Header Ads Widget

Clio - Livro I

Os Persas, os Medos, a Babilônia, Creso, Candolo, Gigés, Ciro, Semíramis e Tômiris 

Ao escrever a sua História, Heródoto de Halicarnasso teve em mira evitar que os vestígios das ações praticadas pelos homens se apagassem com o tempo e que as grandes e maravilhosas explorações dos Gregos, assim como as dos bárbaros, permanecessem ignoradas; desejava ainda, sobretudo, expor os motivos que os levaram a fazer guerra uns aos outros.

I - Os Persas mais esclarecidos atribuem aos Fenícios a causa dessas inimizades. Dizem eles que esse povo, tendo vindo do litoral da Eritréia para as costas do nosso país, empreendeu longas viagens marítimas, logo depois de haver-se estabelecido no país que ainda hoje habita, transportando mercadorias do Egito e da Assíria para várias regiões, inclusive para Argos. Esta cidade era, então, a mais importante de todas as do país conhecido atualmente pelo nome de Grécia. Acrescentam que alguns fenícios, ali desembarcando, puseram-se a vender mercadorias, e que cinco ou seis dias após sua chegada, quase concluída a venda, grande número de mulheres dirigiu-se à beira-mar. Entre elas estava a filha do rei. Esta princesa, filha de Inaco, chamava-se Io, nome por que era conhecida pelos Gregos. Quando as mulheres, postadas junto aos barcos, compravam objetos de sua preferência, os fenícios, incitando uns aos outros, atiraram-se sobre elas. A maior parte delas logrou fugir, mas Io foi capturada, juntamente com algumas de suas companheiras. Os fenícios conduziram-nas para bordo e fizeram-se à vela em direção ao Egito.

II - Eis como, segundo os Persas - nisto pouco de acordo com os Fenícios - Io veio parar no Egito. Essa questão foi o início de todas as outras. Acrescentam os Persas que, pouco depois, alguns gregos, cujos nomes não gravaram, vieram a Tiro, na Fenícia, e raptaram Europa, filha do rei. Eram, sem dúvida, Cretenses. Ficaram, assim, quites os dois povos, mas os Gregos tornaram-se depois culpados de uma segunda ofensa. Dirigiram-se num grande navio a Aea, na Cólquida, sobre o Faso, e, ultimados os negócios que ali os levaram, arrebataram Medéia, filha do rei, e tendo esse príncipe enviado um embaixador à Grécia para exigir a entrega da filha e a reparação da injúria, responderam-lhe que, como os Colquidenses não haviam dado nenhuma satisfação pelo rapto de Io, eles não o dariam absolutamente pelo de Medéia.

III - Dizem ainda os Persas que na geração seguinte, Páris, filho de Príamo, tendo ouvido falar no caso, quis também raptar e possuir uma mulher grega, persuadido de que se outros não foram punidos, não o seria também. Raptou, então, Helena; mas os Gregos resolveram, antes de qualquer outra iniciativa, enviar embaixadores para exigir a devolução de Helena e pedir satisfações.

Os Troianos, além de invocar aos Gregos o rapto de Medéia, ainda os censuraram por exigirem satisfações, uma vez que eles não as tinham dado aos outros e nem entregue a pessoa reclamada.

IV - Até então, não houvera de uma parte e de outra mais do que raptos; mas depois do acontecido, os Gregos, julgando-se ofendidos em sua honra, fizeram guerra à Ásia, antes que os asiáticos a declarassem à Europa. Ora, conquanto lícito não seja raptar mulheres, dizem os Persas, é loucura vingar-se de um rapto. Manda o bom senso não fazer caso disso, pois sem o seu próprio consentimento decerto não teriam as mulheres sido raptadas. Asseguram os Persas que, embora asiáticos, ainda não haviam tido conhecimento de casos semelhantes, naquela parte do mundo. Entretanto, os Gregos, por causa de uma mulher lacedemônia, equiparam uma frota numerosa, desembarcaram na Ásia e destruíram o reino de Príamo. Desde essa época, os Persas passaram a encarar os Gregos como inimigos, pois julgam que a Ásia lhes pertence tanto quanto as nações bárbaras que ocupam, enquanto consideram a Europa e a Grécia como formando um continente à parte.

V - Tal é a maneira pela qual os Persas narram esses acontecimentos. À tomada de Tróia atribuem eles a causa do seu ódio aos Gregos. No que concerne a Io, os Fenícios não estão de acordo com os Persas. Dizem não ter havido rapto; que apenas a conduziram ao Egito com o seu próprio consentimento. Vendo-se grávida, a princesa, receando a cólera dos pais, entrou em entendimento com o comandante do navio fenício, em Argos, com ele partindo, a fim de ocultar sua desonra. Eis aí como Persas e Fenícios narram os fatos. Quanto a mim, não pretendo absolutamente decidir se as coisas se passaram dessa ou de outra maneira; e depois de ter narrado o que conheço sobre o primeiro autor das injúrias feitas aos Gregos, prossigo minha história, na qual tratarei tanto dos pequenos Estados como dos grandes. Os outrora florescentes, encontram-se hoje, na sua maioria, em completa decadência, e os que florescem hoje, eram outrora bem pouca coisa. Persuadido da instabilidade da ventura humana, estou decidido a falar igualmente de uns e de outros.

VI - Creso era lídio por nascimento, filho de Aliata e rei das nações banhadas pelo Hális, no seu curso. Este rio, corre do sul, atravessa os países dos Sírios e dos Paflagônios, e desemboca ao norte, no Ponto Euxino. Pelo que me é dado saber, foi o príncipe o primeiro bárbaro a forçar uma parte da Grécia a lhe pagar tributo e não ter-se aliado com a outra. Submeteu os Iônios, os Eólios e os Dórios estabeledos na Ásia, e fez aliança com os Lacedemônios. Antes do seu reinado, todos os gregos eram livres. A expedição dos Cimerianos contra a Jônia, anterior a Creso, não fez mais do que arruinar as cidades, pois não passou de incursão seguida de pilhagem.

VII - Eis como o poder soberano, tendo pertencido aos Heraclidas, passou para a casa dos Mermnadas, a que pertencia Creso. Candolo, a quem os Gregos chamavam Mirsila, reinou tiranicamente em Sardes. Descendia de Hércules por Alceu, filho desse herói; Agron, filho de Nino, neto de Belos e bisneto de Alceu foi o primeiro dos Heraclidas a reinar em Sardes, e Candolo, filho de Mírsus, o último. Os reis desse país, anteriores a Agron, descendiam de Lídus, filho de Átis, de onde o nome de Lídios dado a todos os povos da região, outrora conhecidos por Meonianos. Finalmente, os Heraclidas, descendentes de Hércules e de uma escrava de Jardanus, e aos quais esses príncipes haviam confiado o poder, obtiveram o reino em virtude de um oráculo, reinando de pai a filho, pelo espaço de quinhentos e cinco anos, através de vinte e duas gerações, até Candolo, filho de Mírsus.

VIII - Era tal a loucura que esse príncipe devotava à esposa, que julgava possuir nela a mais bela de todas as mulheres. Obcecado pela paixão, não cessava de exagerar-lhe a beleza a Gigés, filho de Dascílus, um dos guardas a quem muito estimava e fazia confidente dos seus mais importantes segredos. Pouco tempo depois, Candolo (não podia evitar sua desgraça) assim falou a Gigés: "Parece-me que não acreditas no que te digo sobre a beleza de minha mulher. Os ouvidos são menos crédulos do que os olhos. Faze, pois, o possível de vê-la nua". "Que linguagem insensata, senhor! - exclamou Gigés - Refletis no que dizeis? Ordenar a um escravo que veja nua sua soberana? Esqueceis que uma mulher desfaz-se do seu pudor quando se despe? Entre as grandes máximas formuladas há muito pelos homens e que nos cumpre adotar, uma das mais importantes é a de que não devemos olhar senão o que nos pertence. Estou convencido de que possuís a mais bela de todas as mulheres, mas não exigi de mim, peco-vos, uma coisa tão desonesta".

IX - Assim Gigés recusava a proposta do rei, receando que acontecesse alguma desgraça. "Tranqüiliza-te, Gigés; - disse-lhe Candolo - nada tens a temer de mim. Não estou absolutamente armando um laço para te experimentar, nem tão pouco tua rainha; ela não te fará nenhum mal. Arranjarei as coisas de maneira que ela nem mesmo saberá que a viste. Ocultar-te-ei atrás da porta do nosso quarto de dormir. A porta ficará aberta. À entrada do quarto há uma poltrona, onde a rainha, ao recolher-se ao leito, depositará as vestes à medida que as for tirando. Assim terás muito tempo para apreciá-la. Quando, da poltrona, ela se encaminhar para o leito, terá de voltar-te as costas. Aproveitarás então o momento para escapar sem ser visto."

X - Gigés, não podendo fugir à situação, declarou-se pronto a obedecer. Candolo, à hora de dormir, conduziu-o ao quarto, para onde a rainha não tardou a se dirigir. O guarda viu-a despir-se, e enquanto ela lhe voltava as costas para alcançar o leito, esgueirou-se para fora do aposento; mas a rainha percebeu-lhe a presença. Compreendeu o que o marido havia feito e suportou o ultraje em silêncio, fingindo nada ter notado, mas decidindo, no fundo do coração, vingar-se de Candolo; pois entre os Lídios, como entre quase todos os povos bárbaros, constitui um opróbrio, mesmo para um homem, o mostrar-se nu.

