre, fossem sacrificados dez jovens egípcios, escolhidos entre os das melhores famílias. Psaménito reconheceu o filho entre os outros condenados, mas, ao contrário dos outros pais egípcios, que, em torno dele, choravam e se lamentavam, soube controlar seus sentimentos, como o fizera diante da filha. Logo após a passagem dos jovens, Psaménito pousou os olhos sobre um andrajoso ancião, que identificou prontamente como um dos seus antigos e habituais comensais. Despojado de todos os seus bens, aquele homem, outrora rico e influente, implorava agora a caridade pública, indo de porta em porta mendigando um pouco de alimento. Ante aquela cena, o ex-soberano não conteve as lágrimas e chamou o ancião pelo nome. Os guardas encarregados por Cambises de observar todos os movimentos e atitudes de Psaménito, notando aquele seu procedimento apressaram-se em levar o fato ao conhecimento de seu soberano. Este mandou um emissário inquiri-lo sobre tão estranha conduta. "Cambises, nosso rei e senhor vosso - falou o emissário - deseja saber por que não vos lamentastes nem chorastes ao ver vossa filha tratada como escrava e vosso filho marchando para a morte, enquanto que tão comovido vos mostrastes à vista daquele mendigo que não é nem vosso parente nem vosso aliado". "Ide e dizei ao vosso soberano - respondeu Psaménito - que as desgraças de minha família são muito grandes para que eu as possa chorar; mas a triste sorte de um amigo que, já na velhice, cai na indigência depois de haver possuído tantas riquezas, merece indubitavelmente minhas lágrimas sinceras".

Cambises achou essa resposta sensata. Dizem os Egípcios ter ela feito chorar não somente a Creso, que havia acompanhado o rei dos Persas ao Egito, como a todos os Persas ali presentes; e que Cambises ficou de tal maneira comovido, que mandou libertar imediatamente o filho de Psaménito, retirá-lo do número dos condenados à morte e enviá-lo para junto do pai.

XV - O jovem príncipe, porém, foi encontrado já sem vida. Tinham-no executado em primeiro lugar. Levaram, então, Psaménito a Cambises, junto do qual passou o soberano vencido o resto dos seus dias, sem sofrer nenhum mau trato. Cambises ter-lhe-ia mesmo devolvido o trono do Egito se não tivesse suspeitado estar ele, com suas intrigas, procurando perturbar os negócios do Estado; pois os Persas têm o costume de honrar os filhos dos reis, e mesmo de restituir-lhes o trono que seus pais perderam na guerra. Poderia citar vários exemplos como prova disso. Contentar-me-ei em lembrar o de Taniras, filho de Inaros, rei da Líbia, a quem eles entregaram o reino que o pai possuíra, e o de Pausíris, filho de Amirteu, a quem foram restituídos os estados perdidos pelo pai, embora nenhum outro rei tivesse causado maior dano aos Persas do que Inaros e Amirteu. Psaménito foi, todavia, mal sucedido em sua conspiração contra o novo governo. Concitando os Egípcios à revolta, foi descoberto e condenado por Cambises a beber sangue de touro, morrendo instantaneamente.

XVI - Cambises partiu de Mênfis para Sais, com o propósito de ali fazer o que realmente fez. Assim que chegou ao local onde repousava o corpo de Amásis, mandou tirá-lo da sepultura, fustigá-lo e cobri-lo de mil outros ultrajes. Vendo que os executores, apesar dos rudes e contínuos golpes vibrados contra o cadáver, não conseguiam arrancar-lhe nenhum pedaço, pois estava muito bem embalsamado, Cambises ordenou que o queimassem, sem nenhum respeito à religião de seu próprio povo. Com efeito, os Persas consideram o fogo um deus, sendo-lhe vedado, tanto por suas leis, como pelas dos Egípcios, queimar os mortos, pois um deus não deve alimentar-se do cadáver de um homem. Os Egípcios, por sua vez, estão convencidos de que o fogo é um animal feroz, que devora tudo que encontra ao seu alcance e que, depois de saciado, sucumbe em conseqüência daquilo que consumiu. As leis egípcias proíbem que se abandonem cadáveres humanos às feras, e eles são embalsamados para evitar que os vermes os devorem. Cambises praticou, por conseguinte, um ato condenado pelas leis de ambos os povos. Todavia, a dar-se crédito aos Egípcios. não era de Amásis o corpo tratado de maneira tão indigna, mas o de outro egípcio de porte semelhante ao do soberano, a quem os Persas, por engano, profanaram. Dizem que Amásis, informado por um oráculo do que lhe devia acontecer depois de morto, procurou evitar que a predição se cumprisse, mandando colocar no interior do seu monumento, junto à porta, o corpo de um cidadão egípcio, encarregando o filho de colocar o seu bem no fundo do mesmo sepulcro. Julgo, porém, que isso não passa de fábula, inventada para satisfazer a vaidade dos próprios Egípcios.

XVII - Submetido o Egito, Cambises decidiu fazer guerra a três outros povos: aos Cartagineses, aos Amônios e aos Etíopes-Macróbios, que habitam a parte da Líbia do lado do mar Austral. Traçados os planos para essas expedições, resolveu o soberano lançar sua força naval contra os primeiros, e um forte destacamento de suas tropas de terra contra os segundos. Quanto aos Etíopes, preferiu sondar primeiramente suas possibilidades de resistência e preparar o terreno para a invasão, infiltrando espiões entre aquele povo, os quais, sob o pretexto de levar presentes ao rei, procurariam certificar-se da existência da Mesa do Sol e conhecer o que ainda ignoravam sobre o país.

XVIII - Eis em que consiste a Mesa do Sol: Há, nas cercanias da capital dos Etíopes, um prado coberto de carne cozida de todas as espécies de animais quadrúpedes, que os magistrados para ali mandam conduzir durante a noite. Quando surge o dia, cada um pode lá servir-se do que mais lhe agradar. Os habitantes dizem que a terra produz por si mesma todas essas carnes.

XIX - Tendo resolvido enviar espiões a esse país, Cambises mandou incontinênti chamar, na cidade de Elefantina, alguns Ictiófagos que conheciam a língua etíope. Nesse ínterim, ordenou à sua força naval que se dirigisse para Cartago, mas os Fenícios recusaram-se a obedecer porque estavam ligados aos Cartagineses pelos mais solenes juramentos e achavam que, lutando contra eles, estariam cometendo um verdadeiro sacrilégio. Devido a essa recusa, e como o restante da frota não estava em condições de realizar com êxito a expedição, puderam os Cartagineses subtrair-se ao jugo que lhes preparavam os Persas. Cambises não julgou de justiça forçar os Fenícios a obedecer-lhe, porquanto eles se tinham submetido voluntariamente, e, além disso, constituíam parte essencial de sua armada. Os habitantes da ilha de Chipre também se haviam submetido de livre vontade aos Persas e os tinham acompanhado ao Egito.

XX - Quando os Ictiófagos chegaram de Elefantina, Cambises instruiu-os sobre o que deviam fazer na Etiópia, enviando-os para lá com presentes ao rei: um traje de púrpura, um colar de ouro, braceletes, um vaso de alabastro cheio de essência e um barril de vinho de palmeira.

Dizem que os Etíopes são, de todos os homens, os de maior estatura e de mais bela compleição física, tendo também costumes diferentes dos dos outros povos. Entre eles, o mais digno de usar a coroa é o que apresenta maior altura e força proporcional ao seu porte.

XXI - Os Ictiófagos, chegando à Etiópia, entregaram os presentes ao rei, dizendo-lhe: "Cambises, rei dos Persas, desejando a vossa amizade e a vossa aliança, envia-nos para conferenciar convosco e vos oferece estes presentes, coisas muito apreciadas entre eles".

O soberano etíope, não ignorando tratar-se de espiões, respondeu-lhes nestes termos: "Não foi o vivo desejo de fazer amizade comigo que levou o rei dos Persas a vos enviar aqui com estes presentes. Estais ocultando a verdade. Vindes sondar os recursos dos meus estados, e vosso senhor não é um homem justo. Se o fosse não cobiçaria terras alheias e não procuraria reduzir à servidão um povo que nenhum mal lhe fez. Levai a ele este arco de minha parte e dizei-lhe que o rei da Etiópia o aconselha a vir fazer-lhe guerra com forças bem numerosas e quando os Persas puderem vergar um arco igual a este, tão facilmente como ele; e enquanto aguarda esse momento, que renda graças aos deuses por não terem inspirado aos Etíopes o desejo de alargar o país com novas conquistas!"

XXII - Dito isso, o soberano distendeu o arco e entregou-o aos Ictiófagos. Em seguida, tomou do traje de púrpura e perguntou-lhes o que era a púrpura e como a faziam. E quando os Ictiófagos lhe revelaram que aquilo que ele tinha nas mãos não passava de um tecido grosseiro tingido com uma substância corante, exclamou: "Estes homens são tão falsos como estas vestes!" Interrogou-os, depois, sobre o colar e o bracelete. Como os Ictiófagos respondessem que eram ornamentos, pôs-se a rir, e, tomando-os por correntes, disse-lhes que as dos Etíopes eram bem mais fortes do que aquelas. Chegando a vez da essência e explicando-lhe os estrangeiros sua composição e uso, o soberano respondeu-lhes da maneira como o fizera com relação à púrpura. Ao interrogá-los, finalmente, sobre o vinho, e tendo-lhe sido explicada a maneira de fabricá-lo, mostrou-se muito satisfeito com a bebida. Continuando, perguntou-lhes como se alimentava o rei dos Persas e qual a idade mais longa entre eles. Os espiões responderam que o alimento básico do rei era o pão e esclareceram-no sobre a natureza do fermento. Acrescentaram que a idade mais avançada entre os Persas era de oitenta anos, ao que ele retrucou não admirar que homens que se alimentavam de esterco vivessem tão pouco, dizendo estar persuadido de que se eles não reparassem as forças com aquela bebida (referia-se ao vinho) viveriam menos ainda, pois só naquele invento tinham superioridade sobre os Etíopes.

XXIII - Os Ictiófagos interrogaram-no, por sua vez sobre a longevidade dos Etíopes e seu modo de vida. Respondeu ele que a maioria chegava a cento e vinte anos, atingindo alguns idade mais avançada; que se alimentavam de carne cozida, sendo o leite sua principal bebida. Como os espiões se mostrassem espantados com a longevidade daquele povo, o soberano conduziu-os a uma fonte onde os que ali se banham saem com o corpo impregnado do perfume da violeta e mais lustroso do que se o houvessem friccionado com óleo. De regresso de sua frustrada missão, os espiões disseram que a água dessa fonte era tão leve, que nem mesmo a madeira e outros corpos ainda mais leves podiam nela flutuar. Tudo que nela caía, afundava imediatamente. Se essa água é tão leve assim, é provável que o seu uso permanente seja a causa da longevidade dos Etíopes.

Da fonte, o soberano conduziu os Ictiófagos à prisão. Todos os presos estavam agrilhoados com correntes de ouro, pois, entre os Etíopes, o mais raro e mais precioso de todos os metais é o cobre. Após a visita à prisão foi-lhes mostrada a denominada Mesa do Sol.

XXIV - Por fim, o soberano levou-os para ver os sepulcros etíopes, que, segundo dizem, são feitos de cristal e preparados do seguinte modo: dessecam primeiramente o corpo à maneira dos Egípcios ou de outra maneira qualquer, endurecendo-o, em seguida, com uma pasta onde são desenhadas as feições do morto. Isso feito, colocam-no numa coluna de cristal oca e transparente, de custo bastante acessível, uma vez que o cristal é extraído abundantemente das minas ali existentes. Pode-se ver perfeitamente o morto através dessa coluna. Não exala nenhum mau cheiro e nem apresenta qualquer aspecto desagradável. Os parentes mais próximos do morto guardam a coluna em casa pelo espaço de um ano, durante o qual lhe oferecem sacrifícios e rendem-lhe outras homenagens. Passado esse período, levam-na para um local qualquer nos arredores da cidade.

XXV - Partindo de regresso ao Egito, os espiões de Cambises fizeram-lhe um relato completo do que se passara na corte etíope. O soberano, tomado de cólera ante o inesperado desfecho da missão, decidiu marchar incontinênti contra os Etíopes, e, sem mesmo providenciar sobre o abastecimento de víveres para o exército e sem pensar na distância que o separava do país que ia atacar, pôs-se a caminho com quase todas as tropas de terra, deixando no Egito apenas os Gregos que o tinham acompanhado até lá. Ao chegar a Tebas, escolheu cerca de cinqüenta mil homens, ordenando-lhes que reduzissem os Amônios à escravidão e depois queimassem o templo onde Júpiter concedia oráculos, após o que continuou a marcha para a Etiópia com o restante do exército.

As tropas ainda não tinham feito a quinta parte da jornada, quando se viram inteiramente desprovidas de alimento, sendo obrigadas a lançar mão das bestas de carga para minorar a situação, que, entretanto, continuou precária. Se Cambises, ao constatar a falta de víveres, tivesse reconsiderado o seu erro e regressado com o seu exército, teria agido como homem sensato. Mas, sem levar em conta a gravidade da situação, continuou a marcha para diante Enquanto havia campo, os soldados alimentavam-se com ervas que iam colhendo à sua passagem; mas ao chegarem à região árida, a fome tornou-se cruciante, levando-os a cometer horrível desatino: tiraram a sorte e comeram um companheiro entre cada dez. Ao ter conhecimento do fato, Cambises, receando que os soldados continuassem devorando uns aos outros, resolveu desistir da empresa, regressando a Tebas, onde chegou com suas tropas já bastante desfalcadas. De Tebas foi a Mênfis, onde despediu os Gregos, permitindo-lhes voltar à pátria.

XXVI - Quanto às tropas enviadas contra os Amônios, conta-se que, partindo de Tebas acompanhadas de guias, atingiram Oásis, cidade habitada pelos Sâmios, pertencentes, segundo dizem, à tribo escrioniana. Oásis, que em grego denomina-se ilha dos Bem-aventurados, dista sete dias de Tebas, e a ela pode-se ir por um caminho arenoso. Embora se afirme que as tropas persas foram até lá, ninguém sabe o que lhes aconteceu em seguida, a não ser os próprios Amônios e os que por eles foram informados. O que é certo é que elas não chegaram ao seu ponto de destino, nem regressaram ao Egito. Dizem os Amônios que essas tropas, tendo partido de Oásis, já se encontravam quase na metade do caminho para o seu país quando foram surpreendidas, durante o repasto, por uma tempestade de areia, que os sepultou a todos.

XXVII - Logo após o regresso de Cambises a Mênfis, Ápis, que os Gregos denominam Épafo, manifestou-se aos Egípcios. Estes, surpresos e alegres, envergaram seus mais ricos trajes e puseram-se a festejar o acontecimento. Cambises, testemunhando essas expansões de júbilo e supondo que eles se regozijavam pelo insucesso de suas armas, mandou chamar os magistrados de Mênfis e perguntou-lhes por que razão os habitantes, não tendo manifestado alegria quando ele chegou triunfante à cidade, expandiam-se daquela forma no momento em que ele regressava sem uma boa parte do seu exército. Responderam-lhe que o deus dos Egípcios acabava de manifestar-se, o que raramente fazia, sendo isso sempre motivo de grande alegria e festas públicas. Cambises não se satisfez com a explicação e, dizendo que eles lhe estavam ocultando a verdade, condenou-os à morte por quererem diminuir sua autoridade.

XXVIII - Depois de mandar executá-los, fez vir à sua presença os sacerdotes de Mênfis, e recebendo a mesma resposta perguntou-lhes se o deus que se manifestara aos Egípcios era acessível. Ante a resposta afirmativa dos sacerdotes, ordenou-lhes que o levassem imediatamente à sua presença.

Ápis, também chamado Épafo, manifesta-se sempre sob o aspecto de um boi novo e de porte majestoso. Foi o único gerado por sua mãe. Dizem os Egípcios que um raio de luz, descendo sobre ela, fê-la concebê-lo. É facilmente reconhecido por certas marcas e características que possui. Tem o pêlo negro e luzidio; traz na testa um sinal branco triangular; nas costas a figura de uma águia; na língua a de um escaravelho, e duplos os pêlos da cauda.

XXIX - Logo que os sacerdotes lhe trouxeram Ápis, Cambises, num acesso de fúria, sacou do punhal e vibrou um golpe dirigido ao ventre do animal sagrado, mas atingiu-o apenas na coxa. Vendo-o sangrar, dirigiu-se aos sacerdotes em tom sarcástico: "Intrujões! Então os deuses são de carne e sangue e sentem os golpes do ferro? Este deus é, sem dúvida, bem digno dos Egípcios. Mas não zombareis impunemente de mim". Dito isso, mandou vergastá-los pelos encarregados de executar tais sentenças e ordenou que se fizesse o mesmo com todos os Egípcios encontrados celebrando o aparecimento do boi Ápis, pondo, assim, termo aos ruidosos festejos. Quanto ao deus, ficou ele a definhar no templo em conseqüência do ferimento recebido e acabou morrendo. Os sacerdotes deram-lhe sepultura às ocultas de Cambises.

XXX - O soberano, ao que dizem os Egípcios, não tardou a sofrer a punição desse crime: enlouqueceu, ele que até então demonstrara possuir espírito lúcido e atilado. Sua primeira demonstração de insanidade foi matar seu irmão Esmérdis, que enviara de volta à Pérsia, despeitado pelo fato de haver este vergado, com dois dedos apenas, o arco do rei da Etiópia, trazido pelos Ictiófagos - façanha que nenhum outro persa conseguira realizar. Tendo visto em sonhos um correio persa anunciando-lhe que Esmérdis, sentado no trono, tocava o céu com a cabeça, e temendo que o irmão o matasse para apoderar-se da coroa, despachou sem demora para a Pérsia seu compatriota Prexaspes, em quem depositava a maior confiança, com ordem de eliminar Esmérdis. Ao chegar a Susa, Prexaspes executou a ordem. Uns dizem ter ele eliminado o príncipe durante uma caçada; outros pretendem ter ele precipitado sua vítima no mar da Eritréia.