XI - A rainha permaneceu assim tranqüila e sem deixar transparecer seu pensamento; mas logo ao romper do dia assegurou-se das disposições dos seus mais fiéis oficiais e mandou chamar Gigés. Longe de imaginá-la a par de tudo, ele atendeu-lhe a ordem, como estava habituado a fazer, sempre que ela o chamava. Quando chegou, a princesa disse-lhe: "Gigés, eis aqui dois caminhos que te dou a escolher; decide-te imediatamente: obtém pelo assassinato de Candolo minha mão e o trono da Lídia, ou a morte te impedirá de ver, de ora em diante, por uma cega obediência a Candolo, o que te é vedado. É preciso que um dos dois pereça: o que te deu essa ordem, ou tu, que me viste nua, desprezando todas as conveniências". Ante tais palavras, Gigés permaneceu suspenso por alguns instantes. Depois suplicou à rainha que não o expusesse à contingência de tão dura escolha. Vendo a impossibilidade de dissuadi-la e a urgência absoluta de eliminar o soberano ou decidir-se a morrer, preferiu poupar a si próprio.

"Já que me forçais - disse ele à rainha - a matar o meu senhor, dizei-me como deverei fazê-lo". "- Será no próprio lugar onde me viste nua que te lançarás sobre ele; deverás atacá-lo durante o sono".

XII - Traçados os planos, ela tomou suas providências para evitar que o escravo pudesse, por qualquer meio, escapar à situação. Um dos dois teria de perecer: ou ele ou Candolo. Ao cair da noite, a rainha introduziu-o no quarto, armado de um punhal, e escondeu-o atrás da porta. Mal Candolo havia adormecido, Gigés avançou sem ruído e apunhalou-o, apoderando-se, assim, da esposa e do trono. Arquíloco de Paros, que vivia nesse tempo, faz referência a esse príncipe num poema composto em versos jâmbicos trimétricos.

XIII - Gigés subiu, assim, ao trono, e ali foi confirmado pelo oráculo de Delfos. Os Lídios, indignados com a morte de Candolo, haviam, a princípio, pegado em armas, mas concordaram com os partidários de Gigés que, se o oráculo a este reconhecesse como rei, a coroa ficaria mesmo com ele; de outra maneira, ela voltaria para os Heraclidas. O oráculo pronunciou-se favoravelmente a Gigés, ficando-lhe assegurada a posse do trono. Todavia, a pitonisa acrescentou que os Heraclidas seriam vingados na quinta geração do príncipe. Nem os Lídios, nem os seus reis tiveram em conta semelhante advertência até ser ela justificada pelos fatos. E foi assim que os Mermnadas se apoderaram da coroa, arrebatando-a aos Heraclidas.

XIV - Gigés, senhor da Lídia, fez a Delfos várias oferendas, das quais grande parte em dinheiro. Acrescentou muitos vasos de ouro aos já existentes no templo, bem como seis crateras de ouro, com o peso de trinta talentos, dádiva cuja memória merece ser conservada. Essas oferendas estão incluídas no tesouro dos Coríntios, embora, a bem dizer, esse tesouro não pertença absolutamente à república de Corinto, mas a Cípselo, filho de Etion. Gigés foi, depois de Midas, filho de Górdio, rei da Frígia, o primeiro dos bárbaros conhecidos a fazer oferendas a Delfos. Midas tinha presenteado o templo com o trono no qual costumava fazer justiça. Esse trono constitui obra digna de ser vista. Está colocado no mesmo lugar onde se encontram as crateras de Gigés. De resto, os habitantes de Delfos chamam as oferendas em ouro e prata de "gigeados", do nome daquele que as fez.

Quando o príncipe viu-se senhor do reino, organizou uma expedição contra as cidades de Mileto e Esmirna, e apoderou-se da de Cólofon. Todavia, como nada mais realizou de notável durante um reinado de trinta e oito anos, contentamo-nos em reportar esse fato, não falando mais em tal reinado.

XV - Passemos agora ao seu filho Árdis. Este príncipe, sucedendo ao pai, subjugou o povo de Priena e entrou com um exército no território de Mileto. Sob o seu reinado, os Cimérios, expulsos do país pelos Citas nômades, vieram para a Ásia e tomaram Sardes, com exceção da cidadela.

XVI - Árdis reinou durante quarenta e nove anos e teve por sucessor o filho Sadiata, que reinou por doze anos. Aliata sucedeu Sadiata. Fez guerra aos Medos e a Ciaxares, neto de Déjoces; expulsou os Cimérios da Ásia; assenhoreou-se da cidade de Esmirna, colônia de Cólofon, e atacou também Clasomene, levantando, porém, o cerco, bem contra a vontade, depois de haver sofrido duro revés. Praticou ainda, durante seu reinado, outros feitos. Vou referir-me aos mais memoráveis.

XVII - Tendo seu pai desistido da guerra contra os Milésios, ele a continuou e atacou Mileto, da maneira que vou narrar: Quando os frutos da terra tinham amadurecido, partiu em campanha. O exército marchava ao som das charamelas, das harpas e das flautas masculinas e femininas{1}. Ao chegar às terras dos Milésios, o príncipe não permitiu que se destruíssem as quintas, nem que a elas ateassem fogo ou lhe arrancassem as cancelas; deixou-as permanecer no estado em que se achavam; mas cortou as árvores e devastou os trigais, depois do que se retirou, pois, sendo os Milésios senhores do mar, era inútil bloquear a cidade com um exército. Quanto às casas, Aliata não as fez destruir, para que os Milésios, tendo onde alojar-se, continuassem a semear e a cultivar suas terras, e ele tivesse o que devastar numa segunda invasão.

XVIII - Fez-lhes, dessa maneira, guerra durante onze anos. No decurso dessas campanhas, os Milésios sofreram duas derrotas consideráveis: uma em batalha travada no próprio país, num lugar denominado Limeneion; outra na planície de Meandro. Dos onze anos de luta, seis pertencem ao reinado de Sadiata, filho de Árdis, que naquele tempo ainda reinava na Lídia. Foi ele quem reativou a guerra, entrando à frente de um exército no país de Mileto. Aliata continuou-a com vigor nos cinco anos seguintes, como dissemos atrás. De todos os iônios, foram os de Quios os únicos a socorrer os habitantes de Mileto. Enviaram-lhes tropas, em retribuição ao socorro deles recebido na guerra que sustentaram contra os Eritreus.

XIX - Afinal, no décimo segundo ano, tendo os exércitos de Aliata ateado fogo aos trigais, aconteceu que as chamas, impelidas por forte vento, atingiram o templo de Minerva, denominado Assessiavo, reduzindo-o a cinzas. Os invasores não deram, a princípio, nenhuma atenção a esse acidente; mas Aliata, de volta a Sardes com seus exércitos, tendo caído enfermo e vendo a moléstia prolongar-se, enviou a Delfos delegados para consultar o oráculo sobre o caso, ou porque tivesse tomado essa resolução por si mesmo, ou porque ela lhe houvesse sido sugerida. Em Delfos, a pitonisa declarou aos delegados que nenhuma resposta daria à consulta enquanto não reerguessem o templo de Minerva, por eles queimado em Assessos, na terra dos Milésios.

XX - Ouvi dizer, entre os habitantes de Delfos, que as coisas se passaram dessa maneira; mas os Milésios acrescentam que Periandro, filho de Cípselo, amigo íntimo de Trasibulo, tirano de Mileto, ao inteirar-se da resposta do oráculo a Aliata, enviou um correio a Trasibulo, a fim de instruí-lo com antecedência sobre a decisão dos deuses, tomando medidas de acordo com as circunstâncias. Eis como, dizem os Milésios, se teriam passado as coisas.

XXI - Aliata, assim que recebeu o oráculo, enviou às pressas um arauto a Mileto, para negociar uma trégua com Trasibulo e os Milésios, até a reconstrução do templo. Enquanto o arauto se achava a caminho de Mileto, Trasibulo, bem informado de tudo e não ignorando, absolutamente, os desígnios de Aliata, percebeu a manobra. Mandou que todo o trigo que havia em Mileto, tanto em seus celeiros como nos dos particulares, fosse levado à praça pública, e ordenou, em seguida, aos Milésios, que bebessem e se entregassem a expansões de alegria a um sinal por ele dado.

XXII - Trasibulo divulgou essas ordens, para que o arauto, vendo tão grande quantidade de trigo e os habitantes entregues a tamanho regozijo, fosse relatar o fato a Aliata, o que não deixou de acontecer. O arauto, testemunhando a abundância reinante em Mileto, voltou a Sardes, logo depois de haver comunicado a Trasibulo as ordens do rei da Lídia. Foi isso, como tive notícia, a causa única do restabelecimento da paz entre esses dois príncipes. Aliata estava persuadido de que a escassez de víveres era grande em Mileto e que o povo se achava reduzido a extrema penúria. Ficou pois surpreendido ao saber, pelo seu arauto, da fartura ali existente. Algum tempo depois, os dois príncipes assinaram um tratado, cujas condições foram a de viverem como amigos e aliados. Em lugar de um templo, Aliata construiu dois a Minerva, em Assessos, e recuperou a saúde. Assim passaram-se as coisas na guerra que Aliata fez a Trasibulo e aos Milésios.

XXIII - O Periandro de que falei há pouco e que comunicou a Trasibulo a resposta do oráculo, era filho de Cípselo e reinava em Corinto. Os habitantes da cidade contam haver acontecido nesse tempo um fato realmente extraordinário, e os Lesbianos são os primeiros a confirmá-lo. Dizem que Arião de Metimna, o mais hábil tocador de cítara então existente e o primeiro, que eu saiba, a fazer e a dar nome ao ditirambo, foi carregado nas costas de um delfim até Tenara.

XXIV - Eis como se conta o fato: Arião, depois de haver permanecido por longo tempo na corte de Periandro, teve vontade de navegar para a Sicília e a Itália. Havendo acumulado no país muitos bens, resolveu retornar a Corinto. Aprestou-se para deixar Tarento e alugou um navio coríntio, por confiar mais nesse povo do que em qualquer outro.

Quando se instalou no navio, os coríntios tramaram-lhe a perda; combinaram atirá-lo ao mar para se apoderarem de suas riquezas. Arião, percebendo-lhes o propósito, ofereceu-lhes seus bens, pedindo-lhes para lhe pouparem a vida. Mas, longe de se comoverem com tais súplicas, os coríntios ordenaram-lhe que se suicidasse, se queria ser enterrado, ou se lançasse imediatamente ao mar. Levado a tão terrível dilema, Arião suplicou-lhes que, já que lhe haviam decidido a perda, lhe permitissem vestir os seus mais belos trajes e cantar no tombadilho, prometendo matar-se logo em seguida. Na expectativa de ouvir o mais hábil dos músicos, seus captores retiraram-se da popa para o meio do navio. Arião adornou-se com seus mais ricos trajes, tomou da cítara, subiu ao tombadilho e entoou uma ária ortiana{2}. Ao terminá-la, atirou-se ao mar, tal como se encontrava. Enquanto o navio velejava na direção de Corinto, um delfim, dizem, recebeu Arião nas costas e o conduziu a Tenara, onde o cantor pulou em terra, encaminhando-se para Corinto, sem trocar de roupas e contando a todos sua aventura. Periandro, não podendo dar fé à narrativa, manteve-o sob custódia, aguardando a chegada dos marinheiros. Logo que os soube na cidade, fê-los vir a sua presença e pediu-lhes notícias de Arião. Responderam-lhe que o haviam deixado com boa saúde em Tarento, na Itália, onde a sorte lhe era favorável. Arião apareceu, de repente, diante deles, tal como o tinham visto precipitar-se no mar. Tomados de assombro ante aquela aparição, não ousaram negar o crime. Os Coríntios e os Lesbianos contam assim essa história, e existe em Tenara uma pequena estátua de bronze representando um homem sobre um delfim, erguida em homenagem a Arião.

XXV - Aliata, rei da Lídia, faleceu algum tempo depois de terminar a guerra contra Mileto, tendo reinado cinqüenta e sete anos. Foi o segundo príncipe da dinastia dos Mermnadas a enviar presentes a Delfos, depois de haver recuperado a saúde: uma cratera de prata e um pires adamascado, a mais preciosa de todas as oferendas que se viam em Delfos. Era obra de Glauco de Quios, descobridor da arte de soldar o ferro.

XXVI - Morrendo Aliata, seu filho Creso subiu ao trono, com a idade de trinta e cinco anos. Éfeso foi a primeira cidade grega a ser atacada por esse príncipe. Seus habitantes, vendo-se cercados, colocaram-na sob a proteção de Diana, ligando as muralhas ao templo da deusa por meio de uma corda. Depois de haver feito guerra aos Éfesos, Creso atacou sucessivamente os Iônios e os Eólios, alegando motivos graves, quando podia encontrá-los, ou, em caso contrário, pretextos frívolos e desarrazoados.

XXVII - Tendo subjugado os gregos da Ásia, obrigando-os a pagar-lhe tributos, pensou equipar uma frota para atacar os gregos insulares. Tudo estava pronto para a construção dos navios, quando Bias de Priéne ou, segundo outros, Pitacus de Mitileno, veio a Sardes. Perguntando-lhe Creso se havia na Grécia algo de novo, sua resposta fez cessar os preparativos. "Príncipe, - disse-lhe ele - os insulares, estão adquirindo grande quantidade de cavalos, com o propósito de vir atacar Sardes e combater-te". Creso, julgando ser isto verdade, redarguiu: "Possam os deuses inspirar aos insulares o desejo de atacar os Lídios com cavalaria!" "Parece-me, senhor, - volveu Bias - que desejais ardentemente dar-lhes combate a cavalo, no continente, e vossas esperanças são fundadas; mas logo que souberem que preparais uma frota para atacá-los, aprestar-se-ão imediatamente para surpreender os Lídios no mar, pois outra coisa não aspiram senão vingar em vós os gregos do continente, por vós reduzidos à escravidão". Creso, encantado com esta observação, que lhe pareceu muito sensata, abandonou o projeto e fez aliança com os Iônios das ilhas.

XXVIII - Em seguida, subjugou Creso quase todas as nações aquém do rio Hális (exceto os Cilicianos e os Licianos), a saber: os Frígios, os Misianos, os Mariandinianos, os Chalibas, os Paflagônios, os Trácios da Ásia (os Tínios e os Bitínios), os Cários, os Iônios, os Dórios, os Eólios e os Panfílios.

XXIX - Todos esses povos, submetidos e incorporados por Creso à Lídia, tinham tornado Sardes florescente e rica. A cidade atraiu os maiores sábios gregos da época, entre os quais Sólon, o Ateniense. Depois de haver dado leis aos compatriotas que lhas haviam pedido, Sólon viajou durante dez anos, com o pretexto de observar os usos e costumes de diferentes nações, mas, na realidade, para não ver-se constrangido a revogar algumas das leis que elaborara, pois os Atenienses não tinham poderes para isso, obrigados como estavam, por juramento solene, a cumprir, durante dez anos, as leis que lhes fossem impostas.

XXX - Sólon, tendo saído de Atenas por esse motivo e, também, para satisfazer a curiosidade, dirigiu-se primeiramente ao Egito, à corte de Amasis, e de lá a Sardes, à de Creso, que o recebeu com distinção e o alojou no próprio palácio real. Três ou quatro dias depois de sua chegada, foi conduzido, por ordem do príncipe, ao tesouro, onde Creso lhe mostrou todas as suas riquezas. Quando Sólon já tinha visto e observado bem tudo, o rei falou-lhe nestes termos: "A notícia de tua sabedoria e de tuas viagens chegou até nós; e não ignoro absolutamente que, percorrendo tantos países, não tens outro fim senão o de instruir-te sobre as suas leis, seus costumes e aperfeiçoar teus conhecimentos. Quero que me digas qual o homem mais feliz que viste até hoje". Naturalmente, o soberano lhe fazia esta pergunta por julgar-se o mais feliz dos mortais. "É Telo de Atenas" - tespondeu Sólon sem lisonjeá-lo e sem disfarçar a verdade. Ante essa resposta, volveu Creso: "Por que julgas Telo tão feliz?" "Porque, residindo numa cidade florescente, - continuou Sólon - teve dois filhos lindos e virtuosos, e cada um lhe deu netos, que viveram muitos anos, e afinal, depois de haver usufruído uma fortuna considerável em relação às do nosso país, terminou os seus dias de maneira admirável: num combate dos Atenienses com seus vizinhos de Eleusis. Saindo em socorro dos primeiros, pôs em fuga os inimigos e pereceu gloriosamente. Os Atenienses ergueram-lhe um monumento por subscrição pública, no próprio local onde ele tombou morto, e lhe tributaram grandes honras".

XXXI - Um tanto decepcionado diante da revelação de Sólon sobre a felicidade de Telo, Creso voltou a perguntar-lhe quem, depois desse ateniense, considerava ele o mais feliz dos homens, não duvidando, absolutamente, que o segundo lugar lhe pertencia. "Cléobis e Biton" - respondeu Sólon. "Eram árgios e desfrutavam as rendas de pecúlio honesto. Eram, por outro lado, tão fortes, que haviam ambos conquistado prêmios nos jogos públicos. Conta-se sobre eles o seguinte caso: Os Árgios celebravam uma festa em honra de Juno. A mãe desses dois jovens tinha absoluta necessidade de ir ao templo num carro, e os bois tardavam a chegar do campo. Os rapazes, vendo o tempo passar, puseram-se eles mesmos sob a canga, e puxando o carro, no qual ia a mãe, conduziram-no assim, numa distância de quarenta e cinco estádios, até o templo da deusa. Depois dessa bela ação, testemunhada por grande número de pessoas, terminaram seus dias da maneira mais ditosa, pretendendo a divindade, com isso, mostrar que é mais vantajoso para o homem morrer do que viver: Os Árgios, reunidos em torno dos dois jovens, louvaram-lhes o procedimento, enquanto as mulheres felicitavam a sacerdotisa por possuir tais filhos. Esta, no auge da alegria, cumulada de elogios, de pé, junto à estátua, pediu à deusa que concedesse aos dois jovens, Cléobis e Biton, que a tinham honrado tanto, a maior felicidade que pode alcançar um mortal. Terminada a prece, depois do sacrifício e do festim solene, os rapazes adormeceram no próprio templo, para não mais despertar. Os Árgios ergueram estátuas a ambos e os consagraram a Delfos, como homens perfeitos".

XXXII - Sólon concedia, com esse discurso, o segundo lugar a Cléobis e Biton. "Ateniense, - replicou Creso colérico - fazes tão pouco caso da minha felicidade, que me julgas indigno de ser comparado com homens comuns?" "Ó Creso, - volveu Sólon - perguntais-me o que penso da vida humana; poderia responder-vos de outra maneira, eu que sei como a divindade tem ciúme da ventura dos seres humanos e como se apraz em perturbá-la. Numa longa peregrinação pela terra vemos e sofremos muitas coisas desagradáveis. Dou a um homem setenta anos como o mais longo tempo de vida. Esses setenta anos fazem vinte e cinco mil e duzentos dias, omitindo os meses intercalados; mas se a cada seis anos acrescentardes um mês, para que as estações caiam precisamente no tempo certo, em setenta anos tereis doze meses intercalados, menos a terça parte de um mês, perfazendo trezentos e cinqüenta dias, os quais, acrescentados aos vinte e cinco mil e duzentos, darão vinte e cinco mil quinhentos e cinqüenta dias. Ora, entre esses vinte e cinco mil quinhentos e cinqüenta dias, perfazendo setenta anos, não encontrareis um que não traga um acontecimento semelhante a outros. É preciso convir, senhor, que o homem não é senão vicissitudes. Possuís certamente riquezas consideráveis e reinais sobre um grande povo, mas não posso responder à vossa pergunta sem saber se terminareis os vossos dias na abundância; pois o homem cumulado de riquezas não é superior àquele que possui o necessário, a menos que a boa sorte o acompanhe e que, gozando de todas essas espécies de bens, termine venturosamente a existência. Nada mais comum do que a desgraça na opulência e a ventura na obscuridade. Um homem imensamente rico mas infeliz tem apenas duas vantagens sobre o feliz, enquanto que este conta com grande número delas sobre o rico infeliz. O homem rico está mais em condições de satisfazer seus desejos e de suportar grandes perdas, mas se o outro não pode resistir a essas perdas, nem contentar os desejos, sua felicidade o põe a coberto de umas e de outros. Aliás, admitindo que ele esteja no uso de todos os seus membros, goze de boa saúde, não sofra nenhum desgosto e seja feliz com os filhos; se a todas essas vantagens acrescentardes a de uma morte gloriosa, aí tereis o homem que procurais. Ele, sim, merece a classificação de feliz. Mas, antes da morte, evitai julgá-lo; não lhe deis esse nome; considerai-o somente bem aquinhoado.