XXXI - A este primeiro crime de Cambises seguiu-se um segundo na pessoa de sua irmã. Essa princesa, que o acompanhara ao Egito, era, ao mesmo tempo, sua esposa. Vejamos como se explica essa situação, pois antes de Cambises os Persas não tinham o costume de desposar suas irmãs. Apaixonando-se por uma das irmãs e querendo casar-se com ela, Cambises convocou os juízes reais e perguntou-lhes se não havia alguma lei permitindo o irmão desposar a irmã. Os magistrados reais são homens escolhidos entre todos os Persas. Seu cargo é vitalício, a menos que cometam uma injustiça que os torne indignos dele. São eles que interpretam a lei e julgam os processos, convergindo todas as questões para o seu tribunal. Ante a consulta do soberano, responderam-lhe de uma maneira que, sem ferir a justiça, não os expunha ao seu desagrado. Disseram-lhe não existir absolutamente uma lei autorizando o irmão a casar-se com a irmã, mas que havia uma permitindo ao rei dos Persas fazer o que quisesse. Diante disso, Cambises desposou a irmã a quem amava, e pouco depois casava-se com outra irmã, a mais jovem. Foi essa que o acompanhou ao Egito e veio mais tarde a sucumbir em suas mãos.

XXXII - A morte dessa princesa, como a de Esmérdis, é relatada de duas maneiras. Segundo os Gregos, estava ela assistindo a uma luta entre um leãozinho e um cãozinho, incitados um contra o outro por Cambises. Vendo o irmão em desvantagem, o outro cão rompeu a corda que o prendia e lançou-se em seu socorro. Unindo suas forças, lograram superioridade sobre o leãozinho. O soberano deleitava-se com o espetáculo, mas a irmã, sentada a seu lado, debulhou-se em lágrimas ante aquela demonstração de espírito fraternal. Interrogando-a Cambises sobre aquela estranha atitude, ela respondeu nestes termos: "Não pude conter o pranto ao ver o outro cãozinho ir em auxílio do irmão porque lembrei-me da triste sorte de Esmérdis, cuja morte, bem o sei, jamais será vingada". Ouvindo-a falar assim, Cambises enfureceu-se e matou-a ali mesmo. Os Egípcios, por sua vez, contam que, achando-se a princesa à mesa com o soberano, apanhou do prato um pé de alface e, tirando-lhe todas as folhas, perguntou-lhe se ele parecia mais belo assim ou com as folhas que arrancara. "Cheio de folhas" - replicou Cambises. "Senhor, volveu ela - este pé de alface é a imagem da casa de Ciro, a qual despojaste". Irritado, Cambises atirou-se sobre ela, maltratando-a de tal maneira a pontapés, que ela deu à luz prematuramente, falecendo logo depois.

XXXIII - Tais foram os excessos de Cambises contra a família, ou porque sua fúria encerrasse uma punição pela sua ofensa ao boi Ápis, ou porque se manifestasse nele uma inclinação para a prática do mal, inclinação essa talvez congênita, pois dizem que desde a infância estava sujeito a ataques periódicos de epilepsia ou mal sagrado. Não é de admirar que sofrendo o corpo de uma tão grande moléstia, o espírito não se mantenha são.

XXXIV - Igual furor manifestou ele contra o resto dos Persas. Dizem que, certo dia, dirigindo-se a Prexaspes, a quem muito estimava e que tinha um filho escudeiro, um dos mais importantes cargos da corte, perguntou-lhe o que pensavam dele os Persas e que diziam quanto à sua maneira de governar. "Senhor, - respondeu Prexaspes - eles vos tributam os maiores louvores, mas acham que tendes excessiva predileção pelo vinho". "Querem eles então dizer - tornou Cambises encolerizado - que é o vinho que me faz perder a razão e cometer desatinos? Então os louvores que me dirigem não são sinceros?"

A Creso e aos grandes da Pérsia que compunham o conselho do rei perguntou Cambises, certa ocasião, se o consideravam capaz, pelas suas ações, de ombrear-se com o pai. Os membros do conselho real disseram que o consideravam superior a Ciro porque além de ter mantido sob o seu domínio os países subjugados pelo pai, ainda conquistara o Egito e a supremacia no mar. Creso, porém, não foi da mesma opinião. "Não me parece - disse-lhe ele - que já te possas comparar com teu pai, pois ainda não tens filhos, enquanto que ele possuía um ao morrer". Cambises, lisonjeado com essa resposta, aprovou o parecer de Creso.

XXXV - O soberano, que não conseguira esquecer a palestra que tivera com Prexaspes sobre seus súditos persas e a opinião destes a seu respeito, mandou-o vir novamente à sua presença, dizendo-lhe com insopitada ira: "Vamos verificar agora, Prexaspes, se os Persas estão com a razão ou se são eles que agem como insensatos quando falam de mim. Se eu atingir com esta seta o meio do coração do teu filho, que ali vês de pé, no vestíbulo, ficará demonstrado que eles se enganam. Se, porém, eu errar o alvo, é que a verdade está com eles e que sou eu o insensato. Assim falando, enristou o arco e expediu a seta, atingindo mortalmente o jovem. Vendo-o cair agonizante, mandou abrir-lhe o peito para ver onde atingira a seta, encontrando-a cravada no centro do coração. Cheio de alegria, voltou-se para Prexaspes e disse-lhe rindo: "Como vês, não sou eu o louco e sim aqueles que me acusam. Dize-me: já viste alguém atingir o alvo com tanta precisão?" Prexaspes, notando que tinha diante de si um demente furioso e receando pela vida, respondeu: "Senhor, não creio que possa o próprio deus acertar com maior precisão". Algum tempo depois desta cena, Cambises mandou enterrar vivos, de cabeça para baixo, doze Persas de grande projeção no país.

XXXVI - Sabedor desses desvarios, Creso julgou-se no dever de dar-lhe um conselho salutar. "Grande rei - disse-lhe ele - não te abandones à tua cólera e à impulsividade da tua juventude; torna-te senhor de ti mesmo e controla tuas ações. É necessário a um grande príncipe saber prever as coisas, e próprio de um homem sensato guiar-se pela prudência. Fazes morrer injustamente vários dos teus concidadãos e tiras a vida até mesmo de simples crianças. Toma cuidado para que, cometendo freqüentemente tais violências, não forces os Persas a se revoltarem contra ti. Faço-te esta advertência porque o rei teu pai recomendou-me expressamente que te desse bons conselhos e te advertisse sobre tudo aquilo que eu julgasse útil e vantajoso para a tua felicidade".

Essa linguagem refletia a brandura da alma de Creso. Cambises, porém, sentiu-se ferido no seu orgulho. "Também tu ousas dar-me conselhos, - retrucou - tu, que tão bem governaste teus estados, que acabaste perdendo-os para conquistadores estrangeiros? Tu, que deste tão bons conselhos a meu pai, exortando-o a atravessar o Araxes para atacar os Masságetas no seu próprio país, em vez de esperá-los em nossas terras, que o levaste à derrota e à morte? Esta tua ação não ficará impune; receberás o merecido castigo. Há muito que eu buscava um pretexto para vingar-me". Assim dizendo, tomou da flecha para trespassar Creso, que esquivou-se ao seu furor numa pronta fuga. Vendo que não podia alcançá-lo, Cambises ordenou a seus guardas que o perseguissem e o matassem. Estes, porém, conhecendo a volubilidade do seu caráter, ocultaram Creso, com a intenção de apresentá-lo ao soberano, se este, arrependendo-se, o quisesse novamente a seu lado. Esperavam, assim, obter uma recompensa por lhe haverem salvo a vida, embora estivessem dispostos a matá-lo se o soberano não reconsiderasse seu ato.

Com efeito, Cambises não tardou a arrepender-se de sua ação impensada, deplorando a morte de seu amigo e conselheiro. Os guardas, percebendo-lhe a mudança de ânimo, disseram-lhe que Creso ainda vivia. Cambises, embora satisfeito com a revelação, mandou matá-los por não haverem cumprido as ordens que lhes dera.

XXXVII - Durante sua permanência em Mênfis teve ainda outros acessos de loucura, tanto contra seus compatriotas como contra seus aliados. Mandou abrir túmulos antigos para identificar os mortos. Entrou no templo de Vulcano, fazendo mil ultrajes à estátua do deus. Essa estátua muito se assemelha aos pataicos{39}, colocados pelos Egípcios na proa de suas trirremes, e que, por sua vez, se parecem com pigmeus. Penetrou também no templo dos Cabiros, cujas leis proíbem a entrada a outra pessoa que não seja o sacerdote, e, após dirigir impropérios e motejos às estátuas, mandou queimá-las. As estátuas dos Cabiros assemelham-se às de Vulcano. De fato, há quem afirme serem os Cabiros filhos desse deus.

XXXVIII - Estou convencido de que Cambises estava louco, pois, se assim não fora, jamais ousaria escarnecer da religião e das leis.

Se se propusesse a todos os homens escolher entre todas as leis instituídas nos diversos países as que melhor lhes parecessem, de certo que, após um exame minucioso, cada qual se decidiria pelas de sua própria pátria, de tal modo estão os homens persuadidos de que não existem leis mais belas do que as deles.

Isso é uma verdade, confirmada por muitos exemplos, e, entre outros, pelo seguinte: Um dia, Dario, fazendo vir à sua presença alguns Gregos submetidos ao seu domínio, perguntou-lhes por que soma de dinheiro se decidiriam a comer os cadáveres de seus pais. Todos declararam que jamais fariam tal coisa, qualquer que fosse a quantia que lhes oferecessem. Mandou chamar, em seguida, os Cários, habitantes da Índia, acostumados a comer os pais, e perguntou-lhes, na presença dos Gregos, quanto queriam para queimar os pais depois de mortos. Os Indianos, horrorizados com a proposta, pediram-lhe para não insistir numa linguagem tão odiosa. Assim, nada mais exato do que a sentença que encontramos nos versos de Píndaro: A lei é a rainha de todos os homens.

XXXIX - Enquanto Cambises levava a guerra ao Egito, os Lacedemônios lançavam-se contra Samos e contra Polícrates, filho de Éaco, que, tendo-se revoltado, apoderara-se dessa ilha{40}, dividindo-a em três cantões e repartindo-a com Pantanhoto e Silóson, seus irmãos. Logo depois, porém, matou Pantanhoto e expulsou Silóson, o mais jovem, tornando-se senhor de toda a ilha. Fez então com Amásis, rei do Egito, um tratado de amizade, cimentado por presentes recíprocos. Seu poderio cresceu em pouco tempo, e logo sua fama estendeu-se pela Iônia e pelo resto da Grécia. A sorte acompanhava-o por toda parte onde ele levava suas armas Possuía cem navios de cinqüenta remos e mil homens de equipagem. Atacava e pilhava a todos, sem distinção, dizendo que daria maior prazer a um amigo restituindo-lhe o que lhe havia tirado, do que nunca lhe tirando coisa alguma. Apossou-se de várias outras ilhas e tomou grande número de cidades no continente. Venceu em combate naval os Lésbios, que tinham vindo, com todos os recursos de que dispunham, em socorro dos Milésios; e aprisionando-os e pondo-os sob grilhões, obrigou-os a cavar o fosso que circunda os muros de Samos.

XL - Informado da prosperidade de Polícrates, Amásis ficou inquieto, e, como ela se tornava cada vez maior, o soberano escreveu-lhe a seguinte carta:

"DE AMÁSIS A POLÍCRATES.

"É para mim muito agradável saber dos sucessos de um amigo e aliado; mas como conheço o ciúme dos deuses, essa grande felicidade me preocupa. Em benefício daqueles por quem me interesso, eu preferiria que os êxitos fossem contrabalançados por um número, correspondente de reveses; que houvesse uma alternação de venturas e azares, em lugar de uma felicidade constante e ininterrupta; pois nunca ouvi falar de homem algum que, tendo sido feliz em tudo, não viesse, por fim, a perecer desastrosamente. Se quiseres pôr à prova o que te digo, faze contra a tua boa fortuna o que te vou aconselhar. Procura ver qual a coisa que mais estimas e cuja perda te seria mais sensível. Feita a escolha, desfaze-te dela, de maneira que nunca mais possas encontrá-la. Se depois disso a fortuna continuar a favorecer-te em tudo, sem envolver alguma desgraça em meio aos favores, avisa-me para que eu me convença da inutilidade do meu conselho".

XLI - Polícrates, meditando sobre a sugestão de Amásis e achando-a prudente, resolveu segui-la. Procurou entre todas as suas jóias uma cuja perda lhe fosse mais sentida e decidiu-se por um anel de ouro incrustado de esmeralda, que costumava usar e que lhe servia de talismã. Fora gravado por Teodoro de Samos, filho de Telecleu. Disposto a desfazer-se da jóia, mandou equipar um navio e fez-se ao alto mar. Ao ver-se bem afastado da ilha, tirou o anel do dedo e lançou-o às águas profundas, à vista de todos os que o acompanhavam. Feito isso, ordenou que o reconduzissem à terra, e regressou ao palácio, sentindo-se já pesaroso com a perda de tão estimada jóia.

XLII - Cinco ou seis dias depois, um pescador, tendo apanhado um peixe de grandes proporções julgou-o digno de ser oferecido ao rei. Levou-o ao palácio e, conduzido à presença de Polícrates, dirigiu-se-lhe nestes termos apresentando-lhe o pescado: "Senhor, eis aqui um peixe que tive a boa sorte de apanhar. Embora trabalhe arduamente para ganhar a vida, achei que não devia levá-lo ao mercado por julgá-lo um presente digno de vós. Peço-vos, pois, que o aceiteis".

Envaidecido com as palavras e a atitude do pescador, Polícrates respondeu, apreciando o pescado: "Aceito-o de bom grado, e para te provar que te sou grato, convido-te para cear comigo". Quando o pescador regressou ao lar, ia radiante de satisfação pelo acolhimento que lhe dispensara seu soberano. Entretanto, abrindo o peixe, os cozinheiros encontraram dentro dele o anel de Polícrates. Cheios de alegria, foram entregá-lo ao rei, contando-lhe como o tinham achado. Maravilhado com o fato, Polícrates imaginou que havia em tudo aquilo algo de divino. Escreveu a Amásis uma descrição minuciosa relatando-lhe o que havia feito e o que lhe acontecera, confiando a carta a um mensageiro para que a levasse sem perda de tempo ao Egito e a entregasse pessoalmente.

XLIII - Lendo-a, Amásis reconheceu a impossibilidade de afastar um homem de seu destino, convencendo-se de que Polícrates não poderia acabar bem os seus dias. A fortuna lhe era de tal maneira favorável, que ele tornava a encontrar tudo que lançava para longe de si. Tomando uma súbita resolução, enviou um arauto a Samos para comunicar a Polícrates que renunciava à aliança que com ele mantinha. Fê-lo porque temia que a sorte de seu amigo e aliado desandasse e ele viesse a sofrer grande mágoa com isso.

XLIV - Foi contra esse soberano tão favorecido pela fortuna, que marcharam os Lacedemônios a pedido dos habitantes de Samos, que fundaram, pouco mais tarde, em Creta, a cidade de Sidônia. Quando Cambises se punha em marcha com seu exército para se lançar contra o Egito, Polícrates, querendo lhe ser agradável e, ao mesmo tempo, livrar-se de alguns elementos que se opunham ao seu mando, ofereceu-lhe parte de suas tropas. Cambises aceitou de boa vontade e pediu-lhe que destacasse uma força naval para acompanhá-lo na expedição. Polícrates escolheu aqueles que lhe pareciam mais inclinados à revolta e embarcou-os em quarenta trirremes, recomendando a Cambises que fizesse com que eles não mais regressassem a Samos.

XLV - Dizem uns que esses homens enviados por Polícrates não foram até o Egito. Ao chegarem ao mar Carpatiano, reuniram-se em conselho e deliberaram não prosseguir viagem. Outros afirmam que eles chegaram ao Egito mas que, embora sob vigilância, lograram fugir, velejando de regresso a Samos, e que Polícrates, indo ao seu encontro, dera-lhes combate, sendo derrotado. Vitoriosos sobre a frota de Polícrates, esses homens teriam desembarcado na ilha, ali sofrendo duro revés, o que os obrigou a se retirarem para os seus navios, indo refugiar-se na Lacedemônia.

Há quem assegure que esses descontentes, de volta do Egito, obtiveram uma vitória total sobre Polícrates. Tal opinião não me parece aceitável, pois se eles fossem suficientemente fortes para derrotar o soberano, não teriam ido solicitar auxílio aos Lacedemônios. Por outro lado, não se poderia conceber que Polícrates, tendo a seu soldo tantas tropas auxiliares e tantos guerreiros nativos, fosse derrotado por um pequeno número de súditos de volta à pátria. Acresce ainda a circunstância de manter ele em seu poder as mulheres e os filhos dos cidadãos de Samos, seus súditos. Tinha-os concentrado nos portos, com o propósito de queimá-los, juntamente com os portos, caso esses cidadãos o traíssem, unindo-se aos que regressavam do Egito.

XLVI - Chegando a Esparta, os habitantes de Samos derrotados em terra pelas forças de Polícrates foram procurar os magistrados, explicando-lhes num longo discurso sua situação e suplicando-lhes auxílio. Nesta primeira audiência os Lacedemônios lhes responderam que haviam esquecido o começo do discurso e que não haviam entendido o fim. Na segunda os habitantes de Samos levaram-lhes um saco de couro e lhes disseram somente que faltava farinha naquele saco. Os Lacedemônios tacharam de supérfluas essas palavras; contudo resolveram socorrê-los.

XLVII - Feitos os necessários preparativos, partiram em direção à ilha. Dizem os habitantes de Samos que os Lacedemônios os auxiliaram nessa ocasião em retribuição à ajuda deles recebida contra os Messênios; mas a dar-se crédito aos Lacedemônios, eles empreenderam essa expedição menos para auxiliar os estrangeiros exilados, do que para vingar-se daqueles que lhes haviam arrebatado a cratera que levavam a Creso, e, um ano antes, a couraça que Amásis, rei do Egito, lhes enviara de presente. Era uma couraça de linho, ornada com figuras de animais, tecidas em ouro e algodão. Embora muito delgados, cada um dos fios compunha-se de outros trezentos e sessenta, todos perfeitamente distintos. Essa couraça era semelhante à que Amásis enviara ao templo de Minerva de Linde.

XLVIII - Os Coríntios também colaboraram entusiasticamente na expedição dos Espartanos contra Samos pelo fato de os habitantes da ilha lhes terem feito várias afrontas algum tempo antes - certamente por ocasião do roubo da cratera.