"É impossível um homem reunir as condições necessárias à felicidade da mesma maneira que nenhum país possui todos os bens de que necessita. Se conta com uns, está sempre privado de outros; o melhor será o que possuir maior número deles. Assim acontece com o homem: não há um que se baste a si mesmo. Se possui algumas vantagens, outras lhe faltam. Quem reúne maior número e o conserva até o fim dos dias, deixando tranqüilamente a vida, este, senhor, merece, na minha opinião, ser chamado feliz. Devemos considerar o término de todas as coisas e ver que nisso se encontra a única saída; pois Deus, depois de entremostrar a felicidade a certos homens, costuma destruí-la por completo de um momento para outro."

XXXIII - Assim falou Sólon. Nada dissera de agradável a Creso e não lhe havia testemunhado a menor estima. Por isso, foi logo despedido. Provavelmente, tratou-se de ignorante um homem que, sem dar importância aos bens presentes, queria que em tudo se encarasse sempre o fim.

XXXIV - Depois da partida de Sólon, a vingança dos deuses caiu de maneira terrível sobre Creso, em punição, como se pode conjecturar, por julgar-se ele o mais feliz dos homens. Um sonho, nessa ocasião, anunciou-lhe os infortúnios que pesavam sobre um dos seus filhos. Creso possuía dois filhos, um dos quais vitimado por uma desgraça de nascença: era surdo-mudo. O outro, de nome Átis, mostrava-se em tudo superior aos jovens de sua idade. O sonho anunciou que Átis pereceria numa ponta de ferro. Ao despertar, o soberano entregou-se a profundas reflexões. Temendo pelo filho, escolheu-lhe uma esposa e afastou-o do exército, à frente do qual costumava enviá-lo. Mandou retirar os dardos, as lanças e toda espécie de armas usadas na guerra, dos alojamentos dos soldados, onde, segundo o costume, eram suspensas na parede, e guardá-las em depósito, temeroso de que uma delas caísse sobre o filho.

XXXV - Enquanto Creso se ocupava das núpcias do jovem príncipe, chegou a Sardes um infeliz, cujas mãos estavam impuras. Tratava-se de um frígio, em cujas veias corria sangue real. Dirigindo-se ao palácio, pediu a Creso para purificá-lo, no que foi atendido. As expiações entre os Lídios assemelham-se muito às praticadas na Grécia. Depois da cerimônia, Creso quis saber de onde vinha aquele homem e quem era. "Estrangeiro, - disse-lhe ele - de que parte da Frígia vieste para sentar em tom suplicante à minha lareira? Que homem, que mulher mataste?" "Senhor, sou filho de Górdio e neto de Midas. Chamo-me Adrasto. Matei meu irmão, sem o querer. Expulso por meu pai e despojado de tudo, vim procurar aqui um asilo". "Descendes de uma família que muito estimo - volveu Creso. - És meu amigo; nada te faltará em meu palácio enquanto aqui permaneceres. Suportando com resignação tua infelicidade, muito lucrarás com isso". Adrasto ficou, então, vivendo no palácio de Creso.

XXXVI - Nesse ínterim, apareceu em Mísia um javali de grandes proporções, o qual, descendo do Monte Olimpo, começou a fazer enormes estragos pelos campos. Os Mísios já lhe tinham dado caça várias vezes, mas sem êxito algum, enquanto a fera continuava a causar-lhes inúmeros danos. Em vista disso, foi enviada uma delegação à presença de Creso. "Senhor, - disseram os delegados - apareceu em nossas terras um terrível javali, que devasta os nossos campos, e, apesar de todos os nossos esforços, ainda não conseguimos eliminá-lo. Vimos pedir-vos para enviar em nossa companhia o príncipe, vosso filho, à frente de uma escolta de jovens escolhidos, juntamente com a vossa matilha, a fim de livrar-nos do flagelo". Creso, lembrando-se do sonho, respondeu: "Não me falem mais de meu filho; não posso enviado com vocês. Recém-casado, ele não se ocupa agora senão da esposa; mas dar-lhes-ei minha equipagem de caça, com a elite da juventude lídia, à qual recomendarei que se empenhe com ardor para livrá-los do javali".

XXXVII - Os Mísios retiraram-se satisfeitos com a resposta, mas Átis, tendo escutado o pedido e testemunhado a recusa de Creso, entrou logo depois, dirigindo-se ao rei: "Meu pai, as ações mais nobres e as mais generosas me eram outrora permitidas; eu podia me adestrar na guerra e na caça, mas vós me afastais hoje de uma e de outra, embora não tenhais notado em mim nem covardia nem fraqueza. Quando eu for à praça pública ou dali voltar, com que olhos me verão? Que opinião farão de mim os nossos concidadãos? Que idéia formulará a jovem princesa que acabo de desposar? A que homem se julgará ela unida? Permiti-me, pois, ir a essa caçada com os Mísios, ou provai ser mais conveniente fazer o que desejais".

XXXVIII - "Meu filho, - volveu Creso - se agi dessa forma, não foi por haver notado em ti a menor covardia ou alguma outra coisa que me desagradasse; mas uma visão, em sonho, há pouco tempo, me fez sentir que perecerias ferido por uma arma de ferro. Por esse motivo, apressei-me em casar-te, e por isso não te enviei a esta expedição; e continuo tomando toda sorte de precauções para afastar, pelo menos enquanto viver, o mal que te ameaça. Não tenho senão a ti como filho, já que o outro, privado de ouvir, não existe para mim".

XXXIX - "Meu pai, - replicou o jovem príncipe - se assim é, vejo que velais por mim. Parece-me, todavia, que não interpretastes bem esse sonho. O que não compreendeis, o que nele vos escapou, devo explicar-vos. O sonho, dizeis, vos revelou que eu deveria morrer ferido por uma ponta de ferro. Mas um javali tem mãos? Está ele armado com o ferro perfurante que tanto temeis? Se o sonho vos advertisse que devo morrer nas garras de um javali ou de maneira semelhante, teríeis motivo para tomar as providências que tomastes. Observai, porém, que se trata de uma ponta de ferro. Já que não irei combater homens, permiti-me tomar parte nessa empreitada".

XL - "Meu filho, - redarguiu Creso - tua interpretação é mais justa do que a minha, e como me convenceste, mudo de propósito e permito que partas para a caçada".

XLI - Logo em seguida mandou Creso chamar o frígio Adrasto, a quem se dirigiu nestes termos: "Estavas sob o signo da desgraça, Adrasto (que o céu me preserve de censurar-te); eu te purifiquei, eu te recebi no meu palácio, onde tens vivido confortavelmente. Creio, pois, que sou, pelos meus benefícios, merecedor de uma retribuição tua. Meu filho parte para a caça. Confio-te a guarda de sua pessoa; protege-o dos bandidos que poderão atacá-lo pelo caminho. Aliás, cumpre-te buscar uma ocasião para te distinguires; teus pais te prepararam para isso, e o vigor de tua idade o permite".

XLII - "Senhor, - respondeu Adrasto - não fora tão justo motivo eu não iria absolutamente a essa caçada, pois preferiria, dada minha atual situação, abster-me de me imiscuir com homens de tão reto procedimento e felizes. Mas, já que assim o desejais, estou pronto a obedecer-vos. Os vossos benefícios vos fizeram merecedor de toda a minha gratidão. Podeis ficar tranqüilo. Vosso filho, cuja guarda me confiais, voltará são e salvo, se isso depender de mim".

XLIII - Após essa breve entrevista, o príncipe e Adrasto partem com um grupo de jovens de elite e a matilha do rei. Chegando ao Monte Olimpo, procuram o javali, encontram-no, cercam-no e o atacam. Então, Adrasto, o estrangeiro purificado da prática de um homicídio, lança um dardo, que, errando o javali, vai atingir mortalmente o filho de Creso. Realiza-se, assim, o tão temido sonho: Átis perece traspassado por um ferro agudo. Imediatamente um correio despachado para Sardes leva ao soberano a notícia do trágico desfecho da caçada.

XLIV - Creso, atordoado por tão grande desgraça, sentiu-se ainda mais infeliz e culpado, por haver purificado de um homicídio o causador de sua desdita. Abandonando-se à sua imensa dor, invocava Júpiter, tomando-o como testemunha do mal que lhe havia feito aquele estrangeiro; invocava-o como protetor da hospitalidade, porque, concedendo a Adrasto um abrigo em seu palácio, alimentava, sem saber, o assassino de seu filho; invocava-o como deus da amizade, porque havia encarregado Adrasto da guarda do filho e encontrara nele o pior inimigo.

XLV - Algum tempo depois, chegaram os Lídios trazendo o cadáver de Átis, seguido daquele que o matara. Adrasto, de pé diante do cadáver, as mãos estendidas para Creso, roga-lhe que o sacrifique sobre o corpo inanimado do filho, uma vez que a vida se lhe tornara odiosa, desde que, ao seu primeiro crime, acrescentara um segundo, matando o filho de quem o tinha purificado. Apesar do luto que cobria a família, Creso não pôde ouvir o discurso do estrangeiro sem sentir-se tocado de compaixão.