Periandro{41}, filho de Cípselo, enviara a Aliata, em Sardes, trezentos meninos, filhos das melhores famílias da Corcira, para serem feitos eunucos. Os Coríntios que os conduziam escalaram em Samos, e os habitantes da ilha, informados do destino que pretendiam dar àquelas crianças, instruíram-nas a dirigir-se ao templo de Diana na qualidade de suplicantes, depois do que não consentiram mais que as tirassem dali. Como os Coríntios não permitissem que lhes levassem alimentos, os habitantes de Samos resolveram o problema instituindo uma festa, que ainda hoje ali se celebra da mesma maneira: Todos os dias, ao cair da noite, durante todo o tempo que os pequenos corcireus permaneceram no templo como suplicantes, organizavam coros infantis, tendo cada criança na mão doces de sésamo e mel, que repartiam com os corcireus, facultando-lhes assim alimento. Esses coros prosseguiram até a partida dos Coríntios, sendo então os jovens corcireus recambiados para a sua pátria.

XLIX - Se depois da morte de Periandro houvesse amizade entre os Corcireus e os Coríntios, bastaria isso para impedir que estes últimos auxiliassem os Lacedemônios na expedição contra Samos; mas desde a fundação da Corcira pelos Coríntios houve sempre forte animosidade entre os dois povos, embora sejam da mesma origem. Foi para vingar-se de uma afronta que, segundo se afirma, lhe fizeram os Corcireus, que Periandro enviou a Sardes aqueles trezentos meninos para serem reduzidos à condição de eunucos, sendo seus desejos frustrados pela intervenção dos habitantes de Samos.

L - Periandro, matando sua esposa Melissa, não tardou a ser punido por esse crime com o desprezo que lhe votou o seu filho mais moço. Tivera, de Melissa, dois filhos, deixados, um com a idade de dezessete anos, e o outro com dezoito. Procles, o avô materno, tirano de Epidauro, chamara-os para junto de si e os tratara com o carinho que um pai costuma dispensar aos filhos de seus filhos, e ao mandá-los de volta perguntou-lhes, à hora da despedida: "Meus filhos, sabeis que vosso pai matou vossa mãe?" O mais velho nenhuma importância deu a essas palavras, mas o mais jovem, de nome Lícofron, ficou de tal maneira chocado com aquela revelação que, de regresso a Corinto, recusou-se a saudar o pai, por considerá-lo o assassino da mãe, evitando palestrar com ele e negando-se a responder-lhe quando interrogado. Por fim, Periandro, indignado, expulsou-o de casa.

LI - Desejando saber a razão da atitude que o filho mais moço mantivera para com ele de volta ao lar, Periandro inquiriu o outro sobre o que lhes havia dito o avô. O jovem falou-lhe sobre o bom acolhimento que tinham tido, sem contudo fazer nenhuma referência às palavras do avô quando deles se despedira, pois já as havia esquecido. Periandro insistiu, dizendo que era impossível que o avô não tivesse dado algum conselho ou mesmo influenciado o ânimo de Lícofron contra ele; e assediou o jovem com tantas perguntas, que ele acabou por lembrar-se do que lhes revelara Procles. Cientificado do ocorrido, Periandro, após alguns momentos de reflexão, resolveu não usar mais de indulgência para com o filho expulso e proibiu aqueles que lhe deram abrigo de voltar a fazê-lo. Banido de um lugar, Lícofron procurava pousada noutro, mas logo tinha de deixá-lo ante as ameaças de Periandro; e assim ia passando da casa de um amigo para a de outro, pois, embora estes temessem Periandro, não se negavam a dar-lhe asilo por tratar-se do filho do rei.

LII - Por fim, o soberano fez publicar um édito declarando que aquele que acolhesse Lícofron em sua casa ou com ele falasse incorreria numa pena especificada e aplicável no templo de Apolo. Ninguém mais ousou receber o jovem e nem manter qualquer contato com ele. O próprio Lícofron, não querendo burlar a proibição do pai, passou a dormir ao relento. No quarto dia, Periandro, vendo-o sujo e faminto, sentiu-se tomado de compaixão. Aproximando-se do jovem, falou-lhe nestes termos: "Então, meu filho, que vale mais na tua opinião, o teu estado atual ou o soberano poder e as vantagens que desfruto e de que podes compartilhar comigo, prestando-me obediência? Como, sendo tu filho do soberano da rica Corinto, preferes uma vida errante e vagabunda, irritando com a tua teimosia e desdém aquele a quem menos devias ofender? Se alguma desgraça adveio fazendo-te suspeitar da minha conduta, essa desgraça recaiu sobre mim; e sinto-a tanto mais vivamente quanto dela fui o causador. Tu, que sabes por experiência que mais vale despertar inveja do que piedade e onde leva a cólera contra um pai, e, sobretudo, contra um pai que tem a força na mão, reconsidera tua atitude e retorna ao palácio".

Periandro procurava, assim, chamar o filho à razão, mas este limitou-se a dizer-lhe que, dirigindo-lhe a palavra, ele estava incorrendo na pena por ele próprio estabelecida. O soberano, compreendendo que nada poderia fazer para vencer a aversão que o filho lhe votava, afastou-o para longe de si enviando-o para a Corcira, da qual também era senhor. Em seguida marchou contra seu sogro Procles, a quem considerava responsável por aquela animosidade. Apoderou-se da cidade de Epidauro e aprisionou Procles, poupando-lhe, entretanto, a vida.

LIII - Tempos depois, Periandro, já idoso e não se sentindo mais em condições de zelar pelos negócios do reino e governar por si mesmo, mandou buscar Lícofron na Corcira, para lhe confiar as rédeas do Estado. O filho mais velho era imbecil, e o soberano sabia-o incapaz para tal função. Lícofron nem mesmo se dignou responder à mensagem do pai; mas Periandro, que o amava enternecidamente, enviou-lhe a irmã, na esperança de que ela fosse mais bem sucedida. Ao chegar a Corcira, a princesa assim se dirigiu ao irmão: "Preferes, então, Lícofron, ver o poder passar para as mãos de estrangeiros e os bens de teu pai dissipados, a tomar a direção deles? Volta ao lar e cessa de atormentar a ti mesmo. O orgulho é mau conselheiro. Não procures curar um mal com outro. Muitas pessoas deixam-se vencer mais facilmente pela brandura do que pela severidade, embora justa, e não são poucas as que, defendendo os direitos da mãe, perderam os que tinham junto ao pai. A tirania é como uma mulher volúvel, sempre assediada por mil amantes que aspiram conquistá-la. Sê tolerante. Periandro já está velho e necessita de um continuador. Não abandones a outros o que te pertence".

Mesmo ante tão convincente linguagem Lícofron mostrou-se irredutível, declarando que não voltaria a Corinto enquanto soubesse vivo Periandro. A princesa regressou para junto do pai e transmitiu-lhe a resposta. Sem se dar por vencido, o soberano enviou pela terceira vez um emissário ao filho para dizer-lhe que pretendia retirar-se para a Corcira, e que ele, Lícofron, podia regressar a Corinto e tomar posse da coroa. O jovem príncipe aceitou a proposta, e Periandro preparou-se para partir para a Corcira; mas os Corcireus, informados do que se passava e não desejando tê-lo na ilha, assassinaram Lícofron. Foi essa a razão que levou Periandro a vingar-se dos Corcireus.

LIV - Chegando a Samos com uma poderosa frota, os Lacedemônios cercaram a cidade e aproximaram-se das muralhas, deixando para trás a torre que fica à beira-mar, nos subúrbios da ilha; mas contra-atacados por forças consideráveis sob o comando do próprio Polícrates, viram-se obrigados a recuar. Quase ao mesmo tempo, as tropas auxiliares, acompanhadas de grande número de habitantes de Samos, saíram da torre superior, localizada no alto da montanha, e caíram sobre eles. Após breve mas encarniçada luta, os invasores puseram-se em fuga; e os vencedores, perseguindo-os, mataram grande número deles.

LV - Se os Lacedemônios que tomaram parte nessa expedição bélica se tivessem conduzido como Árquias e Licopas, Samos teria sido capturada. Árquias e Licopas investiram sozinhos contra os habitantes da ilha e, pondo-os em fuga, entraram na cidade de atropelo, quase se confundindo com os fugitivos; mas como lhes barrassem o caminho e eles não pudessem sair, ali pereceram.

Encontrei-me um dia com outro Árquias, filho de Sâmio e neto desse Árquias de quem acabo de falar. Foi em Pitana, burgo onde ele nasceu. Dava mais importância aos habitantes de Samos do que a todos os outros estrangeiros, e informou-me que haviam atribuído a seu pai o nome de Sâmio, por ser o mesmo filho daquele Árquias morto em Samos quando valentemente combatia. Acrescentou votar particular estima à gente de Samos porque esta havia sepultado seu avô às expensas dos poderes públicos.

LVI - Vendo que o cerco se prolongava e que ao cabo de quarenta dias não tinham feito nenhum progresso, os Lacedemônios voltaram para o Peloponeso. Há quem afirme, mas sem fundamento, que Polícrates deu-lhes grande quantidade de moedas de chumbo douradas, cunhadas num recanto do país, e que, conquistados por esses presentes, retiraram-se de regresso à pátria. Foi essa a primeira expedição dos Lacedemônios-Dórios na Ásia.

LVII - Aqueles dentre os habitantes de Samos que haviam lutado contra Polícrates, vendo-se em risco de serem abandonados pelos Lacedemônios, apressaram-se em deixar a ilha, velejando para Sifnos, por lhes faltar dinheiro. Os Sífnios constituíam então uma nação florescente e das mais ricas entre as insulares. Era tal a quantidade de minas de ouro e prata existentes e exploradas no país, que, com os impostos delas provenientes, os Sífnios ofereceram a Delfos um tesouro comparável aos mais ricos que havia no templo. O produto dessas minas era repartido entre eles todos os anos; e, enquanto trabalhavam na formação desse tesouro, consultaram o oráculo para saber se poderiam desfrutar por muito tempo os bens presentes, tendo a pitonisa respondido: "Quando o Pritaneu de Sifnos ficar branco e a praça pública ganhar o mesmo aspecto, tereis então muita necessidade de um homem sábio e prudente para vos garantir contra uma armadilha de madeira e um arauto vermelho".

LVIII - A praça pública e o Pritaneu de Sifnos eram de mármore de Paros. Os Sífnios não puderam apreender o sentido do oráculo, nem na ocasião em que lho deram, nem mesmo quando ali aportaram os que se exilavam de Samos. Estes, mal haviam chegado, enviaram à cidade um navio com embaixadores. Os antigos costumavam pintar seus navios de vermelho, e ali estava, portanto, o significado daquele oráculo, advertindo os Sífnios que se guardassem contra uma armadilha de madeira e um embaixador vermelho. Assim que desembarcaram, os embaixadores pediram aos Sífnios que lhes emprestassem dez talentos, e não sendo atendidos saquearam os campos. Sabedores do ocorrido, os Sífnios pegaram imediatamente em armas e deram combate aos estrangeiros, sendo porém derrotados. Grande número deles teve a retirada cortada e não pôde retornar à cidade. Vencedores, os retirantes de Samos exigiram dos vencidos cem talentos.

LIX - Com o dinheiro assim obtido, os exilados de Samos adquiriram dos Hermiônios a ilha de Hidréia, perto do Peloponeso, dando-a como penhor aos Trezênios. Dali velejaram para Creta, onde derrotaram Cidônia, embora não tivessem ali ido com esse propósito. Conquistando-a, nela fixaram residência, e durante cinco anos gozaram de tal prosperidade que, não somente construíram os templos que ainda hoje podem ser vistos em Cidônia, como também o grande templo de Dictínia. No fim desse período foram derrotados pelos Eginetas num combate naval e reduzidos à escravidão, com o auxílio dos Cretenses. Os vencedores desarmaram as proas dos seus navios, retiraram os javalis que lhes serviam de ornamento e ofereceram-nos a Egina.

Os Eginetas foram levados a tal vingança pelo ódio incruento que votavam aos filhos de Samos, que lhes haviam movido guerra na época em que Anfícrates reinava na ilha, causando-lhes grande dano. Derrotando-os, os Eginetas sentiam-se agora bem vingados.

LX - Estendi-me bastante sobre Samos, e por uma razão muito simples: sua gente realizou três das maiores obras existentes em toda a Grécia. Há nessa ilha uma montanha de cento e cinqüenta braças de altura. Perfuraram-na pela base, abrindo um túnel com duas bocas ou aberturas, com sete estádios de comprimento, oito pés de altura e outros tantos de largura. Ao longo do túnel cavaram um canal com vinte côvados de profundidade e três pés de largura, atravessando toda a montanha. Esse canal leva à cidade, através de canos, a água de uma grande fonte. O arquiteto que realizou essa obra era natural de Mégara e chamava-se Eupalino, filho de Naustrofo. Foi esse um dos três grandes trabalhos da gente de Samos. O segundo consiste num dique construído na orla marítima, perto do porto, medindo cerca de vinte braças de altura e dois estádios de comprimento. O terceiro foi um templo, o maior de que temos conhecimento, construído por um natural do país, de nome Récus{42}, filho de Fileu. Aí está, como já disse, a razão pela qual discorri tão amplamente sobre Samos.

LXI - Enquanto Cambises, filho de Ciro, perdia seu tempo no Egito e cometia desatinos, dois magos irmãos aproveitaram a ocasião para se revoltarem. O soberano havia deixado um deles na Pérsia para administrar os seus bens, e foi este o organizador da revolta. Esse mago não ignorava a morte de Esmérdis; sabia que a ocultavam; que ela não era conhecida senão por um pequeno número de pessoas, e que a maioria pensava que esse príncipe ainda vivia. Esse fato e outras circunstâncias a que farei referência fizeram-no tomar a resolução de apoderar-se do trono. Acompanhou-o na revolta seu irmão, que apresentava notável semelhança com Esmérdis, morto por Cambises, tendo também o mesmo nome do malogrado príncipe. O outro chamava-se Patizites, e foi ele quem acabou por colocar o irmão no trono, assegurando-lhe que havia de aplainar todos os obstáculos. Pondo o seu plano em execução, enviou emissários a todas as províncias e, particularmente, ao Egito, para fomentar a desobediência entre as tropas de Cambises e levá-las a não reconhecer como rei, dali por diante, senão a Esmérdis, filho de Ciro.

LXII - Cumprindo as ordens, os arautos lançaram essa proclamação por toda parte. O que fora enviado ao Egito encontrou Cambises, com o seu exército, em Ecbatana, na Síria, e, no meio do acampamento, tornou públicas as ordens do mago. Ouvindo a proclamação e julgando dizer o arauto a verdade, Cambises acreditou que havia sido traído por Prexaspes e que este não matara Esmérdis. "Então é assim, Prexaspes, - disse-lhe, encarando-o fixamente - que cumpres o que te ordeno?" "Senhor, - respondeu Prexaspes - é inteiramente falso o conteúdo dessa proclamação. Nada tendes a temer do vosso irmão Esmérdis, pois ele jamais poderá revoltar-se contra vós. Executei pessoalmente as vossas ordens e sepultei o cadáver com as minhas próprias mãos. Se os mortos ressuscitam, então veríeis o medo Astíages erguer-se contra vós. Podeis, porém, estar certo de que as coisas se processam como sempre se processaram e que nenhum mal vos advirá da parte de Esmérdis. Se me permitis, sugiro que façais vir o arauto à vossa presença e que o interrogueis sobre quem o enviou aqui para dizer-nos que devemos obedecer às ordens do rei Esmérdis".

LXIII - Aceitando a sugestão de Prexaspes, Cambises fez vir o arauto à sua presença e o interrogou nestes termos: "Dizes, meu amigo, que vens da parte de Esmérdis, filho de Ciro. Como não creio nisso, exijo que confesses a verdade. Se o fizeres, te deixaremos ir em paz. Viste, por acaso, Esmérdis? Deu-te, ele próprio, essas ordens? Recebeste-as de algum dos seus ministros?" "Na verdade, - respondeu o arauto - desde a partida do rei Cambises para o Egito não mais vi Esmérdis, filho de Ciro. Foi o mago que ficou administrando os bens de Cambises quem me deu as instruções que acabo de cumprir em nome de Esmérdis, filho de Ciro".

Ouvindo a resposta do arauto, Cambises voltou-se para Prexaspes, dizendo-lhe: "Estou convencido de que executaste fielmente a missão que te confiei, e nada tenho a censurar-te... mas quem, dentre os Persas, adotando o nome de Esmérdis, terá ousado revoltar-se contra mim?" "Senhor, - volveu Prexaspes - creio haver compreendido o que se passou: os magos sublevaram-se contra vós. Refiro-me, como sabeis, a Patizites, que deixastes na Pérsia administrando os vossos bens, e ao seu irmão Esmérdis".

LXIV - Ante o nome de Esmérdis, Cambises lembrou-se do sonho que tivera, no qual lhe parecera ver um arauto anunciando-lhe que Esmérdis, sentado no seu trono, tocava o céu com a cabeça. Reconhecendo que havia feito perecer o irmão injustamente, não pôde conter as lágrimas. Depois de muito chorar e lamentar-se pelos seus muitos infortúnios, lançou-se rápido ao cavalo, com o propósito de marchar incontinênti para Susa, contra os usurpadores do trono; mas, ao montar, a bainha da sua cimitarra caiu, e a arma nua feriu-o na coxa, no mesmo lugar onde ele havia, tempos antes, atingido o boi Ápis, deus dos Egípcios. Como o ferimento lhe parecesse mortal, quis saber o nome da cidade onde então se achava. Disseram-lhe que era Ecbatana.

O oráculo da cidade de Buto havia predito que ele findaria seus dias em Ecbatana, e ele julgara, por aquele vaticínio, que deveria morrer de velhice em Ecbatana, na Média, onde se encontravam todas as suas riquezas; mas o oráculo se referia à outra Ecbatana, situada na Síria. Assim, ao ouvir o nome da cidade, o soberano, acabrunhado pela traição dos magos em que confiara e pela dor que lhe causava o ferimento, compreendeu então o verdadeiro sentido do oráculo: "É aqui que Cambises, filho de Ciro, deve acabar os seus dias, segundo os desígnios dos fados".