"Adrasto, - disse-lhe ele - condenando-te a ti mesmo à morte, satisfazes plenamente minha vingança. Não te culpo desta morte, pois ela foi involuntária. Não acuso senão o deus que há tempos a previu". Depois de cumprir os últimos deveres ao filho, Creso ordenou que os funerais fossem realizados de acordo com a sua categoria. Terminada a cerimônia, completo silêncio reinou em torno do túmulo. Então Adrasto, filho de Górdio, neto de Midas, assassino do próprio irmão, assassino involuntário do filho daquele que o havia purificado, sentindo-se o mais infeliz dos homens, pôs termo à vida sobre a campa de Átis.

XLVI - Creso chorou dois anos a morte do filho. Mas a crescente ameaça que vinha constituindo ao seu reino o império de Astíages, filho de Ciaxares, destruído por Ciro, filho de Cambises, e dos Persas, que ganhava, dia a dia, maior desenvolvimento, pôs termo àquela dor. Começou ele a não pensar em outra coisa senão em reprimir esta potência, antes que ela se tornasse mais forte. Inteiramente absorvido por semelhante idéia, resolveu consultar os oráculos da Grécia e o da Líbia. Enviou delegados a diversos lugares, uns a Delfos, outros a Abes, na Fócida, outros a Dodona; alguns ao oráculo de Anfiaraus; outros a Trofônio e aos Branquidas, na Milésia. Estes foram os oráculos da Grécia que Creso fez consultar. Despachou também emissários para a Líbia, com destino ao templo de Júpiter Ámon. Esses delegados eram enviados com o fito de experimentar o acerto e a legitimidade dos oráculos da Grécia e da Líbia. Se suas respostas fossem exatas, consultá-los-ia uma segunda vez, para saber se devia ou não fazer guerra aos Persas.

XLVII - Deu ordem aos delegados para sondar os oráculos e consultá-los no centésimo dia a contar da partida dos mesmos de Sardes, perguntando-lhes o que ele, Creso, filho de Aliata, rei da Lídia, fazia naquele dia, e de trazer-lhe por escrito a resposta de cada um. Conhece-se apenas a resposta do oráculo de Delfos, ignorando-se a dos demais. Logo que entraram no templo, os enviados lídios, cumprindo as instruções recebidas, fizeram à pitonisa a pergunta previamente combinada. A resposta veio prontamente: "Conheço o número dos grãos de areia e a medida do mar; compreendo a língua do mudo, ouço a voz do que não fala. Meus sentidos acusam o cheiro de uma tartaruga que está sendo cozinhada, com a carne de um cordeiro, num caldeirão de bronze; o bronze estende-se sobre ela, o bronze recobre-a".

XLVIII - Anotando cuidadosamente a resposta da pitonisa, os emissários partiram de regresso a Sardes. Quando os demais delegados, enviados a diversos países, regressaram também com as respostas dos outros oráculos, Creso abriu-as e examinou cada uma em particular. Algumas não condiziam com a realidade, mas ao ler a resposta de Delfos, Creso reconheceu-a como verdadeira e adorou o oráculo persuadido de que esse era o único certo, pois indicara com exatidão o que, no momento, ele fazia. Realmente, depois da partida dos delegados, atentando para o dia combinado, imaginara a coisa mais impossível de adivinhar-se e de conhecer-se. Tendo ele próprio cortado em pedaços uma tartaruga e um cordeiro, cozinhara-os juntos num vaso de bronze, cuja tampa era do mesmo metal. Foi exatamente isso o que dissera a pitonisa de Delfos.

XLIX - Quanto à que receberam os lídios no templo de Anfiaraus depois das cerimônias e dos sacrifícios prescritos, ignoro-o por completo. Sabe-se apenas haver Creso reconhecido também a justeza desse oráculo.

L - O príncipe tratou, em seguida, de captar as boas graças do deus de Delfos por meio de suntuosos sacrifícios, nos quais se imolaram três mil animais pertencentes a todas as espécies cuja imolação às divindades é permitida. Fez, depois, queimar, numa grande fogueira, leitos dourados e prateados, vasos de ouro, roupas de púrpura e outras vestes, imaginando, com isso, tornar o deus mais favorável. Concitou também os Lídios a imolarem todas as vítimas de que dispunham. Mandando fundir, depois desse sacrifício, prodigiosa quantidade de ouro, fez cento e dezessete plintos, os mais longos, de seis palmos, e os menores, de três, por um de espessura. Havia, também, quatro de ouro fino, com o peso de um talento e meio, e outros de ouro fosco, pesando dois talentos. Mandou modelar, igualmente, um leão de ouro fino, com o peso de dez talentos. Esse leão, foi, em seguida, colocado sobre os plintos, de onde mais tarde caiu, quando o templo de Delfos foi queimado, encontrando-se agora incluído no tesouro dos Coríntios. Atualmente não tem o mesmo peso, porque no incêndio do templo se fundiram três talentos e meio.

LI - Terminadas essas obras, Creso enviou-as a Delfos, juntamente com muitas outras oferendas, tais como duas enormes crateras, uma de ouro e a outra de prata. A primeira foi colocada à direita na entrada do templo, e a segunda à esquerda. Retiraram-nas, também, dali, depois do incêndio. A cratera de ouro encontra-se hoje no tesouro dos Clasomênios. Pesa oito talentos e meio. A de prata está no ângulo do vestíbulo do templo. Esta contém seiscentas ânforas. Os Delfenses ali misturam água com vinho nas festas denominadas Teofânios. Dizem que essas valiosas peças foram confeccionadas por Teodoro de Samos, e assim o creio, por me parecerem trabalhos delicadíssimos. Além dessas dádivas, o soberano enviou também ao templo quatro moedas de prata, hoje agregadas ao tesouro dos Coríntios, e duas bacias para água lustral, sendo uma de ouro e outra de prata. Na de ouro acha-se gravado o nome de Lacedemônios, os quais pretendem, sem razão, terem sido os autores dessa oferta, pois o que é certo é que elas constituem um presente de Creso. A inscrição foi ali posta por um habitante de Delfos para lisonjear os Lacedemônios. Omitirei o nome do autor da façanha, embora o saiba muito bem. A essas dádivas Creso acrescentou muitas outras de menor valor.

LII - Quanto a Anfiaraus, em retribuição ao que revelou o oráculo sobre as virtudes e as desgraças do rei, este lhe consagrou um escudo de ouro maciço, com uma lança igualmente de ouro maciço. No meu tempo, viam-se ainda, um e outro, em Tebas, no templo de Apolo Ismênio.

LIII - Os lídios encarregados de levar esses presentes aos oráculos de Delfos e Anfiaraus tinham ordem de perguntar-lhes se Creso devia fazer guerra aos Persas e juntar ao seu exército tropas aliadas. Chegando ali, apresentaram as ofertas e consultaram os oráculos nestes termos: "Creso, rei dos Lídios e de outras nações, persuadido de que sois os únicos verdadeiros oráculos existentes no mundo, vos envia estes presentes que julga dignos de vossa sapiência, e vos pergunta se deve marchar contra os Persas e reunir às suas forças tropas aliadas". Os dois oráculos concordaram nas respostas. Predisseram, um e outro, ao soberano, a guerra contra os Persas e a conseqüente destruição de um grande império, aconselhando-o a procurar a amizade dos Estados da Grécia que lhe parecessem mais poderosos.

LIV - Ao ter conhecimento dessas respostas, Creso experimentou imensa alegria, e alimentando a esperança de arrasar o império de Ciro, enviou novos emissários a Delfos com a finalidade de presentear cada um dos habitantes (o soberano sabia o número exato deles) com duas balanças de ouro. Os Delfenses, em reconhecimento, concederam a Creso e aos Lídios a prerrogativa de consultar, em primeiro lugar, o oráculo, imunidades e prioridade, e o privilégio perpétuo de se tornarem cidadãos de Delfos, quando o desejassem.

LV - Tendo enviado esses presentes aos Delfenses, Creso consultou o deus pela terceira vez, pois desde que reconheceu-lhe a veracidade não mais cessou de a ele recorrer. Perguntou-lhe se seu reinado seria de longa duração, recebendo esta resposta: "Quando um asno for rei dos Medos, então foge, lídio efeminado, para as margens do Termo pedregoso; não penses em resistir e nem te envergonhes da covardia".

LVI - Essa resposta agradou a Creso mais do que todas as outras. Persuadido de que não se veria jamais no trono dos Medos um asno, concluiu que nem ele nem os seus descendentes perderiam o império. Procurou, então, saber quais os povos mais poderosos da Grécia, no propósito de fazer amigos, chegando à conclusão de que os Lacedemônios e os Atenienses estavam em primeiro lugar: uns, entre os Dórios, outros, entre os Iônios. Essas nações eram, realmente, outrora, as mais poderosas, pertencendo, uma, ao ramo pelásgico e a outra ao helênico.

LVII - Que língua falavam então os Pelasgos, é um ponto sobre o qual nada posso afirmar. É-nos permitido supor que esses povos, outrora vizinhos dos Dórios e habitando a região atualmente denominada Tessaliótida, assim como os que fundaram Plácia e Silacé, no Helesponto, e que viveram com os Atenienses, falavam uma língua bárbara. Se assim era, segue-se que os Atenienses, pelasgos de origem, esqueceram sua língua ao se tornarem helenos, aprendendo a desse povo.

LVIII - Quanto à nação helênica, desde a origem adotou ela a mesma língua. Pelo menos é o que me parece. Fraca a princípio, separada dos Pelasgos e partindo de débil origem, foi-se desenvolvendo até constituir-se em grande número de povos - principalmente depois que várias nações bárbaras a ela se incorporaram. Foi isso que, na minha opinião, impediu o desenvolvimento dos Pelasgos, que eram bárbaros.

LIX - Soube Creso que os Atenienses, um desses povos fragmentados em diversos grupos, se achavam sob o jugo de Pisístrato, filho de Hipócrates, então tirano de Atenas. Hipócrates era um simples particular. Deu-se com ele, certa feita, nos Jogos Olímpicos, um fato memorável: Estava ele oferecendo um sacrifício aos deuses, quando as caldeiras, perto do altar, cheias de vítimas e de água, começaram a ferver sem fogo, e a água extravasou. Quílon, da Lacedemônia, que por acaso estava presente, testemunhando o milagre, aconselhou Hipócrates a não desposar uma mulher fecunda, ou então, se já era casado, a repudiar a esposa, e se nascesse um filho, não o reconhecesse. Hipócrates repeliu os conselhos de Quílon. Algum tempo depois, nasceu Pisístrato, que na questão entre os Parálios, habitantes do litoral, comandados por Megacles, filho de Alcmeon, e os habitantes da planície, chefiados por Licurgo, filho de Aristolaides, suscitou, para abrir caminho à tirania, a formação de um terceiro partido. Organizou esse partido sob o pretexto de defender os habitantes da montanha. Eis a manobra que forjou: Tendo ferido a si próprio e a seus animais de carga, arrastou seu carro até a praça pública, como se houvesse escapado das mãos do inimigo. Conjurou os Atenienses a lhe concederem uma guarda, lembrando-lhes a glória com que se cobrira à frente dos seus exércitos contra os Megários, a tomada de Niséia, e citando-lhes vários outros exemplos de valor. O povo, ludibriado, deu-lhe por guarda certo número de cidadãos escolhidos, que o escoltavam armados de maças de madeira. Pisístrato sublevou-os e apoderou-se, dessa maneira, da cidadela. Desde então, tornou-se senhor de Atenas, mas sem perturbar o exercício das magistraturas e sem alterar as leis. Pôs em ordem a cidade e governou-a sabiamente, segundo os costumes tradicionais. Pouco tempo depois, as facções reunidas de Megacles e de Licurgo expulsaram o usurpador.

LX - Assim, Pisístrato, tendo-se tornado senhor de Atenas, foi despojado da tirania, que ainda não tivera tempo de lançar raízes profundas. Os que o expulsaram reiniciaram, dentro em pouco, suas antigas disputas. Megacles, acossado de todo lado pela facção contrária, mandou propor a Pisístrato, por um arauto, restabelecê-lo no poder, se ele quisesse desposar-lhe a filha. Pisístrato aceitou a proposta, e empenhando-se no cumprimento da condição, imaginou, de acordo com Megacles, para sua reintegração no poder, um meio tanto mais ridículo, a meu ver, quanto na antigüidade os Gregos sempre se distinguiram dos bárbaros como mais instruídos e despidos de tolas credulidades - e os autores desta trama tratavam com Atenienses, povo que gozava da reputação de ser o mais espiritual da Grécia.

Havia em Peônia, burgo da Ática, certa mulher de nome Fia, com aproximadamente quatro côvados de altura e dotada de grande beleza. Armaram essa mulher, dos pés à cabeça, e fazendo-a subir num carro, depois de instruírem-na sobre o papel que deveria desempenhar, conduziram-na à cidade. Levavam à frente arautos que, à chegada, puseram-se a gritar, de acordo com as ordens recebidas: "Atenienses, acolhei favoravelmente a Pisístrato; Minerva, que o honra mais do que a todos os outros homens, está conduzindo-o, ela própria, à cidade".

Os arautos iam de um lado para outro, repetindo a mesma proclamação. Logo divulgou-se a notícia de que Minerva conduzia Pisístrato, e os habitantes da cidade, persuadidos de que aquela mulher era realmente Minerva, prosternaram-se para adorá-la e acolherem Pisístrato.

LXI - Tendo, por essa maneira, recuperado a soberania, Pisístrato desposou a filha de Megacles, segundo o compromisso firmado entre ambos; mas como já possuía filhos crescidos, e como os Alcmeônidas passavam por atingidos de maldição, não querendo filhos da nova mulher, teve com ela apenas contatos contra a natureza. A princípio, a jovem esposa suportou em silêncio tal ultraje, mas depois o revelou à própria mãe, espontaneamente ou premida pelas perguntas desta. A mãe comunicou o caso a Megacles, seu esposo, que, indignado com a afronta do genro, reconciliou-se, na sua cólera, com a facção oposta.

Informado do que se tramava contra ele, Pisístrato abandonou a Ática, dirigindo-se para a Erétria, onde pediu conselhos a seu filho Hípias. Este aconselhou-o a recuperar o trono, sendo o alvitre aceito. As cidades às quais Pisístrato tinha prestado outrora algum serviço cumularam-no de presentes. Várias deram-lhe somas consideráveis, mas foram os Tebanos os que mais se distinguiram pela sua liberalidade. Pouco mais tarde, tudo estava pronto para o regresso do tirano. Do Peloponeso foram enviadas tropas árgias mercenárias, e um náxio de nome Ligdâmis acorreu cheio de zelo, com homens e dinheiro para a empresa.

LXII - Partindo da Erétria para entrar na Ática, depois de uma ausência de onze anos, Pisístrato e suas tropas apoderaram-se primeiramente de Maratona, onde ergueram acampamento. Sabedores do seu regresso, seus partidários e de seu filho Hípias acorreram em grande número ao seu encontro, uns de Atenas, outros dos burgos - todos preferindo a tirania à liberdade.

Os Atenienses seus adeptos nenhuma importância lhe deram enquanto estivara ocupado em levantar dinheiro para a sua volta, e mesmo depois que se tornou senhor de Maratona; mas, ante a notícia de que ele avançava desta cidade para Atenas, foram, com todas as suas tropas, reunir-se a ele. Entrementes, Pisístrato e os seus, tendo partido de Maratona num só corpo de exército, aproximavam-se de Atenas. Chegando defronte do templo de Minerva Palenide, ali acamparam. Um adivinho chamado Anfilito, inspirado pelos deuses, veio apresentar-se a Pisístrato e transmitir-lhe este oráculo: "As redes foram lançadas; à noite, ao luar, os atuns acorrerão em cardumes".

LXIII - Pisístrato, aceitando o augúrio, pôs-se incontinênti em marcha com o seu exército. Os cidadãos de Atenas já haviam feito o repasto, e enquanto uns se divertiam jogando dados, outros entregavam-se ao sono. Foi quando Pisístrato, caindo sobre eles com as suas tropas, os pôs em fuga. A fim de evitar que os fugitivos se concentrassem novamente para oferecer-lhe resistência, o tirano serviu-se de engenhoso meio: Mandou que seus filhos montassem a cavalo e ordenou-lhes que tomassem a dianteira. Alcançando estes os fugitivos, exortaram-nos, da parte do pai, a ficar tranqüilos e a retornar às suas casas.

LXIV - Os Atenienses obedeceram, e Pisístrato, tornando-se senhor de Atenas pela terceira vez, consolidou a tirania por meio de suas tropas auxiliares e de grandes quantidades de prata, que retirava, em parte, do próprio país, e, em parte, do rio Estrímon. Firmou-se ainda no poder devido à sua conduta para com os atenienses que não haviam fugido. Amparou-lhes os filhos, enviando-os a Naxos, pois havia conquistado também essa ilha e confiado o seu governo a Ligdâmis. Por outro lado, purificou a ilha de Delfos, seguindo a ordem dos oráculos. Eis como foi feita essa purificação: Em todos os lugares de onde se avistava o templo, mandou ele exumar cadáveres e transportá-los para outro cantão da ilha. Pisístrato teve ainda menos trabalho para consolidar a tirania sobre os Atenienses, porque muitos dos que a ele se opunham haviam sido mortos em combate, enquanto que outros tinham abandonado a pátria, desertando em companhia de Megacles.

LXV - Tal era a situação em que se encontravam os Atenienses, segundo a informação recebida por Creso. Quanto aos Lacedemônios, disseram-lhe que, depois de haverem sofrido perdas consideráveis, estavam, afinal, levando a melhor na guerra contra os Tegeatas. Realmente, no reinado de Leão e de Agasicles, os Lacedemônios, vitoriosos em outras guerras, tinham fracassado somente contra os Tegeatas. Este povo era, outrora, o menos civilizado entre os Gregos, e não faziam nenhum comércio com os estrangeiros e nem mesmo entre eles próprios; mas, depois, passaram, da maneira que vou contar, a possuir melhor legislação. Licurgo gozava em Esparta da mais alta estima. Chegando certa vez a Delfos para consultar o oráculo, assim que entrou no templo ouviu estas palavras da pitonisa: "Eis que vens ao meu templo, amigo de Júpiter e dos habitantes do Olimpo. Hesito em declarar-te um deus ou um homem; creio-te, antes, um deus". Acrescentam alguns que foi a pitonisa quem lhe ditou a constituição ora vigente em Esparta; mas como julgam os próprios Lacedemônios, Licurgo trouxe as referidas leis de Creta, no reinado de Leobotas, seu sobrinho, rei de Esparta. Realmente, logo que assumiu a tutela desse jovem príncipe, reformou as leis antigas e tomou medidas contra a transgressão das novas. Regulamentou, em seguida, o que concernia à guerra, os enomotios, os tricados e os sissitos, e instituiu, além disso, os éforos e os senadores.

LXVI - Assim vieram os Lacedemônios a possuir um governo bem organizado. Depois da morte de Licurgo, ergueram-lhe um templo, ao qual tinham grande veneração. Habitando um país fértil e densamente povoado, sua república não tardou a prosperar e a tornar-se florescente; mas entediados com o repouso e julgando-se superiores aos Arcadenses, consultaram o oráculo de Delfos sobre a conquista da Arcádia. A pitonisa respondeu: "Pedis-me a Arcádia? O pedido é excessivo; não posso satisfazê-lo. A Arcádia possui guerreiros fortes e decididos, que repelirão vosso ataque. Todavia, para satisfazer vossa cobiça ofereço-vos a Tegéia, com suas extensas planícies."