LXV - Cambises manteve-se em completo mutismo e mergulhado em seus pensamentos durante vinte dias. Finalmente, tomou uma resolução: convocou os Persas mais importantes que faziam parte do seu exército e fez-lhes o seguinte discurso: "Persas, é chegado o momento de vos revelar algo que até o momento procurei manter em segredo. Quando me achava no Egito, tive, durante o sono, uma visão - e provera aos deuses que eu não a tivesse tido. Pareceu-me ver um correio chegando ao meu palácio e anunciando-me que Esmérdis se achava sentado no trono e que sua cabeça tocava o céu. Acreditando, por tal visão, que meu irmão tencionava roubar-me a coroa, tomei medidas precipitadas, sem dar ouvidos à prudência, pois não é dado aos homens modificar os destinos. Num momento de irreflexão, enviei Prexaspes a Susa para eliminar Esmérdis, que eu supunha uma ameaça para mim. Morto este, fiquei tranqüilo, não podendo imaginar que outro viesse a sublevar-se contra mim. Minhas previsões, porém, foram contrariadas pela realidade dos fatos. Verti inutilmente o sangue de meu irmão, pois nem por isso furtei-me ao risco de ficar sem a coroa. O que um deus me mostrava em sonhos não era quem eu imaginara, mas o mago Esmérdis. Era esse que, segundo os desígnios dos deuses, deveria revoltar-se contra mim. Cumpriram-se os fados. Esmérdis, filho de Ciro, está morto, e o mago a quem encarreguei da gerência dos meus bens, e seu irmão, que traz o mesmo nome do meu, apoderaram-se do trono. Aquele que poderia, melhor que ninguém, vingar-me desse golpe odioso, foi morto pelas mãos ímpias dos seus mais próximos parentes. Enfim, o que está feito está feito, e não me resta senão transmitir-vos as minhas ordens e dizer-vos o que desejo que façais depois de minha morte. Peço-vos, ó Persas, pelos deuses protetores dos reis; eu vos conjuro, a vós, principalmente, Aquemênidas, aqui presentes, não suportardes que o império volte às mãos dos Medos. Se eles conseguirem conquistá-lo pela astúcia, recuperai-o pela astúcia também; se o obtiverem pela força, reconquistai-o igualmente pela força. Se fizerdes o que vos recomendo e conservardes vossa liberdade, possa a terra favorecer-vos com frutos em abundância! Possam vossas mulheres dar-vos grande número de filhos, e vossos rebanhos se multiplicarem numa venturosa fecundidade! Se não recuperardes o império; se nenhum esforço fizerdes para reconquistá-lo, não somente faço votos de que o contrário de tudo isso vos aconteça, como desejo a todos os Persas um fim igual ao meu".

LXVI - Após esse discurso, Cambises pôs-se a deplorar sua sorte, e os Persas presentes, vendo-o debulhado em lágrimas, puseram-se a rasgar as roupas em desespero e a soltar gemidos prolongados. Pouco depois manifestou-se a infecção no ferimento produzido pela cimitarra, e a gangrena não tardou a propagar-se por toda a coxa do soberano, vindo ele a falecer, após haver reinado sete anos e cinco meses. Cambises morreu sem deixar filhos. Os Persas presentes ao desenlace, embora sentindo a sua perda, não estavam convencidos de que os magos se haviam apoderado da coroa. Pensavam que o que Cambises lhes dissera sobre a morte de Esmérdis era efeito do ódio que votava àquele príncipe, para que todos os Persas lhe fizessem guerra. Acreditavam que o golpe havia sido realmente tramado por Esmérdis, filho de Ciro, e que era este que estava ocupando o trono; e o que mais fortalecia a sua crença era o fato de ter Prexaspes negado terminantemente haver executado o jovem, porquanto, morto Cambises, não achou conveniente confessar que o assassinara com suas próprias mãos.

LXVII - Depois da morte de Cambises, o mago, mercê do nome de Esmérdis, reinou tranqüilamente durante os sete meses que faltavam para completar o oitavo ano de governo do seu predecessor. Durante esse período cumulou de benefícios os súditos, de maneira que, ao morrer, foi pranteado por todos os povos da Ásia, com exceção dos Persas. Logo que assumiu o poder, mandou publicar, em todas as províncias, éditos pelos quais isentava os súditos, por três anos, de todos os tributos, subsídios e, também, do serviço militar.

LXVIII - No oitavo mês teve sua identidade revelada da maneira que passo a expor: Havia na corte um cidadão chamado Otanes, filho de Farnaspe. Sendo de origem nobre e possuidor de grande fortuna, convivia com as figuras mais ilustres da Pérsia. Otanes foi o primeiro a suspeitar que o novo rei não era Esmérdis, filho de Ciro, mas sim o mago, como realmente acontecia. Suas suspeitas fundavam-se no fato de o rei jamais abandonar a cidadela, só se fazendo acessível a alguns dos grandes da Pérsia. Convencido, pois, de que o novo soberano não passava de um impostor, Otanes serviu-se do seguinte meio para desmascará-lo:

Uma de suas filhas, Fédima, havia sido desposada por Cambises, e, como todas as outras esposas do falecido soberano, ela pertencia agora ao mago. Assim, mandou perguntar à filha quem era aquele com quem coabitava; se Esmérdis, filho de Ciro, ou outro qualquer. Fédima respondeu que não sabia ao certo, pois jamais vira Esmérdis, filho de Ciro, nem tão pouco conhecia com segurança aquele que a admitira no número de suas mulheres. "Se não conheceste Esmérdis, filho de Ciro, - mandou ele dizer-lhe pela segunda vez - pergunta a Atossa quem é esse homem com o qual tu e ela vivem; ela deve conhecer perfeitamente seu irmão Esmérdis". Fédima respondeu: "É-me impossível falar com Atossa, assim como comunicar-me com qualquer das outras mulheres. Desde que esse homem, quem quer que ele seja, se apoderou do trono, dispersou-nos, mantendo-nos em alojamentos separados".

LXIX - Ante essa resposta, a questão pareceu clara a Otanes. Enviou uma terceira mensagem a Fédima: "Minha filha, é preciso que uma mulher de alta linhagem como tu se exponha ao perigo; é teu pai quem a isso te exorta; é ele quem te ordena. Se o rei não é Esmérdis, filho de Ciro, mas aquele que suponho, não deves continuar sendo sua mulher e nem ocupar ele impunemente o trono da Pérsia; ele merece ser prontamente castigado. Segue, pois, meu conselho e faze o que te vou indicar. Quando ele estiver contigo e o vires adormecido, apalpa-lhe as orelhas; se ele as tiver, é o filho de Ciro; se não as tiver, é Esmérdis, o mago".

Fédima respondeu que ia expor-se a um grande perigo, pois não tinha dúvida de que, se o rei não tivesse orelhas e a surpreendesse a procurá-las, matá-la-ia imediatamente. Não obstante, prometia executar-lhe as ordens. Convém notar que Cambises mandara cortar, durante seu reinado, as orelhas de Esmérdis, o mago, por uma falta grave que ele cometera.

As mulheres, na Pérsia, têm o costume de deitar-se com o marido cada uma por sua vez. Chegando a vez de Fédima, ela fez o que prometera ao pai. Ao ver o mago profundamente adormecido, tateou-lhe as orelhas, e verificando, sem pesar, que ele não as possuía, informou o pai a respeito, logo ao romper do dia.

LXX - Otanes foi, então, à procura de Aspatino e de Góbrias, que gozavam do mais alto prestígio entre os Persas e nos quais depositava a maior confiança, revelando-lhes o que acabava de descobrir. Aspatino e Góbrias não relutaram muito em lhe dar crédito, tanto mais que já nutriam, desde muito, suas suspeitas. Ficou então resolvido entre eles que cada qual procuraria aliciar um dos Persas em quem mais confiasse, para a revolta. Otanes aliciou Intafernes; Góbrias, Megabizo, e Aspatino, Hidarnes. Eram eles em número de seis, quando Dario, filho de Histaspes, voltando da Pérsia, onde o pai ocupava as funções de governador, chegou a Susa. Logo que o viram de regresso, procuraram obter seu apoio e cooperação.

LXXI - Reunindo-se os sete, juraram fidelidade recíproca e puseram-se a discutir sobre o melhor meio de ação. Ao chegar a vez de Dario emitir sua opinião, declarou ele: "Eu julgava ser o único a ter conhecimento da morte de Esmérdis, filho de Ciro, e a saber que o mago reinava em lugar dele; e foi por isso mesmo que apressei-me a vir aqui, com o propósito de eliminar o usurpador; mas já que estais também a par da mistificação, sou de parecer que devemos agir prontamente e com a máxima energia; de outra forma, correremos perigo". "Filho de Histaspes, - respondeu Otanes - nascido de pai ilustre e corajoso, mostrais não lhe ser inferior em nada. Procurai, porém, não agir inconsideradamente e com precipitação; que a prudência seja vosso guia. Quanto a mim, sou de opinião que não devemos iniciar o movimento enquanto não tivermos conseguido um bom número de adeptos". "Persas, - replicou Dario - se seguirdes os conselhos de Otanes estareis perdidos; perecereis miseravelmente. O engodo de uma recompensa levará logo alguém a denunciar-vos ao mago. Devíeis executar a empresa sozinhos e sem comunicá-la a outros; mas como julgastes conveniente participá-la a muitos e envolver-me também no vosso conluio, é forçoso que a executemos hoje mesmo.

Se tentardes adiá-la, eu vos afirmo que tomarei a dianteira e irei, em pessoa, denunciá-la ao mago".

LXXII - Testemunhando o ardor de Dario, Otanes redarguiu: "Já que nos forçais a apressar a execução do nosso plano e não nos permitis adiá-la, dizei-nos então como havemos de penetrar no palácio e atacar os usurpadores; pois sabeis tão bem quanto nós que há ali guardas por todos os cantos. De que maneira poderemos burlar-lhes a vigilância?"

"Há coisas, Otanes, - volveu Dario - que não podemos conceber por palavras, mas somente por ações; há outras, ao contrário, fáceis de explicar e das quais nada resulta de positivo. Sabeis que não é difícil passar pelos guardas. Em primeiro lugar, ninguém ousará, por uma questão de respeito e temor, impedir a entrada no palácio a pessoas da nossa categoria. Em segundo lugar, tenho um pretexto muito plausível para ali entrar: direi que venho da Pérsia e trago uma comunicação urgente para o rei, da parte de meu pai. Quando é necessário mentir, não devemos ter escrúpulo em fazê-lo. Os que mentem desejam a mesma coisa que os que dizem a verdade: mente-se com o propósito de tirar algum proveito disso; diz-se a verdade, também, tendo em vista alguma vantagem e para conseguir impor confiança. Assim, embora não seguindo os mesmos caminhos, atingimos o mesmo fim. Se não houvesse nada a lucrar, seria indiferente àquele que diz a verdade pregar antes uma mentira, ou ao que mente, dizer antes a verdade. O guarda que nos deixar passar de boa vontade, será recompensado. Aquele que, ao contrário, tentar impedir-nos, será tratado, no mesmo instante, como inimigo. Penetraremos no interior do palácio e realizaremos nosso propósito".

LXXIII - Tomando a palavra, assim falou Góbrias: "Que honra, meus amigos, há-de ser para nós reavermos o império, ou se não lograrmos êxito, perecermos de armas na mão! Que vergonha para um persa obedecer a um medo, a um mago, ao qual tiraram as orelhas! Todos vós, que permanecestes ao lado de Cambises e acompanhastes os sofrimentos que o levaram à morte, não esquecestes, sem dúvida, as imprecações que ele dirigiu contra os Persas ao ver chegado o seu fim, e o que de mau lhes augurou se eles não se esforçassem para recuperar a coroa. Então, nenhuma importância demos às suas palavras, pois julgávamos que ele assim se expressava para tornar o irmão odiado. Agora, que a verdade foi revelada, sou de opinião que devemos seguir o parecer de Dario e atacar, sem perda de tempo, os usurpadores". O alvitre de Góbrias foi unanimemente aprovado.

LXXIV - Enquanto eles deliberavam, os magos, por coincidência, também confabulavam entre si. Resolveram ligar-se a Prexaspes, por saberem que Cambises o tratara de maneira indigna, matando-lhe o filho com uma flechada, e que só ele era conhecedor da morte de Esmérdis, filho de Ciro, que ele eliminara com suas próprias mãos. Além disso, não ignoravam que os Persas o tinham em grande estima. Por conseguinte, mandaram chamá-lo, tudo fazendo para conquistar-lhe as boas graças. Exigiram dele a palavra de honra de que não revelaria a ninguém o logro que haviam pregado aos Persas, guardando disso o máximo segredo, prometendo-lhe, em troca, cumulá-lo de riquezas. Prexaspes comprometeu-se a fazer o que desejavam. Diante disso, os magos propuseram-lhe subir a uma torre e anunciar aos Persas convocados junto aos muros do palácio, ser verdadeiramente Esmérdis, filho de Ciro, que reinava sobre eles, e não outro. Os magos assim agiam por conhecerem a grande influência de que aquele homem gozava entre os Persas e por haver ele próprio declarado que Esmérdis, filho de Ciro, ainda vivia, sendo falsa a versão de sua morte, pela qual davam como responsável a ele, Prexaspes.

LXXV - Tendo Prexaspes se mostrado disposto a fazer o que os magos desejavam, convocaram estes os Persas para reunião diante do palácio e fizeram Prexaspes subir a uma torre para dirigir-lhes a palavra; mas este, esquecendo propositalmente o pedido dos magos, pôs-se a discorrer sobre a genealogia de Ciro desde Aquêmenes, e quando, finalmente, chegou a Ciro, fez a enumeração de todos os bens com que este havia cumulado os Persas. Depois desse preâmbulo, revelou toda a verdade, que até ali havia ocultado, disse ele, porque lhe era perigoso confessar o que realmente se passara; mas que nas circunstâncias presentes via-se forçado a fazê-lo. Por fim, confessou ter executado Esmérdis por ordem de Cambises e declarou que eram os magos que reinavam atualmente. Augurando grandes males para os Persas, caso eles não recuperassem o império e não se vingassem dos magos, precipitou-se do alto da torre, de cabeça para baixo. Assim morreu Prexaspes, que durante toda a existência gozara da reputação de homem de bem.

LXXVI - Os sete Persas, tendo resolvido atacar sem demora os magos, marcharam em direção ao palácio, depois de haverem dirigido preces aos deuses. Não sabiam ainda da aventura de Prexaspes, da qual só foram informados na metade do caminho. Ante a notícia, interromperam a marcha para confabular e deliberar entre si. Otanes continuava a opinar pelo adiamento da empresa, achando perigosa qualquer tentativa em situação tão crítica; mas Dario achava que deviam agir imediatamente e executar sem delongas o que haviam planejado. Discutiam ainda o assunto, quando avistaram sete casais de gaviões perseguindo dois casais de abutres, alcançando-os finalmente e estraçalhando-os com o bico e as garras. Ante aquela cena, os Persas concordaram com Dario, e cheios de confiança no presságio encaminharam-se para o palácio.

LXXVII - Ao chegarem às portas da habitação real, deu-se exatamente o que Dario previra: os guardas, respeitando-lhes a alta linhagem e de nada suspeitando, deixaram-nos passar, sem mesmo inquiri-los sobre o motivo que ali os levava. Os conjurados agiam realmente pela mão dos deuses Ao penetrarem no pátio do palácio encontraram os eunucos encarregados de apresentar ao rei as mensagens dos visitantes. Os servos reais perguntaram logo a razão daquela visita, e ameaçando os guardas por terem-nos deixado entrar, tentaram embargar-lhes os passos. Os sete conjurados, encorajando-se mutuamente, caíram de gládio em punho sobre os que pretendiam detê-los, e, matando-os, lançaram-se para o alojamento dos homens. Os dois magos estavam justamente deliberando sobre o procedimento de Prexaspes.

LXXVIII - Chegando-lhes aos ouvidos os gritos dos eunucos, precipitaram-se para o local do tumulto, e vendo o que se passava procuraram pôr-se em guarda. Um deles lançou mão de um arco, e o outro de uma lança. Achando-se, porém, o inimigo já muito próximo, o arco tornou-se inútil a quem o brandia; mas o outro mago procurou defender-se com a lança, conseguindo ferir Aspatino na coxa e Intafernes num dos olhos. Este veio a perder, em conseqüência, o olho atingido, mas não morreu do ferimento. O mago que empunhava o arco, vendo a inutilidade da arma, fugiu para um quarto que se comunicava com o alojamento dos homens e tentou fechar a porta. Dario e Góbrias atiraram-se sobre ele. Góbrias conseguiu agarrá-lo, mas como era grande a escuridão ali reinante, Dario receou ferir Góbrias, ficando bastante embaraçado, sem saber o que fazer. Vendo-o hesitante, Góbrias perguntou-lhe por que não eliminava de uma vez o usurpador. "Receio ferir-te" - respondeu Dario. "Ataca, - volveu Góbrias - ainda que venhas a ferir-me". Dario obedeceu, e, num golpe feliz, atingiu apenas o mago.

LXXIX - Depois de haverem matado os magos, cortaram-lhes a cabeça, e deixando na cidadela os dois companheiros feridos, não somente para guardá-la, como porque não estavam em condições de acompanhá-los, os outros cinco conjurados, levando nas mãos as cabeças dos usurpadores, deixaram o palácio dando gritos de vitória e fazendo enorme tumulto. Chamando em altos brados os Persas, relataram-lhes o que se tinha passado, mostrando-lhes as cabeças decepadas dos dois intrujões e atacando, ao mesmo tempo, todos os magos que se apresentavam diante deles. Os Persas, informados do golpe dos sete conjurados contra os astutos magos, resolveram secundar-lhes a ação, e desembainhando a espada puseram-se a atacar impiedosamente todos os magos que encontravam; e se a noite não viesse interromper o massacre, não escaparia um só.

Os Persas celebram com muita solenidade essa data, realizando uma de suas maiores festas, denominada Magofonia. Nesse dia não é permitido aos magos aparecer em público, ficando eles encerrados em suas casas.

LXXX - Cinco dias depois do restabelecimento da ordem, os que se tinham sublevado contra os usurpadores reuniram-se em conselho para tratar do estado atual dos negócios. Suas deliberações, embora pareçam inverossímeis a alguns Gregos, não são por isso menos verdadeiras. Otanes, exortando os Persas a exercerem a autoridade em comum, assim lhes falou: "Sou de parecer que não se deve, de agora em diante, confiar a administração do Estado a um único homem, pois o governo monárquico não é nem suave nem bom. Vistes o grau de insolência a que chegou Cambises, e acabastes de experimentar a autoridade do mago. Como, pois, poderá ser a monarquia uma boa forma de governo, se o monarca faz o que quer, sem prestar conta dos seus atos? O homem mais virtuoso, elevado a essa alta dignidade perderá logo todos os seus bons predicados. A inveja é inata nos homens, e as regalias desfrutadas com um monarca levam-no à insolência. Ora, quem possui esses dois vícios adquire todos os outros, e comete uma infinidade de crimes, ora por excesso de orgulho, ora por inveja. Um tirano devia ser um homem exemplar, já que goza de toda espécie de regalias; mas é o contrário que se verifica, e seus súditos sabem-no muito bem por experiência. O tirano odeia as pessoas honestas e parece deplorar que elas ainda existam. Somente com os maus se sente bem. Presta facilmente ouvido à calúnia e acolhe bem os delatores; e o que é mais engraçado, se o louvamos com moderação, ofende-se; se o louvamos com efusão, ofende-se do mesmo modo, atribuindo esse gesto a interesses mesquinhos. Finalmente, temos o mais terrível dos inconvenientes: infringe as leis da pátria, comete violências contra as mulheres e manda matar quem muito bem lhe pareça, sem processo ou qualquer outra formalidade. Não se dá o mesmo com o governo democrático, que chamamos isonomia, que soa como o mais belo de todos os nomes. Neste, não é permitido nenhum dos abusos inerentes ao Estado monárquico. O magistrado é eleito por sorte, e torna-se responsável pelos seus atos administrativos, sendo todas as deliberações tomadas em comum. Sou, por conseguinte, pela abolição do governo monárquico e pela instauração do governo democrático, pois todo poder emana do povo".

LXXXI - Tomando a palavra, Megabizo opinou pela oligarquia. "Penso, como Otanes, que é preciso acabar com a monarquia e aprovo tudo o que ele acaba de expor; mas quando ele nos exorta a colocarmos o poder supremo nas mãos do povo, afasta-se do bom caminho. Nada mais insensato e insolente do que uma multidão inconseqüente. Procurando evitar-se a insolência de um tirano, cai-se sob a tirania do povo sem freios. Haverá coisa mais insuportável? Quando o soberano toma uma medida, sabe bem por que a toma; o povo, ao contrário, não usa a inteligência nem a razão. E que de outro modo poderia ser, se jamais recebeu instrução e não sabe o que é belo nem o que é mais conveniente? Lança-se num negócio às cegas, sem julgá-lo, qual uma torrente que tudo arrasta. Possam os inimigos dos Persas adotar a democracia! Quanto a nós, escolhamos homens virtuosos e coloquemos o poder em suas mãos. Acho que podemos incluir-nos nesse número, e, de acordo com a lógica, os homens sensatos e esclarecidos só podem dar excelentes conselhos".

LXXXII - Dario falou em seguida, formulando seu parecer nos seguintes termos: "A opinião de Megabizo sobre a democracia me parece justa e muito sensata, mas discordo quanto ao que ele afirmou em favor da oligarquia. Das três formas de governo que se podem propor - o democrático, o oligárquico e o monárquico - considerados no seu grau possível de perfeição, o monárquico me parece muito superior aos outros dois, pois é opinião geral não haver nada melhor do que o governo de um único homem, quando este é um homem de bem. Em tais condições, ele não poderá deixar de governar de uma maneira irrepreensível. Todas as deliberações serão secretas, e o inimigo não terá nenhum conhecimento delas. O mesmo não acontece com a oligarquia. Sendo o governo composto de vários indivíduos aplicados ao serviço do bem público, surgem freqüentemente entre eles inimizades particulares e violentas. Cada um quer ser o mais poderoso e fazer prevalecer sua opinião; daí os ódios recíprocos, as sedições; e destas ao morticínio, e, finalmente, à monarquia. Aí está por que o governo de um só é preferível ao de muitos. Por outro lado, quando o povo manda, é impossível não implantar-se a desordem no Estado. A corrupção, uma vez estabelecida, não produz ódios entre os maus; ao contrário, une-os por laços de estreita amizade. Os que desmoralizam o Estado agem de combinação e se sustentam mutuamente; continuam a fazer o mal até erguer-se um defensor do povo para reprimi-los. Este que a eles se opõe torna-se, então, admirado, e essa admiração faz dele um monarca - o que prova ainda que a monarquia é a melhor forma de governo. Em conclusão, de onde nos vem a liberdade? De quem a obtemos? Do povo, da oligarquia ou de um monarca? Pois se é verdade que por um único homem fomos libertados da escravidão, concluo ser necessário mantermos o governo monárquico. Aliás, nunca se deve infringir as leis da pátria quando elas são verdadeiramente sábias, pois isso seria perigoso".

LXXXIII - Foram essas as três opiniões expostas, recebendo a última a aprovação dos outros quatro chefes insurrectos. Então, Otanes, que desejava ardentemente estabelecer a isonomia, vendo seu parecer rejeitado ergueu-se no meio da assembléia e falou assim: "Persas, já que é preciso que um de nós se torne rei; que a sorte ou o sufrágio da nação coloque um de nós no trono; ou que por qualquer outro meio a ele suba um de nós, não me tereis como concorrente. Não desejo nem mandar nem obedecer; cedo-vos o lugar, com a condição, porém, de não ficar sob a autoridade de nenhum de vós, nem eu, nem meus parentes, nem os meus descendentes, até o fim dos tempos".

Os outros seis acederam ao pedido, com o que ele se retirou da assembléia, não lhes fazendo, como havia prometido, nenhuma concorrência, sendo essa a razão pela qual sua família é hoje a única, em toda a Pérsia, a gozar de plena liberdade, não se submetendo a ninguém, senão quando lhe apraz, contanto que não transgrida as leis estabelecidas do país.

LXXXIV - Os outros seis Persas confabularam sobre a maneira mais justa de eleger um rei, ficando, antes de tudo, deliberado que aquele que dentre eles obtivesse a soberania concederia a Otanes e a seus descendentes, em caráter perpétuo, a túnica meda, fazendo-lhe também dádivas consideradas pelos Persas como as mais honrosas. Tal distinção lhe foi concedida por haver sido ele o primeiro a formular o projeto de destronar o mago e a reuni-los para a execução do mesmo. Essas honras visavam particularmente o companheiro, mas elaboraram para si próprios leis especiais e generosas. Ficou estabelecido que todos os sete teriam entrada franca no palácio, sem necessidade de se fazerem anunciar, exceto quando o soberano estivesse no leito com a esposa; que o rei não poderia desposar uma mulher que não pertencesse à família de qualquer dos que haviam destronado o mago. Quanto à maneira de eleger o novo rei, ficou decidido que, no dia seguinte pela manhã entrariam juntos a cavalo na cidade, sendo reconhecido como rei aquele cujo cavalo relinchasse em primeiro lugar, ao nascer do sol{43}.

LXXXV - Dario possuía um hábil escudeiro chamado Ebares. Ao deixar a assembléia, dirigiu-se a ele, dizendo-lhe: "Ebares, ficou decidido entre nós, que amanhã pela manhã montaremos a cavalo, e que será rei aquele cujo cavalo relinchar primeiro. Emprega, pois, tua habilidade, para que eu obtenha esse posto supremo". "Senhor, - respondeu Ebares - se a vossa eleição depende unicamente disso, tende ânimo e não vos preocupeis; ninguém senão vós será o escolhido; disponho de um segredo infalível". "Se o possuís verdadeiramente, - volveu Dario - chegou o momento de fazeres uso dele; não há que hesitar; amanhã nossa sorte estará decidida".

Ao cair da noite, Ebares tomou uma das éguas pela qual mais se inclinava o cavalo de Dario e conduziu-a a um arrabalde; ali amarrou-a, e trazendo o cavalo, fê-lo passar várias vezes em torno dela, permitindo, afinal, o coito entre ambos.

LXXXVI - No dia seguinte, ao alvorecer, os seis Persas encontraram-se a cavalo no local combinado, seguindo para a cidade. Ao chegarem ao arrabalde, no local exato onde, na noite precedente, a égua estivera amarrada, o cavalo de Dario empinou-se e pôs-se a relinchar. No mesmo instante, um relâmpago cortou o espaço e ouviu-se um trovão, embora o céu estivesse sereno. Esses sinais imprevistos, parecendo revelar que o céu estava de acordo com Dario, foram encarados por este último como uma saudação. Seus companheiros, descendo de seus cavalos, prosternaram-se a seus pés, reconhecendo-o como rei{44}.

LXXXVII - Tal foi, segundo uns, o meio de que se serviu Ebares para tornar seu amo soberano dos Persas. Outros, porém, contam o fato de maneira diversa, havendo assim duas versões sobre o mesmo, na Pérsia. Dizem que Ebares passou a mão sobre as partes sexuais da égua, mantendo-a oculta na cintura; e que no momento em que o sol começou a despontar e os cavalos se punham em marcha, retirou-a dali, aproximando-a do focinho do cavalo de Dario. O animal, sentindo o cheiro da companheira, pôs-se a relinchar.

LXXXVIII - Dario, filho de Histaspes, foi, assim, proclamado rei, e todos os povos da Ásia subjugados por Ciro e depois por Cambises a ele se submeteram, com exceção dos Árabes. Estes, na verdade, nunca foram escravos dos Persas, mas seus aliados. Haviam simplesmente facultado passagem a Cambises para este penetrar no Egito. Se a isso se opusessem, o exército persa jamais teria podido invadir aquele país. Foi com mulheres persas que Dario contraiu seus primeiros matrimônios: desposou duas filhas de Ciro - Atossa e Aristona. Atossa havia sido mulher de Cambises e, depois, do mago usurpador; Aristona era ainda virgem quando ele a tomou para mulher. Pouco depois, uniu-se a Pármis, filha de Esmérdis, filho de Ciro, e a Fédima, filha de Otanes e que havia descoberto a impostura do mago. Seu poder consolidou-se sob todos os aspectos. Começou por mandar erigir em pedra sua estátua eqüestre, com esta inscrição: "Dario, filho de Histaspes, subiu ao trono imperial dos Persas pela virtude do seu cavalo (o nome deste estava indicado na inscrição) e o engenho de Ebares, seu escudeiro".

LXXXIX - Feito isso, dividiu o império em vinte Estados, que os Persas denominam satrapias, estabelecendo em cada um deles um governador. Regulamentou o tributo que cada nação deveria pagar-lhe, e, para esse fim, incluía em cada nação os povos limítrofes. Às yezes, porém, passava por cima dos vizinhos, incluindo, num mesmo departamento, povos afastados um do outro.

Eis como distribuiu ele as satrapias e como regulamentou os tributos, que lhe deveriam ser pagos todos os anos. Ordenou que os que deviam pagar sua contribuição em prata, a pagassem ao peso do talento babilônio, e os que tivessem de pagá-la em ouro, o fizessem ao peso do talento da Eubéia. O talento babilônio vale setenta minas da Eubéia.

No reinado de Ciro, e mesmo no de Cambises, nada tinha sido regulamentado nesse sentido; dava-se simplesmente ao rei um donativo. Esses impostos e outras exigências semelhantes levaram os Persas a dizer que Dario era um comerciante, Cambises um senhor, e Ciro um pai: o primeiro, porque transformava tudo em dinheiro; o segundo, por ser cruel e negligente; o terceiro, enfim, por ser benévolo e ter cumulado seus súditos do maior número de benefícios possível.

XC - Os Iônios, os Magnetas da Ásia, os Eólios, os Cários, os Lícios, os Mílios e os Panfílios compunham o primeiro departamento e pagavam, todos juntos, quatrocentos talentos de prata. Os Mísios, os Lídios, os Lasônios, os Cabálios e os Higênios eram taxados em quinhentos talentos de prata e compunham a segunda satrapia. Os habitantes do Helesponto, localizados à direita de quem navega daquele lado, os Frígios, os Trácios da Ásia, os Paflagônios, os Mariandínios e os Sírios constituíam o terceiro departamento e pagavam trezentos e sessenta talentos. Os Cilícios davam todos os dias, como tributo, um cavalo branco, perfazendo trezentos e sessenta por ano, e mais quinhentos talentos de prata, dos quais cento e quarenta eram empregados na manutenção da cavalaria, guarda do país, entrando os trezentos e sessenta restantes para os cofres de Dario. Essa nação constituía o quarto departamento.

XCI - O quinto departamento começava na cidade de Posideu, construída por Anfíloco, filho de Anfiarau, nas fronteiras da Cilícia e da Síria, estendendo-se até o Egito, sem compreender o país dos Árabes, isento de qualquer tributo. Esse departamento pagava trezentos e cinqüenta talentos, e incluía também toda a Fenícia, a Síria da Palestina e a ilha de Chipre.

Do Egito, dos Líbios vizinhos do Egito, de Cirene e da Barcéia, que estavam sob o governo do Egito, vinham como tributo, para os cofres do rei, setecentos talentos, sem contar o produto da pesca do lago Méris e setecentos talentos em trigo, pois eram fornecidas cento e vinte mil medidas de trigo aos Persas componentes da guarnição do castelo branco de Mênfis e às tropas auxiliares que estavam a seu soldo. Era esta a sexta satrapia. A sétima compreendia os Satágidas, os Gandários, os Dadices e os Aparitos, nações submetidas a um mesmo governo e pagando cento e setenta talentos. Susa e o resto do país dos Cisseus constituíam o oitavo departamento e pagavam ao soberano trezentos talentos por ano.

XCII - Da Babilônia e do resto da Assíria vinham-lhe mil talentos de prata e quinhentos jovens eunucos, sendo esse o nono departamento. De Ecbatana e do resto da Média, dos Paricánios e dos Ortocoribântios, que compunham o décimo departamento, tirava o rei quatrocentos e cinqüenta talentos. Os Cáspios, Pausiceus, os Pantimátios e os Daritos constituíam a décima primeira satrapia, pagando, todos juntos, duzentos talentos. A décima segunda compreendia toda a região que se estendia até os Egles, a começar do país dos Báctrios, e rendia um tributo de trezentos e sessenta talentos.

XCIII - O décimo terceiro departamento pagava quatrocentos talentos. Estendia-se da Pactícia, da Armênia e dos países vizinhos, ao Ponto Euxino. Os Sagarteus, os Sarangeus, os Tamaneus, os Outícios, os Mícios e os habitantes das ilhas do mar da Eritréia, para onde o rei enviava aqueles que caíam em seu desfavor, pagavam um tributo de seiscentos talentos e compreendiam a décima quarta satrapia. A décima quinta abrangia os Sácios e os ... [Cáspios]{45}, que pagavam duzentos e cinqüenta talentos. A décima sexta se compunha dos Partas, dos Corásmios, dos Sogdeus e dos Ários, que contribuíam com trezentos talentos.

XCIV - Os Paricânios e os Etíopes asiáticos formavam a décima sétima satrapia, pagando quatrocentos talentos. A décima oitava compreendia os Matianeus, os Sapiros e os Alaródios, taxados em duzentos talentos. Os Mocos, os Tibarênios, os Mácrons, os Misionecos e os Mardas pagavam trezentos talentos e constituíam o décimo nono departamento. Os Indianos, o mais numeroso de todos os povos que conhecemos, pagavam um tributo igual à soma de todos os outros juntos, estando taxados em trezentos e sessenta talentos de palhetas de ouro. Constituíam eles o vigésimo departamento.

XCV - Se quisermos reduzir ao talento da Eubéia todo esse dinheiro pago ao peso do talento babilônio, teremos nove mil oitocentos e oitenta talentos; e se reduzirmos o valor do ouro, treze vezes superior ao da prata, ao talento da Eubéia, teremos quatro mil seiscentos e oitenta talentos de pó de ouro. Reunindo todas essas somas, ver-se-á que Dario retirava por ano um tributo de quatorze mil quinhentos e sessenta talentos da Eubéia, sem incluir outras somas menores não mencionadas.

XCVI - Tal a renda que Dario extraía da Ásia e de uma pequena parte da Líbia. Criou, em seguida, impostos para as ilhas, bem como para os povos que habitavam a Europa até a Tessália. E eis como agregava essa renda ao seu tesouro: mandava fundir o ouro e a prata em vasilhas de barro, e quando estas estavam cheias retirava o metal já resfriado. Quando precisava de dinheiro, mandava cunhar tantas moedas quantas fossem necessárias na ocasião.

XCVII - Tais os diferentes departamentos e os impostos a eles aplicados. A Pérsia foi a única província não incluída por mim na categoria dos países tributários, porquanto estava isenta de impostos; os Persas apenas faziam donativos. O mesmo acontecia com os Etíopes, vizinhos do Egito, que Cambises subjugara na sua expedição contra os Etíopes-Macróbios, e com os habitantes da cidade sagrada de Nisa, que celebram a festa em honra de Baco. Esses Etíopes e seus vizinhos cultivam a mesma lavoura que os Indianos-Calátios e residem em habitações subterrâneas. Os dois povos levavam, de três em três anos, ao rei, duas medidas de ouro fino, duzentos troncos de ébano e vinte dentes de elefante. Além disso, presenteavam-no com cinco jovens etíopes, e tal costume ainda se observava no meu tempo.

Os povos da Cólquida estabeleciam, eles próprios, aquilo com que deviam contemplar o rei, o mesmo se dando com os seus vizinhos até o Cáucaso; pois todo o país até a referida montanha estava sob o domínio dos Persas; mas os povos que habitam ao norte do Cáucaso não se incluem no número deles. Os habitantes da Cólquida adotaram o costume de enviar, de cinco em cinco anos, ao soberano, cem rapazes e cem raparigas, presente que ainda faziam em meu tempo. Os Árabes presenteavam-no também, todos os anos, com mil talentos de incenso.

XCVIII - Quanto à grande quantidade de pó de ouro que os Indianos pagavam, segundo já disse, como tributo ao rei da Pérsia, vejamos como a obtinham. A parte das Índias que se estende para o levante é bastante arenosa. A leste, o país é deserto, devido justamente à grande quantidade de areia. Sob a designação de Indianos estão compreendidos vários povos falando idiomas diferentes, uns nômades e outros sedentários. Há os que habitam os pântanos formados pelos transbordamentos do rio e que se alimentam de peixe cru, pescado em batéis feitos de caniços. Cortam o caniço de nó em nó, construindo com cada pedaço uma barquinha. Seus trajes são confeccionados com a fibra de uma planta que cresce à beira dos riachos. Colhem-na e, depois de bem batida, entrelaçam as fibras à maneira de uma esteira, revestindo-se com elas à semelhança de uma couraça.

XCIX - Os outros Indianos que habitam a região a leste são nômades e alimentam-se de carne crua. Chamam-nos Padeus. Entre as leis que se lhes atribuem, cita-se a seguinte: Quando alguém entre eles cai doente, se é homem, os parentes mais próximos matam-no, alegando o fato de a doença fazê-lo emagrecer e tornar-lhe a carne menos saborosa. De nada vale ao doente negar que esteja tão doente como parece; é logo estrangulado impiedosamente pelos parentes, que se regalam com a sua carne. Se é uma mulher que adoece, tratam-na da mesma maneira. Matam também os que atingem idade avançada; mas isso raras vezes acontece, pois têm sempre o cuidado de matar os que adoecem.