Ante essa resposta, os Lacedemônios renunciaram à Arcádia e, munidos de grilhões, marcharam contra os Tegeatas, considerando-os já escravos seus e confiantes num oráculo um tanto duvidoso. Sofreram, porém, tremenda derrota, e todos os que caíram vivos nas mãos do inimigo foram postos sob os próprios grilhões que traziam e compelidos a trabalhar nas terras dos Tegeatas. Esses grilhões, ainda os vi pendentes das paredes do templo de Minerva Aléia.

LXVII - Os Lacedemônios haviam sido continuamente mal sucedidos em suas primeiras guerras contra os Tegeatas; mas no tempo de Creso, no reinado de Anaxandrido e de Ariston, em Esparta, conseguiram sobrepujá-los pelos meios que passo a expor. Desejosos de vingar as passadas derrotas que lhes infligiu aquele povo, mandaram perguntar ao oráculo de Delfos a que deus deviam recorrer para conquistarem o triunfo. A pitonisa respondeu-lhes que triunfariam se levassem com eles os ossos de Orestes, filho de Agamémnon. Como não conseguiam descobrir o túmulo de Orestes, dirigiram-se novamente ao oráculo para perguntar-lhe em que lugar repousavam os restos do herói, obtendo esta resposta: "Nas planícies da Arcádia fica situada uma cidade denominada Tegéia, varrida por dois ventos que sopram em direções contrárias, e o mal está sobre o mal. É ali que o seio fecundo da terra guarda o filho de Agamémnon. Se levardes seu esqueleto a Esparta, vencereis Tegéia".

Ante essa resposta, os Lacedemônios se entregaram com maior ardor às suas buscas, cavando o solo em toda parte, até que afinal, Licas, um espartano da classe dos argaturgos. fez a grande descoberta. Denominam-se argaturgos os cavaleiros mais velhos, já reformados. Todos os anos reformam-se cinco, e quando deixam as fileiras, realizam excursões por toda parte, antes de gozarem o repouso merecido.

LXVIII - Nesse número estava incluído Licas, o autor da descoberta do túmulo de Orestes. O acaso e habilidade de Licas cooperaram para a importante revelação. Encontrando-se em Tegéia, entrou ele, certo dia, na oficina de um ferreiro, onde viu malhar o ferro. Percebendo a admiração que isso lhe causava, o ferreiro interrompeu seu trabalho e, voltando-se para ele, disse-lhe: "Lacedemônio, ficarias bem mais espantado se visses a maravilha que eu vi, tu, para quem o trabalho de uma forja é motivo de surpresa! Cavando um poço neste pátio, encontrei um caixão de sete côvados de comprimento. Como não podia admitir que existissem, outrora, homens maiores do que os de hoje, abri-o. O corpo que ali descobri era do tamanho do esquife. Medi-o e depois cobri-o novamente de terra". Licas, refletindo sobre a narrativa do ferreiro, pensou logo na hipótese de ser aquele o corpo de Orestes, indicado pelo oráculo. Observou também a confluência dos ventos opostos no local, enquanto que o ferro, batido sobre a bigorna, pareceu-lhe a tradução das palavras do oráculo: "o mal sobre o mal", pois o ferro não havia sido descoberto senão para a infelicidade dos homens.

Com o espírito absorvido por essas conjecturas, retorna ele a Esparta e relata sua aventura aos Lacedemônios. Estes fazem-lhe uma acusação simulada, e ele passa por banido. Licas volta a Tegéia, conta sua desgraça ao ferreiro e empenha-se, com todas as forças, para que ele lhe alugue o pátio. A princípio, o ferreiro recusa-se a atender ao seu pedido, mas acaba concordando. Licas ali se instala, abre o túmulo e retira o esqueleto de Orestes, levando-o para Esparta. A partir daí, os Lacedemônios alcançaram grandes sucessos em todos os combates que travaram contra os Tegeatas. Aliás, a maior parte do Peloponeso já lhes estava submetida.

LXIX - Creso, informado de todos esses fatos, enviou embaixadores a Esparta, com presentes, para solicitarem a aliança dos Lacedemônios. Seguindo as instruções recebidas, assim se expressaram esses emissários: "Creso, rei da Lídia e de várias outras nações, nos enviou aqui para transmitir-vos esta mensagem: "Ó Lacedemônios; ordenando-me o deus de Delfos a contrair amizade com os Gregos, dirijo-me a vós, de acordo com o oráculo, porque sei que sois o primeiro povo da Grécia e desejo vossa aliança, sem fraude nem má fé". Os Lacedemônios, que não ignoravam a resposta dada a Creso pelo oráculo, regozijaram-se com a chegada dos lídios e fizeram com eles um tratado de amizade e aliança, tanto mais que haviam recebido, antes, alguns benefícios de Creso, entre eles o seguinte: Tendo os Lacedemônios enviado delegados a Sardes para comprar o ouro a ser empregado na estátua de Apolo, que hoje se contempla no monte Tornax, na Lacônia, Creso fez-lhes presente do que pretendiam comprar.

LXX - Tanta generosidade e a preferência que o rei lídio lhes dava sobre todos os Gregos, determinaram a aliança, dispondo-se eles a atender a qualquer apelo de Creso, para quem já estavam fabricando uma cratera de bronze, em retribuição à dádiva recebida. A cratera era constituída de três ânforas e ornada exteriormente até as bordas por muitas figuras de animais em alto-relevo. Todavia, essa cratera não chegou às mãos de Creso, por motivos sobre os quais correm duas versões, uma das quais é dada pelos Lacedemônios, que afirmam ter sido ela roubada nas costas de Samos pelos habitantes, que, informados da viagem, vieram em grandes embarcações assaltar os portadores. Por sua vez, os habitantes de Samos sustentam que os lacedemônios, tendo sido informados, em caminho, da prisão de Creso e da tomada de Sardes, venderam-na em Samos, a particulares, que a ofertaram ao templo de Juno. Por esse motivo, os que a venderam declararam, de regresso a Esparta, terem sido assaltados.

LXXI - Não conseguindo apreender o sentido do oráculo, Creso dispôs-se a marchar em direção à Capadócia, na esperança de deitar por terra o poderio de Ciro e dos Persas. Enquanto se preparava para essa expedição, um lídio de nome Sadânis, famoso pela sua sabedoria e que veio a tornar-se ainda mais célebre entre os Lídios pelo conselho que deu a ele, Creso, falou-lhe nos seguintes termos: "Ó rei, vós vos dispondes a fazer guerra a povos que se vestem apenas de peles e que se alimentam, não do que desejariam ter, mas do que têm, porque o país é estéril; a povos que bebem somente água, por lhes faltar o vinho; que não conhecem o figo e outras boas coisas que regalam a vida. Vitorioso, que podereis arrebatar dessa gente desprovida de qualquer riqueza? Vencido, considerai os bens que ides perder. Se eles experimentarem uma vez a doçura do nosso país, não quererão mais renunciar a ela; nenhum meio encontraremos para expulsá-los. De minha parte, rendo graças aos deuses por não haverem inspirado aos Persas o desejo de atacar os Lídios". Creso, porém, não se deixou convencer. No entanto, o que Sadânis dizia era a pura verdade. Os Persas, antes da conquista da Lídia, não conheciam nem o luxo nem as comodidades da existência.

LXXII - Os Gregos dão aos Capadócios o nome de Sírios. Antes da dominação persa, tais sírios eram súditos dos Medos, mas estavam sob a obediência de Ciro, porque o rio Hális separava os estados dos Medos dos pertencentes aos Lídios. O Hális desce de uma montanha da Armênia (o Tauros), atravessa a Cilícia, e dali, continuando seu curso, banha, à direita, a terra dos Macinianos, e, à esquerda, a dos Frígios. Depois de haver passado entre esses dois povos, corre para o norte, envolvendo, de um lado, os Sírios Capadócios, e do outro, os Paflagônios. Assim, esse rio separa quase toda a Ásia Menor da Alta Ásia, desde o litoral, defronte de Chipre, ao Ponto Euxino. O país inteiro forma um estreito, que pode ser percorrido em apenas cinco dias por um bom caminhante.

LXXIII - Creso partiu com seu exército para a Capadócia, com o propósito de anexá-la aos seus estados, e animado, sobretudo, pela confiança no oráculo e pelo desejo de vingar Astíages, seu cunhado. Astíages, filho de Ciaxares, rei dos Medos, tinha sido vencido e feito prisioneiro por Ciro, filho de Cambises. Eis como esse príncipe se tornou cunhado de Creso: Uma sedição havia obrigado uma tropa de citas nômades a retirar-se secretamente para as terras da Média. Ciaxares, que então reinava sobre os Medos, recebeu-os primeiro com benignidade, como suplicantes, chegando depois a dedicar-lhes tanta estima que lhes confiou os filhos, a fim de que estes aprendessem a língua cita e a arte de atirar com o arco. Ao cabo de algum tempo, os citas, acostumados a caçar e a trazer caça todos os dias, voltaram, certa vez, com as mãos vazias. Vendo-os assim, Ciaxares, dotado de temperamento violento, tratou-os com toda rudeza. Os citas, indignados com esse procedimento que julgavam imerecido, decidiram entre si cortar em pedaços um dos filhos do rei, cuja educação lhes havia sido confiada, e prepará-los da maneira pela qual costumavam preparar os pratos, servindo-os depois ao soberano como caça, depois do que deveriam retirar-se para Sardes, para junto de Aliata, filho de Sadiata. O plano foi executado. Ciaxares e os convivas comeram o que lhes foi servido, e os citas, perpetrada a vingança, fugiram, colocando-se sob a proteção de Aliata, do qual se tornaram suplicantes.