C - Há outros Indianos com hábitos e costumes diferentes. Não matam nenhum animal; nada semeiam; não possuem moradia e se alimentam de ervas. Existe na região por eles habitada uma espécie de grão que a terra produz por si mesma. Esse grão, um pouco maior que o do milho, está encerrado numa casca. Os habitantes colhem-no, fervem-no com a casca e comem-no em seguida. Quando qualquer desses Indianos adoece, retira-se para um lugar deserto e ali se deita, sem que ninguém dele se ocupe, quer durante a doença, quer quando morre.

CI - Esses Indianos têm relações em público com as mulheres como os animais. São todos da mesma cor, que muito aproxima da dos Etíopes. O líquido seminal, entre eles, não é branco, como acontece entre os outros homens, mas como a sua própria pele e também semelhante ao dos Etíopes. Encontram-se eles localizados numa região distante dos Persas, do lado do sul, e nunca foram submetidos por Dario.

CII - Existem ainda outros Indianos, habitando a região norte, nas vizinhanças das cidades de Caspátira e Pactícia, e cujos costumes muito se assemelham aos dos Báctrios. São tidos como os mais bravos entre todos os de sua raça e utilizados sempre pelos outros na busca do ouro. Há nas proximidades da região que habitam zonas que os areais tornam inabitáveis. Encontram-se ali, entre as areias, formigas maiores do que uma raposa, o que se pode comprovar pelas que existem no viveiro do rei da Pérsia, caçadas na referida região.

Essas formigas têm a forma das que encontramos na Grécia. Cavam abrigos subterrâneos, e para fazê-lo erguem a terra da mesma maneira que as nossas; e as areias por elas revolvidas estão sempre cheias de ouro. Os Indianos são enviados para pesquisar essas areias nos desertos. Cada um deles atrela três camelos, colocando um macho de cada lado e no meio uma fêmea, na qual montam. Têm, todavia, o cuidado de servir-se das que amamentam, que separam das crias enquanto novas. Seus camelos não são menos ligeiros do que os cavalos, nas jornadas, e suportam cargas muito maiores.

CIII - Não tenciono dizer aqui o que seja o camelo; os Gregos conhecem muito bem esse animal. Direi somente o que sobre ele ignoram. O camelo tem duas coxas e dois joelhos em cada perna traseira, e o membro passa entre as coxas, voltando-se para o lado da cauda.

CIV - Escolhidos e atrelados os camelos da maneira que me referi, os Indianos dirigem-nos em marcha regulada para os lugares em que sabem existir ouro, onde geralmente chegam quando o sol já vai bem alto, pois é justamente nas horas mais quentes do dia que as formigas, procurando abrigar-se debaixo da terra, revolvem a areia. Nessa região o sol é mais ardente pela manhã do que ao meio-dia, ao contrário do que se verifica nas outras partes; e os habitantes conservam a cabeça coberta até a hora em que termina, entre nós, o mercado. Ao meio-dia, a temperatura ali pouco difere da dos demais países, e daí em diante começa a declinar, sendo a tarde tão fresca quanto a manhã entre os outros povos. À hora de dormir já se goza de um agradável frescor.

CV - Chegando aos locais onde existe ouro, os Indianos enchem de areia os sacos que trouxeram para esse fim, e se retiram às pressas, porque, segundo os Persas, as formigas, advertidas da sua presença pelo cheiro, saem em sua perseguição. Não há, dizem eles, animal tão veloz quanto essas formigas, e se os Indianos não fogem prontamente, são logo apanhados. É por esse motivo que trazem os camelos machos, menos ligeiros, atrelados às fêmeas. Não fora esse cuidado, na hora da retirada eles não correriam tanto quanto elas, tornando-se presa fácil. Quanto às fêmeas, a lembrança dos filhotes e o desejo de a eles reunir-se dão-lhes novas forças para correr. É assim que, afirmam os Persas, os Indianos obtêm a maior parte do seu ouro; a quantidade que extraem das minas é diminuta.

CVI - A Índia é, como disse há pouco, a última região habitada a leste. Os quadrúpedes e os voláteis ali são bem maiores que nos outros países, mas os cavalos são menores do que os da Média. O ouro existe em abundância nesse país. Tiram-no das minas, dos rios, que o arrastam em suas águas, e da maneira a que me referi. Encontram-se também nessa região árvores selvagens, produzindo, como fruto, uma espécie de lã{46}, mais bonita e melhor que a das ovelhas. Os Indianos vestem-se com essa lã, que colhem nas mencionadas árvores.

CVII - Do lado do sul, a Arábia é o último dos países habitados. É também o único onde encontramos o incenso{47}, a mirra, a canela, o cinamomo e o ládano. Os Árabes colhem esses produtos com muito trabalho, exceto a mirra. Para colher o incenso, queimam as árvores que produzem uma goma denominada estirace, vendida pelos Fenícios aos Gregos. Queimam essa goma, a fim de afugentar uma multidão de pequenas serpentes voadoras de várias espécies, que permanecem nas árvores. São as tais serpentes que voam em bandos para o Egito. Somente a fumaça do estirace é capaz de afastá-las do seu pouso habitual.

CVIII - Dizem os Árabes que todo o país estaria cheio dessas serpentes se não lhes acontecesse aquilo que sabemos acontecer às víboras. A Providência divina, na sua suprema sabedoria, determinou que todos os animais tímidos e que servem de alimento fossem muito fecundados para que o consumo deles feito não causasse o desaparecimento da espécie, e que, ao contrário, os animais nocivos e ferozes fossem muito menos prolíficos. A lebre encontra por toda parte inimigos; os outros animais, os pássaros, os homens, lhe fazem guerra; mas, em compensação, é extraordinariamente fecunda. É de todos os animais aquele cuja fêmea concebe já grávida, criando ao mesmo tempo filhotes ainda muito tenros e outros já peludos. A leoa, ao contrário, um animal forte e feroz, só concebe uma vez na vida, e dá apenas uma cria, pois seu útero é expelido juntamente com o fruto. A razão disso está em que, quando o leãozinho começa a mexer-se no ventre materno, como possui garras mais aguçadas do que qualquer outro animal, vai dilacerando o útero daquela que o gera, até que, quando a leoa dá à luz não mais o possui.

CIX - Se as víboras e as serpentes voadoras da Arábia não morressem senão de morte natural, a existência se tornaria impossível para os homens; mas acontece que, quando o macho e a fêmea se unem no coito, esta, no momento do espasmo, agarra fortemente a garganta do companheiro, estrangulando-o e devorando-o em seguida. Assim perece o macho. A fêmea recebe, por sua vez, a punição: os filhotes, no momento de nascer, roem-lhe o útero para abrir passagem, vingando, dessa maneira, a morte do pai.

As outras serpentes, que não fazem absolutamente mal aos homens, põem ovos, dos quais vemos sair uma multidão de pequenas serpentes. Há, como ninguém ignora, víboras por toda a terra, mas só na Arábia se encontram serpentes aladas, motivo por que seu número é sempre pequeno em relação às outras.

CX - Mostramos como os Árabes colhem o incenso. Vejamos agora como obtêm a canela. Quando saem à sua procura, cobrem o corpo inteiro, e mesmo o rosto, exceto os olhos, com peles de boi e de cabra. A canela cresce em lagos pouco profundos, em torno dos quais pululam animais alados semelhantes aos morcegos. Esses animais são dotados de grande força e emitem gritos agudos. Os Árabes têm o cuidado de afugentá-los, protegendo os olhos contra sua terríveis picadas, e com essa precaução colhem a canela.

CXI - O cinamomo é colhido de uma maneira ainda mais estranha. Os próprios Árabes não saberão dizer de onde esse produto é originário, nem qual a terra que se presta à sua cultura. Alguns julgam-no originário do país onde Baco foi criado. Dizem que grandes pássaros vão procurar ali essas cascas a que chamamos cinamomo{48}, nome transmitido pelos Fenícios, levando-as para os ninhos construídos com lodo em montanhas escarpadas, onde nenhum homem pode subir. Para obter essas cascas de cinamomo, os Árabes - dizem - servem-se deste artifício: tomam da carne de vaca, de burro e de outros animais mortos, cortam-na em grandes pedaços e colocam-nos o mais perto possível dos ninhos, afastando-se em seguida. Os pássaros caem sobre a presa e arrastam-na para os ninhos; mas como estes não são bastante sólidos para sustentá-los, desfazem-se e caem por terra. Os Árabes correm a apanhar as cascas de cinamomo, que depois levam para outros países.

CXII - O ládano é colhido de maneira ainda mais surpreendente. Embora odorífero, procede de um lugar de odor desagradável: extraem-no da barba dos bodes e das cabras, tal qual a goma que escorre lentamente das árvores. Empregam-no na composição de vários perfumes, e é principalmente com ele que os Árabes se perfumam.

CXIII - Os Árabes possuem duas espécies de carneiros de porte admirável e que não encontramos em outras partes. Uma das espécies possui cauda longa, medindo cerca de três côvados de comprimento. Se a deixassem arrastar pelo chão adviriam úlceras, porque o contínuo atrito contra a terra acabaria ferindo-a. Os pastores do país, não ignorando isso, fazem pequenos carros nos quais prendem a cauda desses animais, evitando assim que elas rocem contra o chão. A outra espécie possui uma cauda de um côvado de largura.

CXIV - A Etiópia estende-se do ocidente da Arábia para o sul, sendo o último dos países habitados. Produz grande quantidade de ouro, elefantes monstruosos, toda espécie de árvores selvagens e o ébano. Os homens ali são de grande estatura, belos, bem feitos e vivem muito tempo.

CXV - São essas as partes extremas da Ásia e da Líbia. Quanto às da Europa, para ocidente, nada posso dizer com segurança, e nada posso afirmar sobre a existência de um rio que os bárbaros denominam Erídano e que se lança no mar do Norte, e do qual, segundo dizem, nos vem o âmbar. Muito menos conheço as ilhas Cassitérides, de onde trazem o estanho. O próprio nome do rio indica ser duvidosa sua existência. Erídano não é, absolutamente, um nome bárbaro, mas um nome grego inventado por algum poeta. Aliás, jamais encontrei alguém que me dissesse, como testemunha ocular, que mar é esse situado naquela região da Europa. O que há de verdade é que o estanho e o âmbar nos vêm daquele extremo do mundo.

CXVI - Consta existir ouro em abundância no norte da Europa, mas não saberei dizer como se pode encontrá-lo. Afirma-se, entretanto, que os Arimaspos, que possuem um só olho, subtraem esse ouro aos Grifãos; mas não posso admitir que existam homens que nascem com um só olho, sendo em tudo o mais semelhantes aos outros homens. De qualquer maneira, parece que os extremos da terra encerram o que há-de mais belo e mais raro no mundo.

CXVII - Há na Ásia uma planície cercada de todos os lados por uma montanha que possui cinco saídas. Essa planície pertenceu outrora aos Corásmios e fica situada nas fronteiras do país, limitando-se igualmente com as terras dos Hircânios, dos Partas, dos Sarangeus e dos Tamaneus; mas com o domínio dos Persas, passou a pertencer ao soberano destes.

Da montanha a que nos referimos corre um grande rio chamado Aces. O leito desse rio estendia-se outrora por uma das gargantas, e espraiando-se por vários lados, regava as terras dos mencionados povos; mas com o domínio dos Persas, eis o que aconteceu: O rei mandou construir, em cada uma das gargantas, barreiras e represas, e a água, não tendo mais saída, espraia-se constantemente pela planície, transformando-a num vasto mar. Não podendo mais servir-se dessas águas, como faziam outrora, os referidos povos ficaram expostos às piores dificuldades. É verdade que ali chove bastante no Inverno, mas é no Verão que eles têm mais necessidade de água para o cereal e o sésamo que semeiam. Por conseguinte, quando vêem que é de todo impossível obtê-la, vão, juntamente com as esposas, à procura dos Persas, e diante do palácio põem-se a lamentar-se em altos brados e a pedir-lhes auxílio. Compreendendo sua aflição, o rei ordena a abertura da represa do lado dos que mais necessitam de água, e quando suas terras estão suficientemente regadas, a represa é novamente fechada. Essa operação se repete do lado dos outros necessitados; mas, segundo ouvi dizer, o soberano exige, para satisfazê-los, grandes somas de dinheiro, além de impostos.

CXVIII - Intafernes, um dos sete Persas que haviam conspirado contra o mago, tornou-se culpado de uma injúria que lhe acarretou a pena de morte. Logo depois da sublevação, quis ele entrar no palácio para falar ao novo soberano, pois ficara estabelecido entre os sete comparsas que todos eles teriam entrada franca na residência real, sem formalidades, a menos que o soberano estivesse com alguma de suas esposas. Intafernes quis entrar no palácio sem se fazer anunciar, ciente do direito adquirido, mas os guardas da porta e o introdutor lhe barraram o caminho, alegando encontrar-se o rei com uma de suas mulheres. Julgando que lhe mentiam, Intafernes sacou da cimitarra e decepou-lhes o nariz e as orelhas, atando-os ao bridão do cavalo e passando-os em torno do pescoço das vítimas, afastando-se em seguida.

CXIX - As vítimas apresentaram-se ao rei, expondo-lhe a razão pela qual haviam sido maltratados daquela forma. Receando que semelhante violência tivesse sido praticada de combinação com os outros cinco, Dario chamou-os à sua presença, um de cada vez, sondando-os em particular, para saber se aprovavam tal conduta. Quando chegou à conclusão que o caso se passara à revelia dos outros, tendo motivos para acreditar que Intafernes tramava uma revolta com seus parentes, mandou prendê-lo, a ele, aos filhos e toda a família, e pô-los a ferros, condenando-os à morte.

A mulher de Intafernes dirigia-se todos os dias às portas do palácio, desesperada, soltando gritos comovedores. Seu pranto e sua perseverança em prol do perdão para os seus tocaram o coração do soberano, que fez chegar a ela, por um de seus auxiliares, esta mensagem: "O rei Dario está disposto a conceder o perdão a um dos prisioneiros. Podes escolher entre os de tua família aquele a quem desejas livrar do suplício". Após um momento de reflexão, ela respondeu: "Se o rei me concede a vida de um dos meus parentes, escolho meu irmão, de preferência a todos os outros". Dario ficou surpreendido com a resposta. "Que motivo - interrogou ele - te leva a preferir teu irmão a teu marido e teus filhos, que, naturalmente, te deviam ser mais caros?" "Ó rei - tornou ela - se os céus o permitirem, poderei encontrar outro marido e ter outros filhos, enquanto que, como meu pai e minha mãe já estão mortos, não mais poderei possuir outro irmão. Tal o motivo que me leva a preferi-lo aos outros". Achando a resposta sensata e apreciando-a muito, Dario restituiu-lhe não somente o irmão, como também o primogênito, mandando executar os outros. Assim pereceu, logo no início do novo reinado, um dos sete que para ele haviam contribuído.

CXX - Por ocasião do acidente sofrido por Cambises, acidente esse que o levaria à morte, passou-se o seguinte fato: Orestes, persa de nascimento, a quem Ciro havia confiado o governo de Sardes, concebeu o abominável projeto de aprisionar Polícrates de Samos e de eliminá-lo, embora nunca houvesse dele recebido a menor ofensa, nem por palavras, nem por ações, e sem mesmo conhecê-lo. Mas eis a razão alegada pela maioria das pessoas que contam essa história:

Achando-se um dia à porta do palácio em companhia de Mitróbates, governador de Dascílio, Orestes pôs-se a discutir com este, e enveredando o debate para a questão da coragem pessoal Mitróbates assim se expressou: "Como podes julgar-te um homem corajoso, se ainda não tentaste te apoderar da ilha de Samos, embora ela fique contígua ao teu país e seja tão fácil de subjugar que um dos habitantes conquistou-a com quinze soldados apenas e é agora seu soberano?" Orestes ficou, ao que dizem, tão chocado com essa censura, que buscou os meios para vingar-se, não tanto daquele que a fizera, mas de Polícrates, por causa de quem a recebera.

CXXI - Outros, embora em menor número, contam ter Orestes enviado um arauto a Samos para fazer uma solicitação qualquer ao rei, não se dizendo absolutamente do que se tratava. Quando o emissário chegou, o soberano achava-se em repouso num leito no alojamento dos homens, tendo perto de si Anacreonte de Teos. Quando o emissário se aproximou, Polícrates, que se achava com o rosto voltado para a parede, fosse por mero acaso, fosse por querer manifestar desprezo por Orestes, não se dignou voltar-se para o emissário e nem mesmo responder-lhe.

CXXII - Citam-se esses fatos como a causa da morte de Polícrates. Deixamos a cada qual a liberdade de acreditar naquele que lhe parecer mais provável.

Conta-se ainda que Orestes, achando-se em Magnésia, sobre o Menandro, enviou a Samos um lídio de nome Mirso, filho de Gigés, com uma mensagem para Polícrates, cujo caráter conhecia. Polícrates foi o primeiro de todos os Gregos ao que sabemos, a pretender tornar-se senhor dos mares, se excetuarmos Minos de Cnossa ou outro mais antigo do que este legislador. Mas até onde alcança a história, Polícrates figura como o primeiro a querer apoderar-se da Iônia e de suas ilhas. Foi por haver tido conhecimento disso, que Orestes enviou-lhe a seguinte mensagem:

"ORESTES A POLÍCRATES

"Sou sabedor de que tens vastos projetos em mira, mas que teus recursos econômicos não favorecem a realização dos mesmos. Se seguires, porém, os meus conselhos, serás bem sucedido e colocarás a mim próprio a coberto de todo perigo. Cambises nutre o desejo de me eliminar; soube-o de fonte segura. Concede-me abrigo no teu reino; recebe-me com os meus tesouros, e a metade deles será tua. Com ela te tornarás senhor de toda a Grécia. De resto, se tens alguma dúvida sobre o valor dos meus tesouros, envia-me alguém da tua confiança, que eu lhos mostrarei".

CXXIII - Encantado com o oferecimento de Orestes, Polícrates aceitou-o tanto mais depressa quanto imensa era a sua paixão pelo dinheiro. Apressou-se em enviar-lhe Meândrio, seu secretário e filho de pai do mesmo nome. Esse Meândrio era natural de Samos, e foi ele quem, algum tempo depois, consagrou ao templo de Juno o rico mobiliário dos aposentos de Polícrates.

Sabendo que Polícrates não deixaria de mandar alguém contemplar os seus tesouros, Orestes encheu de seixos oito grandes cofres quase até as bordas, cobriu os seixos com peças de ouro e fechou os cofres com cadeados. Meândrio chegou, contemplou as riquezas e regressou para informar a Polícrates sobre o que vira.

CXXIV - O soberano aprestou-se para partir incontinênti, a fim de entender-se pessoalmente com Orestes, a despeito das advertências dos adivinhos e dos amigos. Aliás, sua filha tivera um sonho no qual julgava ver o pai arrebatado pelos ares, banhado pelas águas do céu e ungido pelo sol. Aterrada com a visão, empregou todos os esforços para dissuadi-lo de partir; e quando ele se preparava para embarcar num navio de cinqüenta remos, fê-lo ouvir maus augúrios. Impacientando-se, ele ameaçou-a de deixá-la solteira se regressasse são e salvo da viagem. "Desejo - respondeu ela - que as vossas ameaças se realizem; prefiro ficar ainda por longos anos virgem, do que ser privada de meu pai".

CXXV - Sem dar a menor atenção aos conselhos que lhe davam, Polícrates embarcou para ir ter com Orestes, levando em sua companhia vários de seus amigos, entre os quais o médico Demócedes, filho de Califonte, da cidade de Crotona, tido como o mais habilitado na sua profissão, nessa época. Ao chegar a Magnésia, Polícrates ali pereceu miseravelmente e de uma maneira indigna de sua alta categoria e de sua grandeza d’alma; pois é sabido que entre todos os tiranos que reinaram sobre as cidades gregas não houve um só, excetuando o de Siracusa, cujos méritos pudessem ser comparados com os de Polícrates. Orestes fê-lo perecer de uma maneira que não tenho ânimo para narrar, crucificando-o em seguida. Consumado o ato, permitiu que regressassem a Samos todos os nativos que compunham a comitiva real, dizendo-lhes que deviam agradecer-lhe aquela graça, mas reteve como prisioneiros os estrangeiros e os escravos. Pendurado no espaço, Polícrates tornava real o sonho de sua filha: era banhado pelas águas do céu e ungido pelo sol, cujo calor lhe fazia sair os humores do corpo. Assim terminou a prosperidade de Polícrates, como havia predito Amásis.

CXXVI - A morte de Polícrates não tardou a ser vingada. Morto Cambises e caindo o trono em poder dos magos, Orestes, que residia em Sardes, em lugar de prestar algum serviço aos Persas, aos quais os Medos haviam arrebatado a coroa, aproveitou as perturbações e as desordens do momento para eliminar Mitróbates, governador de Dascílio, que o havia censurado com relação a Polícrates, e seu filho Cranape, embora gozassem ambos de grande prestígio entre os Persas. Entre muitos outros crimes por ele cometidos, cita-se o seguinte: Como um correio lhe trouxesse, da parte de Dario, ordens nada agradáveis, contratou assassinos para atacá-lo no caminho, quando regressasse. Os sicários mataram-no, juntamente com o cavalo, fazendo desaparecer os cadáveres.

CXXVII - Subindo ao trono, Dario resolveu não deixar impunes os crimes de Orestes e, particularmente, a morte de Mitróbates e de seu filho: mas não julgou conveniente atacá-lo logo no início do seu reinado, época em que a política do reino ainda estava numa espécie de fermentação. Além disso, sabia que Orestes contava com forças consideráveis, possuindo uma guarda composta de mil persas e abrangendo no seu governo a Frígia, a Lídia e a Iônia. Eis o que ele imaginou: Convocou os persas de maior prestígio e disse-lhes: "Persas, qual dentre vós me promete executar uma coisa que não exige senão habilidade e para a qual não é absolutamente necessário o emprego da força ou de grande número de pessoas? Considero inútil a violência onde só deve prevalecer o engenho. Qual de vós será capaz de matar Orestes ou de trazê-lo vivo à minha presença, ele que jamais prestou serviços aos Persas e que tantos crimes tem cometido? Ele que fez perecer dois dos nossos companheiros, Mitróbates e o filho, e, não contente com isso, mandou matar o correio que lhe enviei para fazê-lo vir à minha presença. São insultos que não podemos suportar. Previnamos com a sua morte maiores males que poderá causar aos Persas".

CXXVIII - Trinta persas disputaram logo a honra de servir o soberano. Para resolver a contenda, Dario ordenou fosse a escolha feita pela sorte, e realizado o sorteio coube a honra a Bageo, filho de Artontes. Eis como Bageo desincumbiu-se da tarefa: Escreveu várias cartas sobre diferentes negócios, selou-as com a chancela de Dario e partiu para Sardes com os despachos. Ali chegando, foi procurar Orestes, entregando as cartas, uma a uma, ao secretário do rei, para lê-las ao governador; pois todos os governadores de província têm junto a si um secretário do rei. A intenção de Bageo ao fazer entrega dessas cartas era sondar os guardas de Orestes para ver se estariam dispostos a abandoná-lo. Notando o respeito com que encaravam as cartas de Dario, entregou-lhes uma outra concebida nestes termos: "Persas, o rei Dario vos proíbe de continuar prestando obediência a Orestes". Ante aquela mensagem, eles abandonaram imediatamente suas lanças. Encorajado por essa manifestação de fidelidade, Bageo colocou nas mãos do secretário a última carta, que dizia: "O rei Dario ordena aos Persas que se acham em Sardes a matar Orestes". Imediatamente, os guardas, sacando da cimitarra, foram em busca do governador, matando-o no próprio local onde o encontraram. Assim foi vingada a morte de Polícrates de Samos.

CXXIX - Os bens de Orestes foram confiscados e transportados para Susa, ali chegando pouco depois de haver Dario sofrido, ao descer do cavalo, numa de suas caçadas, uma tão violenta torcedura no pé que deslocara o tornozelo. O soberano tinha na corte médicos considerados os mais hábeis do Egito; mas estes, chamados a atendê-lo, encanaram-lhe o pé com tanta violência que lhe agravaram os sofrimentos. O rei permaneceu sete dias e sete noites sem poder dormir, tal a dor que o atormentava. Afinal, no oitavo dia, achando-se ele cada vez pior, alguém, tendo ouvido falar dos méritos profissionais de Demócedes de Crotona, indicou-lhe esse médico, que ele se deu pressa em mandar chamar. Foram encontrar Demócedes entre os escravos de Orestes, como um homem do qual não se fazia grande caso, e levaram-no ao soberano, coberto de andrajos.

CXXX - Perguntando-lhe Dario se era realmente versado em medicina, Demócedes absteve-se de responder afirmativamente, receando que lhe fosse fechado o caminho da Grécia se revelasse aptidões. Percebendo estar ele fingindo ignorância de uma arte que lhe era familiar, Dario ordenou aos escudeiros que lhe trouxessem chicotes e outros instrumentos de tortura. Demócedes achou conveniente não dissimular por mais tempo a verdade. Disse não possuir conhecimento profundo da medicina, mas apenas ligeiras noções adquiridas na convivência com um médico. Diante disso, o soberano entregou-se aos seus cuidados. Demócedes tratou-o à maneira dos Gregos; e alternando os sedativos com remédios violentos, conseguiu fazê-lo recuperar o sono em pouco tempo, e, finalmente, curá-lo, embora o soberano já houvesse perdido a esperança de servir-se daquele pé. Findo o tratamento, Dario fez-lhe presente de um par de grilhões de ouro. Demócedes perguntou-lhe se pretendia assim mantê-lo na situação servil em que estivera vivendo e se era aquela a recompensa por havê-lo curado. Dario, encantado com essa observação, enviou-o às suas mulheres. Os eunucos que o conduziram disseram ter ele restituído a saúde e a paz de espírito ao seu senhor, e as mulheres, satisfeitas com a notícia, presentearam-no com moedas de ouro, que tiravam do cofre com um pires. Esse presente foi tão considerável que Citon, um servo que o seguia, calculou em avultada soma as moedas de ouro que apanhava à medida que tombavam dos pires.

CXXXI - Eis como Demócedes veio a deixar Crotona, sua terra natal, agregando-se à corte de Polícrates. Vivia ele em companhia do pai, homem de temperamento rígido e iracundo. Não podendo mais suportar-lhe o perene mau humor, transportou-se para Egina, onde se estabeleceu e superou, desde logo, os médicos mais famosos, embora não estivesse habilitado a exercer ali a profissão e lhe faltassem os instrumentos necessários. No segundo ano, os Eginenses, reconhecendo sua capacidade, deram-lhe um talento de pensão por conta do erário. No terceiro, os Atenienses concederam-lhe uma pensão de cem minas. Finalmente, no quarto, Polícrates ofereceu-lhe dois talentos, proposta que o atraiu a Samos. É a ele que os médicos de Crotona devem, em grande parte, a reputação que firmaram, sendo considerados, na época, os primeiros da Grécia, vindo em segundo lugar os Cireneus. Nessa mesma época, os Árgios eram tidos como os melhores músicos da Grécia.

CXXXII - Em recompensa por haver curado completamente Dario, Demócedes foi contemplado com uma vasta residência em Susa; comia à mesa do soberano e nada lhe faltava senão a liberdade de voltar à Grécia. Obteve de Dario o perdão para os médicos egípcios assistentes do soberano e que, por se terem deixado suplantar na arte por um médico grego, haviam sido condenados a morrer crucificados. Salvou um adivinho da Eléia, componente da comitiva de Polícrates e por isso submetido à escravidão, sem que ninguém se lembrasse mais dele. Enfim, Demócedes passou a desfrutar, junto ao rei, da maior consideração.

CXXXIII - Pouco tempo depois, Atossa, filha de Ciro e mulher de Dario, foi acometida de um tumor no seio, que tomou logo grandes proporções. Enquanto o mal não se agravou, ela ocultou-o de todos, por pudor, mas quando viu que adquiria aspecto alarmante mandou chamar Demócedes e mostrou-lho. Demócedes prometeu curá-la se ela prometesse, sob juramento, satisfazer um pedido seu, assegurando-lhe que não exigiria nada capaz de envergonhá-la.

CXXXIV - Curada pelos remédios de Demócedes, Atossa cumpriu o que havia prometido. Achando-se no leito com Dario, falou-lhe nestes termos: "É para admirar, senhor, que tendo tantas tropas à vossa disposição, permaneçais tranqüilamente no vosso palácio, sem procurar conquistar outros países e estender os limites do vosso império. Acho, entretanto, ser conveniente para um monarca jovem e possuidor de grandes riquezas assinalar-se por atos que revelem aos seus súditos terem eles um homem de valor dirigindo os seus destinos. Sou, pois, de opinião que deveis movimentar os vossos exércitos em busca de novas conquistas, e isso por duas razões: primeiro, para mostrar aos Persas que eles possuem um rei cheio de coragem e galhardia; segundo, para que as atribulações da guerra, evitando-lhes a ociosidade, não os leve a revoltar-se contra vós. Procurai, pois, realizar algumas grandes conquistas enquanto sois jovem. A alma cresce com o corpo, mas, à medida que o corpo envelhece, a alma envelhece também, desaparecendo o entusiasmo para toda e qualquer ação".

"Tuas observações - respondeu Dario - concordam com os meus propósitos. Eu já havia planejado marchar contra os Citas, fazendo construir, para esse fim, uma ponte ligando o nosso continente ao outro. Dentro de muito pouco tempo poderei levar a cabo esse plano".

"Senhor, - volveu Atossa - não comeceis, peço-vos, pelos Citas; eles estarão em vosso poder quando assim o quiserdes; marchai, antes, contra a Grécia. O que me disseram, senhor, sobre as mulheres desse país, levaram-me a desejar ardentemente ter a meu serviço lacedemônias, árgias, atenienses e coríntias. Possuís aqui a pessoa mais indicada para vos instruir sobre tudo que diz respeito à Grécia e para vos servir de guia nessa expedição: refiro-me ao médico que vos curou da torcedura".

"Já que julgas assim, - respondeu Dario - comecemos pela Grécia. Parece-me, antes de tudo, muito a propósito mandar alguns persas com o homem de que falas para tomar conhecimento exato do país; na volta, eles me instruirão sobre tudo que viram e observaram, e então, marcharemos contra os Gregos".

CXXXV - Dario deu-se pressa em executar o que dissera. Logo ao raiar do dia, mandou chamar quinze persas entre os de maior destaque no país e encarregou-os de acompanhar Demócedes e de fazer com ele um reconhecimento completo de todas as regiões litorâneas da Grécia, recomendando-lhes, sobretudo, que mantivessem o médico sob constante vigilância, a fim de que ele não lhes escapasse, e a voltar com ele, acontecesse o que acontecesse. Dadas essas ordens, instruiu Demócedes sobre a missão, dizendo-lhe que regressasse logo que tivesse mostrado aos persas toda a Grécia. Instruiu-o também a levar consigo todos os bens que recebera, para presentear com eles seus pais e parentes, prometendo indenizá-lo com o cêntuplo do valor por eles representados, e acrescentando que esses presentes e muitas outras riquezas seriam transportados em um navio que o acompanharia até o ponto de destino. As promessas do soberano eram, segundo creio, sinceras; mas Demócedes, julgando que ele queria apenas experimentá-lo, aceitou todos esses favores sem nenhum entusiasmo. Quanto aos bens que lhe pertenciam, declarou que os deixaria em Susa, a fim de dispor dos mesmos quando regressasse. Contentou-se com o navio de carga posto à sua disposição, a fim de levar presentes aos irmãos.

CXXXVI - Dadas essas ordens, Dario disse-lhe que se dirigisse, juntamente com os persas, para o litoral. Chegando à Fenícia, dirigiram-se eles imediatamente para Sido, onde equiparam, sem perda de tempo, dois trirremes e um navio de carga, enchendo-os de toda espécie de riquezas. Concluídos os preparativos, partiram em direção à Grécia, cujas costas visitaram, observando os acidentes e outros aspectos considerados de importância. Finalmente, depois de haverem feito o reconhecimento completo do país rumaram para a Itália, aportando em Tarento, onde Aristofílido, soberano dessa nação, atendendo a uma solicitação de Demócedes, mandou retirar o leme dos navios dos Medos{49} e prendê-los como espiões. Demócedes pôde assim regressar a Crotona, sua terra natal. Todavia, logo que ali chegou, Aristofílido relaxou a prisão dos persas e restituiu-lhes o que mandara retirar dos navios.

CXXXVII - Livres, os persas partiram imediatamente em busca de Demócedes, e chegando a Crotona prenderam-no na praça pública, onde ele se encontrava. Uma parte dos Crotonienses, temendo o poderio dos Persas, se dispusera a entregar seu compatriota, mas a outra o arrancou das mãos dos estrangeiros, escorraçando-os a bastonadas.

"Crotonienses, - disseram-lhes os persas - tomai cuidado com o que fazeis; aquele que acabais de arrebatar do nosso poder é um escravo fugitivo, e pertence ao nosso soberano. Julgais, porventura, que Dario deixará impune tal insulto e que estais procedendo com acerto tirando o prisioneiro das nossas mãos? Não temeis ver a vossa cidade atacada, reduzida a cinzas e à servidão?"

Essas ameaças resultaram inúteis. Os Crotonienses, sem lhes dar ouvidos, arrebataram não somente Demócedes, como também o navio de carga que os Persas haviam trazido. Estes, privados do guia, retornaram à Ásia, sem haverem concluído o reconhecimento da Grécia. Ao partirem, Demócedes procurou-os para lhes pedir que dissessem a Dario ser ele, o escravo, casado com a filha de Mílon, nome muito conhecido na corte persa. Por mim, penso ter Demócedes apressado esse casamento e gasto com ele muito dinheiro, só para mostrar a Dario que também ele gozava de grande consideração na sua pátria.

CXXXVIII - Deixando Crotona, os persas foram impelidos pelos ventos contrários para a Iapígia, onde foram aprisionados; mas Gilo, banido de Tarento, libertou-os, reconduzindo-os a Dario. O soberano, grato por essa conduta, dispôs-se a conceder-lhe tudo que desejasse. Gilo relatou-lhe então sua desgraça, pedindo-lhe que o restabelecesse como cidadão em Tarento. Todavia, para não lançar o terror e a perturbação na Grécia, como não deixaria de acontecer se se enviasse, por sua causa, uma frota considerável à Itália, disse que os Cnídios bastariam para conseguir sua repatriação, pois, amigos dos Tarentinos, um pedido deles nesse sentido jamais seria negado. Dario prometeu-lhe que assim faria, e, sem demora, enviou um emissário à Cnídia, com ordens aos Cnídios para promoverem o regresso de Gilo a Tarento. Os Cnídios obedeceram, mas não conseguiram obter o favor dos Tarentinos, e não estavam preparados para convencê-los pela força. Assim passaram-se os fatos.

Os Persas a que há pouco nos referimos foram os primeiros a virem da Ásia à Grécia para fazerem o reconhecimento desse país.

CXXXIX - Pouco depois desses acontecimentos, Dario apoderou-se de Samos. De todas as cidades, tanto gregas como bárbaras, foi essa a primeira a ser por ele atacada, pelas razões que passo a expor. Muitos Gregos tinham acompanhado Cambises na sua expedição contra o Egito; uns, ao que se acredita, para traficar; outros como mercenários, e alguns ainda pela simples curiosidade de conhecer o país. Entre estes últimos estava Silóson, banido de Samos, filho de Éaco e irmão de Polícrates. Teve ele uma aventura que muito contribuiu para a sua boa fortuna. Passeando, certo dia, pela praça principal de Mênfis, com um manto escarlate sobre os ombros, foi visto por Dario, então simples integrante do corpo de guardas de Cambises e não gozando ainda do destaque que viria a conseguir mais tarde. O futuro soberano dos Persas, encantado com o manto aproximou-se do estrangeiro, perguntando-lhe se queria vender-lhe tão atraente indumentária. Silóson, notando o empenho de Dario, respondeu-lhe, como inspirado por algum deus: "Não venderei por preço algum este manto; mas, já que tanto o desejas, faço-te presente dele". Dario louvou-lhe a generosidade e aceitou o presente.

CXL - Silóson ficou um tanto arrependido de, pelo seu excesso de generosidade, haver ficado privado do seu manto Algum tempo depois, morrendo Cambises, os sete Persas destronaram o mago usurpador, e Dario, um dos sete, subiu ao trono. Sabendo ter sido a coroa adjudicada àquele a quem ofertara o manto no Egito, Silóson partiu para Susa, dirigiu-se ao palácio e, sentando-se no vestíbulo, declarou haver prestado outrora um obséquio a Dario. Um dos guardas, ouvindo aquela declaração, transmitiu-a ao soberano. "Quem será esse grego - interrogou Dario a si próprio, um tanto perplexo - que afirma me haver contemplado com seus favores? Estou no poder há pouco tempo, e até agora nenhum estrangeiro veio à minha corte. Não me recordo de haver sido obsequiado por um grego. Em todo caso, vou mandar chamá-lo para ver o que tem a dizer".

Levado à presença de Dario, este perguntou-lhe, por intermédio de intérpretes, quem era e como podia vangloriar-se de haver-lhe prestado favores em dias passados. Silóson relembrou-lhe o que se passara com relação ao manto, acrescentando ter sido ele o autor da oferta.

"Ó homem generoso! - volveu Dario - Então és aquele que me presenteou ao tempo em que eu não gozava da menor autoridade? Embora o presente não fosse dos mais valiosos, considero-me por ele tão obrigado quanto se recebesse hoje outro assaz considerável; e para manifestar a minha gratidão, dar-te-ei tanto ouro e prata, que nunca terás motivo para arrepender-te de haver obsequiado Dario, filho de Histaspes". "Grande rei, - observou Silóson - não te peço nem ouro nem prata; restitui-me Samos e livra-a da opressão. Desde que Orestes mandou matar meu irmão Polícrates, um dos nossos escravos dela se apoderou. É Samos, a minha pátria, senhor, que vos peço. Libertai-a, senhor, sem derramamento de sangue, e não permitais que ela seja reduzida à escravidão.

CXLI - Atendendo ao seu pedido, Dario enviou uma força expedicionária a Samos, sob o comando de Otanes, um dos sete que haviam destronado o mago, recomendando-lhe que executasse tudo que Silóson lhe pedisse. Otanes partiu para o litoral, onde embarcou com as suas tropas.

CXLII - Meândrio, filho de Meândrio, era então senhor absoluto da ilha; Polícrates lhe havia confiado a regência. Procurou ele mostrar-se o mais justo dos homens, mas as circunstâncias não lho permitiram. Ao ter conhecimento da morte de Polícrates, mandou erguer um altar a Júpiter Libertador, delimitando em torno do altar um recinto sagrado, que ainda hoje se vê nos arredores de Samos. Em seguida, reuniu em assembléia os cidadãos de Samos, fazendo-lhes este discurso: "Sabeis, filhos de Samos, que Polícrates me confiou o cetro com sua autoridade, não me cabendo hoje outro recurso senão continuar exercendo o poder sobre vós. Procurarei, entretanto, não fazer jamais o que condeno nos outros. Censurei Polícrates por ter-se tornado senhor dos seus iguais e não aprovarei, por conseguinte, a mesma conduta num outro. Enfim, ele cumpriu o seu destino. Quanto a mim, estou disposto a demitir-me do poder soberano e restabelecer a igualdade entre todos. Concedei-me, apenas, como uma espécie de distinção que considero justa, seis talentos de prata de Polícrates. Permiti-me, ainda, reservar para mim e os meus descendentes, em caráter perpétuo, o sacerdócio de Júpiter Libertador, ao qual ergui um altar, e restituo-vos a liberdade".

Tal a proposta de Meândrio; mas um nativo de Samos, erguendo-se no meio da assembléia, disse-lhe: "Nenhum mérito possuís para governar-nos, tu que sempre foste um mau indivíduo, um celerado. Deves, antes de mais nada, prestar-nos conta do dinheiro que administraste". Quem assim falou foi Telesarco, que gozava de grande prestígio entre os seus concidadãos.

CXLIII - Vendo que se abdicasse da suprema autoridade outro dela se apossaria, Meândrio não pensou mais em renunciar. Retornando à cidadela, mandou chamar os cidadãos, um por um, como se lhes quisesse prestar contas, e foi prendendo-os e pondo-os a ferros à medida que chegavam. Pouco depois, enfermou gravemente. Seu irmão Licareto, crendo que ele não mais se restabeleceria e querendo usurpar facilmente o poder, matou todos os prisioneiros.

CXLIV - Entrementes, os Persas que conduziam Silóson chegaram a Samos, não encontrando ali a menor resistência. Os partidários de Meândrio e o próprio Meândrio declararam-se prontos a capitular e a abandonar a ilha. Otanes aceitou a proposta e, firmado o tratado, os Persas de mais alta categoria instalaram-se diante da fortaleza.

CXLV - O tirano Meândrio tinha um irmão chamado Carileu, de mente um tanto desequilibrada, e que se encontrava acorrentado num calabouço por certa falta que cometera. Informado do que se passava e tendo visto por uma pequena abertura do cárcere os Persas tranqüilamente postados diante da fortaleza, pôs-se a gritar, dizendo que queria falar com o irmão. Meândrio mandou soltá-lo e trazê-lo à sua presença. Assim que chegou, Carileu exprobrou energicamente o irmão, concitando-o a lançar-se contra os Persas e a escorraçá-los dali. "És o mais covarde de todos os homens! Tens o coração bastante duro para acorrentar-me num calabouço, a mim teu irmão, que não cometi nenhum crime para merecer tal tratamento, e não possuís coragem suficiente para vingar-te dos Persas que te expulsam da tua casa e de tua pátria, embora te seja fácil vencê-los. Se os temes, dá-me tuas tropas auxiliares, e eu os farei arrepender-se de terem vindo aqui. Quanto a mim, estou pronto a fazer-te sair desta ilha".

CXLVI - Meândrio considerou com interesse a proposta do irmão. Não era, entretanto, demasiado insensato para imaginar que poderia, com as forças de que dispunha, obter uma vitória contra os Persas de Dario. Invejava a boa sorte de Silóson, recuperando, sem nenhum esforço, a ilha e recebendo-a na situação florescente em que se encontrava. Se irritasse os Persas, enfraqueceria o poderio de Samos, e se esta fosse recuperada, estaria devastada pela guerra. Sabia perfeitamente que se os Persas fossem maltratados vingar-se-iam sobre os habitantes de Samos. Contava ele com um meio seguro para sair da ilha quando quisesse. Havia mandado abrir uma passagem subterrânea que ia da fortaleza ao mar. Foi realmente por essa passagem que abandonou Samos, rumando para longe dali.

Enquanto isso se passava, Carileu, tendo feito pegar em armas as tropas auxiliares, forçou as portas da cidadela e realizou uma sortida contra os Persas, que não contavam com um tal ato de hostilidade, julgando que o acordo estava perfeitamente estabelecido. As tropas auxiliares caíram sobre os de mais alta distinção, que estavam sendo conduzidos em liteiras, massacrando-os. No momento, porém, em que os passavam a fio de espada, o resto do exército persa veio em socorro dos seus e rechaçou os atacantes com o maior vigor, obrigando-os a retirar-se da cidadela.

CXLVII - Otanes tinha sempre na mente as ordens que Dario lhe dera ao partir, de não matar nem reduzir à servidão nenhum nativo de Samos e de repor Silóson na ilha, sem causar nenhum dano ali; mas à vista da carnificina feita entre os Persas, esqueceu-se de tudo. Ordenou aos soldados a deitarem por terra todos os que encontrassem no caminho, homens e crianças, sem distinção. Assim, enquanto uma parte de suas tropas cercava a cidadela, a outra atacava impiedosamente os que se achavam fora dela, tanto nos lugares sagrados como nos profanos.

CXLVIII - Deixando Samos, Meândrio rumou para a Lacedemônia. Ali chegando com as riquezas que trazia consigo, mandou tirar dos cofres copos de ouro e de prata, e os criados puseram-se a limpá-los. Foi então procurar Cleómenes, filho de Anaxândrio, rei de Esparta, e depois de um cordial entendimento levou-o à sua residência. Vendo o príncipe deslumbrado diante dos vasos, convidou-o a lançar mão de quantos desejasse.

Cleómenes mostrou-se nessa ocasião o mais justo dos homens. Embora Meândrio repetisse duas ou mais vezes o oferecimento, não quis aceitá-lo; e tendo sabido que esse habitante de Samos fazia presente daqueles vasos a outros cidadãos, procurando assim captar-lhes as boas graças e conseguir abrigo ali, foi procurar os Éforos, fazendo-lhes ver que era do interesse da república fazer sair do Peloponeso aquele estrangeiro, para evitar que corrompesse os próprios governantes. Os Éforos aprovaram a idéia de Cleómenes e fizeram comunicação a Meândrio, por intermédio de um arauto, da necessidade de retirar-se da república quanto antes.

CXLIX - Depois de haverem massacrado todos os habitantes de Samos, os Persas entregaram a cidade despovoada a Silóson. Algum tempo depois, Otanes repovoou-a, quando teve em sonho uma visão e se achava atacado de um mal nas partes genitais.

CL - Enquanto a esquadra persa se dirigia para Samos, os Babilônios levaram a efeito a revolta que há muito vinham preparando. Durante o reinado do mago e a insurreição dos sete Persas, aproveitaram-se das perturbações reinantes, tomando todas as providências para sustentar um cerco prolongado, sem que os Persas se apercebessem disso. Colocando-se abertamente contra o jugo do estrangeiro, tomaram as seguintes medidas: de todas as mulheres que se encontravam na Babilônia, cada homem, pondo de parte a mãe, não reservaria senão a que mais amasse. Quanto às outras, reuni-las-iam em determinado lugar e as estrangulariam. Aquela que cada homem reservasse para si ficaria na obrigação de preparar-lhe a comida. Assim foi feito, sendo sacrificadas todas as outras mulheres, a fim de poupar as provisões.

CLI - À primeira notícia da revolta, Dario mobilizou todas as forças de que dispunha no momento e marchou contra os insurrectos. Ao chegar diante da praça, executou o cerco; mas os Babilônios deram-lhe logo a entender que pouco se preocupavam com isso. Subindo às muralhas, puseram-se a dançar e a troçar de Dario e de seu exército, pronunciando um deles esta frase memorável: "Persas, por que perder assim o vosso tempo diante destas muralhas? Retirai-vos, que é o melhor que fazeis. Só conquistareis Babilônia quando as mulas derem cria". Assim se expressou esse babilônio, certo de que uma mula jamais poderia conceber.

CLII - Havia já um ano e seis meses que Dario e seu exército se mantinham diante de Babilônia, sem conseguir tomá-la, desesperando-se o soberano com aquela situação. Tinha-se, em vão, servido de toda sorte de estratagemas, apelando para o mesmo recurso que dera êxito a Ciro por ocasião de uma de suas campanhas; mas os insurrectos mantinham-se sempre alertas, não se deixando surpreender.

CLIII - No vigésimo mês do cerco, aconteceu algo verdadeiramente fenomenal na casa de Zópiro, filho de Megabizo, que com os seis outros conjurados persas destronara o mago: uma das mulas empregadas no transporte de provisões deu à luz um potro. A princípio, Zópiro negou-se a acreditar no que via, mas verificando a veracidade do estranho fato proibiu expressamente todos os seus de espalharem a notícia. Pondo-se a refletir sobre o fenômeno, lembrou-se das palavras do babilônio, que dissera, no início do cerco, que os Persas só tomariam a cidade quando as mulas dessem cria. Concluiu, em vista desse presságio, que Babilônia poderia então ser conquistada, e que o insurrecto usara daquela expressão por um desígnio dos deuses.

CLIV - Convencido de que o destino assegurava a queda do país sitiado, foi procurar Dario, perguntando-lhe se fazia grande empenho em apoderar-se daquela praça. Dizendo-lhe o soberano que desejava ardentemente conquistá-la, pôs-se a deliberar sobre como faria para capturá-la e para que a façanha não fosse atribuída a outro senão a ele. Os Persas emprestam grande mérito aos atos de bravura, sendo esse, entre eles, um dos meios de alguém obter grandes honras. Refletindo que não poderia tornar-se senhor daquela praça senão mutilando-se para penetrar no reduto na qualidade de trânsfuga, não hesitou um só instante em acarretar para si uma disformidade sem remédio: cortou o nariz e as orelhas, raspou de maneira ridícula o alto da cabeça e, nesse estado deplorável, foi apresentar-se ao soberano.

CLV - Indignado por ver um homem da categoria de Zópiro tão maltratado, Dario ergueu-se precipitadamente do trono e perguntou-lhe, entre pesaroso e revoltado, quem lhe fizera aquilo e qual o motivo por que assim procedera. "Nenhuma outra pessoa senão vós, senhor, seria suficientemente poderosa para me tratar desta maneira - respondeu Zópiro. - Nenhuma mão estranha me pôs neste estado; fui eu o meu próprio agressor, revoltado e desesperado por ver os Assírios troçarem dos Persas". "Oh, infeliz! - exclamou Dario - dizendo que trataste a ti próprio dessa maneira por causa dos sitiados procuras emprestar um belo nome a uma ação vergonhosa! Insensato! Os inimigos não se renderão mais depressa pelo fato de te teres mutilado dessa maneira. Será que perdeste o senso quando te puseste nesse estado?" "Senhor, - explicou Zópiro - se vos houvesse comunicado minha intenção, não me permitiríeis executá-la. Assim, resolvi agir por mim próprio. Babilônia cairá em nosso poder se não faltardes no momento decisivo. No estado em que me vedes vou penetrar na cidade, como se fora um trânsfuga, e direi aos Babilônios que este tratamento me foi infligido por vossa ordem. Espero, se conseguir persuadi-los, obter o comando de uma parte de suas tropas. Quanto a vós, no décimo dia após minha passagem para Babilônia deveis escolher mil homens entre aqueles cuja perda seja menos sensível para o exército e colocá-los à porta de Semíramis. Sete dias depois devereis colocar mais dois mil homens junto à porta de Nínive. Passados mais vinte dias, enviareis quatro mil homens para a porta dos Caldeus. Convém, todavia, que eles nada tenham para defender-se senão as espadas. Finalmente, vinte dias mais tarde fareis avançar o exército diretamente contra a cidade, para um assalto geral, sendo que as portas Bélidas e Cissianas devem ficar guarnecidas. Não duvido absolutamente de que os Babilônios, testemunhas de minhas grandes ações, me confiem, entre outras coisas, as chaves dessas portas. Agiremos, então, como for preciso".

CLVI - Tendo exposto o seu plano a Dario, Zópiro dirigiu-se para as portas da cidade, voltando-se de vez em quando, como se estivesse fugindo e temesse estar sendo perseguido. Os que se achavam de sentinela nas torres, percebendo-o, desceram prontamente, e entreabrindo a viseira da porta perguntaram-lhe quem era e o que desejava. Ele declarou chamar-se Zópiro e que vinha entregar-se aos Babilônios. Ouvindo essa declaração, os guardas da porta conduziram-no perante a assembléia. Ali chegando, Zópiro pôs-se a lastimar suas desgraças, atribuindo a Dario o tratamento cruel que recebera, dizendo que o soberano o pusera naquele estado porque, não conseguindo forçar a praça, ele, Zópiro, o aconselhara a levantar o cerco. "Por isso, venho - concluiu ele - aliar-me a vós, para fortuna vossa e para desgraça de Dario, do seu exército e dos Persas. Conheço todos os seus planos, e as mutilações que sofri não ficarão impunes".

CLVII - Os Babilônios, vendo um persa da mais alta linhagem com o nariz e as orelhas cortadas, o corpo cortado de chibata e ensangüentado, não duvidaram do que lhes dizia e acreditaram que ele viera realmente auxiliá-los para vingar-se de Dario. Dispuseram-se a conceder-lhe tudo que desejasse para esse fim. Zópiro pediu que lhe concedessem tropas, e obtendo-as, fez o que havia combinado com o rei dos Persas.

No décimo dia depois da sua chegada saiu à frente das tropas cujo comando os insurrectos lhe haviam confiado, e investiu contra os primeiros mil homens colocados por Dario no local convencionado, massacrando-os. Reconhecendo que os seus atos correspondiam às suas palavras, os Babilônios manifestaram grande satisfação, mostrando-se mais dispostos ainda a obedecer-lhe. Zópiro deixou passar o número de dias convencionado, e pondo-se à frente da elite das tropas babilônias realizou uma segunda sortida, na qual matou dois mil guerreiros persas. Testemunhando mais esse ato de bravura, os Babilônios puseram-se inteiramente às ordens de Zópiro.

Dias depois dessa segunda sortida, o astuto persa realizou uma terceira, levando suas tropas ao ponto em que Dario havia colocado os quatro mil homens, fazendo novo massacre. Esse terceiro sucesso tornou-o todo-poderoso entre os sitiados, que passaram a obedecer-lhe cegamente, confiando-lhe o comando do exército e a guarda das muralhas.

CLVIII - Finalmente, no dia marcado, Dario reuniu as tropas destacadas em diversos pontos, aproximando-se para o ataque geral. Só então os Babilônios compreenderam o logro em que haviam caído. Enquanto se defendiam do alto das muralhas contra o exército persa, Zópiro abria as portas Cissianas e Bélidas e introduzia os sitiantes na praça. Os Babilônios que perceberam essa manobra refugiaram-se no templo de Júpiter Belo; mas os que não a viram conservaram-se firmes em seus postos, só compreendendo a traição daquele em que haviam confiado quando já era demasiado tarde.

CLIX - Foi assim que Babilônia caiu pela segunda vez em poder dos Persas. Dario, tornando-se senhor da cidade, mandou demolir as muralhas e retirar todas as portas. Ciro, que a conquistara antes dele, não havia feito nem uma coisa nem outra. Mandou, em seguida, crucificar cerca de três mil homens entre os mais ilustres de Babilônia. Aos demais, permitiram continuarem habitando a cidade como antes, dando-lhes mulheres para que a repovoassem, pois os Babilônios, como dissemos atrás, tinham estrangulado a maior parte das suas companheiras, a fim de poupar provisões. Ordenou aos povos vizinhos que enviassem mulheres à Babilônia, e cada nação tinha de contribuir com um certo número delas. Ao todo, para ali se encaminharam cinqüenta mil mulheres, das quais descendem os Babilônios de hoje.

CLX - Nunca houve na Pérsia, na opinião de Dario, desde os séculos mais recuados até os dias de seu reinado, ninguém que em bravura e engenho tivesse ultrapassado Zópiro, com exceção de Ciro, a que nenhum Persa jamais se julgou digno de comparar-se. Conta-se ter Dario declarado que preferia que Zópiro não houvesse procedido com tanta crueldade contra a sua própria pessoa, a tornar-se senhor de vinte outras cidades como Babilônia. Concedeu ao herói as maiores honras, presenteando-o, todos os anos, com aquilo que os Persas julgassem mais digno ao seu merecimento. Deu-lhe a cidade de Babilônia, sem exigir-lhe o menor tributo, para que dela tirasse proveito durante toda sua vida, cumulando-o ainda de muitos outros bens. Zópiro teve um filho chamado Megabizo, que combateu no Egito contra os Atenienses e seus aliados. Desse Megabizo nasceu o Zópiro que deixou a Pérsia para ir estabelecer-se em Atenas. Ler livro IV, ou ir para o Índice dos livros

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