LXXIV - Ciaxares reclamou-os. Ante a recusa, acendeu-se a guerra entre os dois soberanos. Durante cinco anos, os Medos e os Lídios obtiveram, alternadamente, vantagens, e no sexto ano de luta aconteceu algo extraordinário, que motivou o término das hostilidades. Durante um combate em que os triunfos se equivaliam de parte a parte, o dia transformou-se inesperadamente em noite. Tales de Mileto havia predito aos Iônios esse fenômeno, fixando a data em que se verificaria. Os lídios e os medos, vendo a noite tomar inopinadamente o lugar do dia, cessaram de combater e procuraram, o mais depressa possível, fazer as pazes. Sinésio, rei da Cilícia, e Labineto, rei da Babilônia, foram os mediadores; apressaram o tratado e asseguraram-no por um casamento; fizeram Aliata dar a mão de sua filha Ariénes a Astíages, filho de Ciaxares, convencido de que, sem um laço forte, as convenções não têm nenhuma solidez. Esses povos observam em seus tratados as mesmas formalidades que os Gregos, mas costumam ainda fazer ligeira incisão nos braços e sugar reciprocamente o sangue que daí verte.

LXXV - Ciro mantinha prisioneiro Astíages, seu avô materno, por ele destronado, pelas razões que exporei no decorrer desta história. Creso, irritado contra Ciro por tal procedimento, mandara consultar os oráculos para saber se devia fazer guerra aos Persas. Veio-lhe de Delfos uma resposta ambígua, por ele julgada favorável e em virtude da qual resolveu invadir o território dos Persas. Ao chegar às margens do Hális, fez, segundo se afirma, passar seu exército pelas pontes que ainda ali existem, mas, a dar crédito à maioria dos gregos, foi Tales de Mileto quem lhes facultou a passagem. Creso, dizem os Gregos, ao alcançar a margem do rio viu-se em grande embaraço para transpô-lo com seu exército, pois as pontes ainda não existiam. Tales, que se achava no acampamento, desviou para a direita das forças expedicionárias o curso do rio, procedendo da seguinte maneira: Fez cavar um canal profundo em forma de meia lua, atrás do acampamento, de modo a envolver a retaguarda do exército, e o rio, saindo do antigo leito, entrou pelo novo, retornando, em seguida, ao antigo, depois da passagem das tropas. Dividido o rio em dois braços, tornou-se facílimo vadeá-lo, devido ao desvio das águas. Afirmam alguns que o canal ficou depois inteiramente seco, mas não creio que assim tivesse sido. De fato, como Creso e seu exército poderiam atravessar o rio quando voltaram?

LXXVI - Transpondo o Hális, Creso e suas tropas chegaram à região da Capadócia denominada Ptéria. A Ptéria, o cantão mais poderoso do país, fica perto de Sinope, cidade situada sobre o Ponto Euxino. O soberano ali ergueu acampamento e devastou as terras dos Sírios. Ocupou a cidade dos Ptérios, reduzindo os habitantes à escravidão. Apoderou-se também de todos os burgos vizinhos, deu caça aos Sírios e fê-los transportar para lugares distantes, conquanto eles não lhe tivessem dado motivo de queixa. Entretanto, Ciro reuniu seu exército, convocou todos os homens que pôde encontrar no caminho, e marchou ao encontro do invasor. Antes, porém, de lançar suas tropas em campo, enviou arautos aos Iônios, concitando-os a revoltar-se contra Creso. Não conseguindo persuadi-los, veio acampar à vista do inimigo. Os dois exércitos mediram forças em Ptéria; o choque foi terrível. Afinal, a noite separou os combatentes, sem que a vitória se decidisse para um lado ou para o outro. Assim terminou a primeira batalha.

LXXVII - Censurando a si próprio por não ter evitado a desproporção das forças - suas tropas eram muito menos numerosas do que as de Ciro - e vendo que no dia seguinte o príncipe não tentaria novo ataque, Creso retornou a Sardes, com a intenção de pedir socorro aos Egípcios, de acordo com o tratado concluído com Amasis e anterior ao firmado com os Lacedemônios. Propunha-se, também, a solicitar auxílio aos Babilônios, igualmente seus aliados e que tinham por soberano Labineto, e pedir às tropas lacedemônias que se dirigissem a Sardes dentro do tempo determinado. Contava passar o Inverno tranqüilamente e, então, à entrada da Primavera, marchar contra os Persas com as forças de todos esses povos reunidas às suas.

Assim conjecturando, logo que retornou a Sardes mandou arautos convocar os aliados, com instruções para virem ao seu encontro no quinto mês. Em seguida, despediu as tropas estrangeiras que tinha a soldo e que se haviam medido contra os Persas, deixando-as dispersar-se para todos os lados, longe de imaginar que Ciro, não havendo conseguido vantagens até então, planejava fazer avançar seu exército até Sardes.

LXXVIII - Enquanto Creso se entregava à elaboração de seus planos, a parte extra-muros da cidade enchia-se de serpentes, e os cavalos, abandonando as pastagens, corriam a devorá-las. Esse espetáculo, de que Creso foi testemunha, pareceu, aos olhos do soberano, algo de sobrenatural, e, de fato, o era. Creso mandou logo consultar os adivinhos de Telmesse, e os emissários foram informados da significação daquele fenômeno, não chegando, porém, a comunicá-la ao soberano, pois, ao regressarem por mar, souberam-no já derrotado e prisioneiro. A resposta era que Creso veria um exército de estrangeiros no seu reino e que estes subjugariam os naturais do país, já que a serpente não passava de uma filha da terra, e o cavalo, de um inimigo, de um estrangeiro. Creso já se encontrava prisioneiro quando divulgaram essa resposta, mas ignorava-se ainda a sorte de Sardes e o destino que seria dado ao soberano.

LXXIX - Quando Creso, depois da batalha de Ptéria, retirou-se, Ciro, informado do propósito do rei inimigo de dispensar as tropas estrangeiras, julgou vantajoso marchar sem demora para Sardes, antes que os Lídios reunissem novas forças. Tomando essa resolução, executou-a sem demora, e fazendo avançar seu exército sobre a Lídia, levou, ele próprio, a Creso, a notícia de sua marcha. Embora inquieto por ver suas intenções malogradas, Creso, ainda assim, lançou os Lídios em combate. Não havia, então, na Ásia, nação mais valente nem mais belicosa. Os Lídios combatiam a cavalo, com longas lanças, e eram excelentes cavaleiros.

LXXX - Os dois exércitos encaminharam-se para a planície situada além dos muros de Sardes, planície extensa e estéril, atravessada pelo Hilos e por outros riachos que desembocam no Hermus, o maior de todos eles. O Hermus desce de uma montanha consagrada à deusa Cibele e vai desaguar no mar, perto da cidade de Focéia.

À vista do exército lídio em ordem de batalha nessa planície, Ciro, receando a cavalaria, seguiu o conselho do medo Hárpago. Reunindo todos os camelos que transportavam os víveres e as bagagens na retaguarda das forças, desembaraçou-os da respectiva carga e mandou seus homens montá-los, como cavalerianos, com ordem de investir assim, à frente das tropas, contra a cavalaria de Creso. Ordenou, ao mesmo tempo, à infantaria, que seguisse os camelos, colocando toda a cavalaria atrás da infantaria. Dispondo dessa maneira as forças, deu instruções aos soldados para que matassem todos os lídios que encontrassem pela frente, poupando apenas a Creso, mesmo que ele ainda oferecesse resistência depois de capturado. Tais foram as ordens de Ciro. Opôs ele os camelos à cavalaria inimiga, por saber que os cavalos receiam os camelos, não podendo nem vê-los nem suportar-lhes o cheiro. Daí haver imaginado esse recurso astucioso visando inutilizar a cavalaria lídia, na qual Creso depositava a esperança de uma vitória retumbante.

Mal os dois exércitos avançaram para o choque, os cavalos dos lídios, sentindo a presença dos camelos, recuaram, pondo por terra as esperanças de Creso. Os lídios, contudo, não se desconcertaram com isso. Percebendo o estratagema, desceram dos cavalos e combateram a pé. Por fim, depois de perdas consideráveis de parte a parte, bateram em retirada, encerrando-se atrás das muralhas da cidade, onde os persas os sitiaram.

LXXXI - Iniciado o cerco, Creso, julgando que este se prolongaria por muito tempo, enviou da cidade novos emissários em busca dos aliados. O encontro das tropas aliadas em Sardes só teria lugar no quinto mês, como fora combinado, mas como o soberano estava cercado, deviam os emissários solicitar socorro urgente.

LXXXII - Os embaixadores dirigiram-se aos diversos povos aliados e, particularmente, aos Lacedemônios. Justamente nessa ocasião sobreviera uma disputa entre os Espartanos e os Árgios, por causa de uma região denominada Tiréia. Este cantão fazia parte da Argólida, mas os Lacedemônios o tinham cercado de muros e dele se apropriado. Toda a região para o ocidente até a Maléia pertencia também aos Árgios, tanto em terra firme como no mar, inclusive a ilha de Citera e outras menores. Os Árgios, tendo vindo em socorro do território arrebatado, fizeram um acordo com os Lacedemônios, segundo o qual fariam combater trezentos homens de cada lado, ficando o vencedor de posse do território contestado. Os dois exércitos não estariam presentes ao combate; retirar-se-ia cada qual para o respectivo país, a fim de que o grupo derrotado não pudesse ser socorrido pelos seus compatriotas.

Retiraram-se, realmente, os dois exércitos, depois desse acordo, ficando em campo somente os guerreiros escolhidos de um lado e do outro. Combateram ambas as partes numa tal equivalência de forças, que, dos seiscentos homens, apenas três sobreviveram: Alcinor e Cromius, do lado dos Árgios, e Otríades, do lado dos Lacedemônios, tendo sido ainda necessário que a noite chegasse para separá-los. Os dois árgios correram a Argos a anunciar a vitória. Enquanto isso, Otríades, o guerreiro lacedemônio, despojou das armas os árgios mortos em combate, levando-as para o seu acampamento, e manteve-se firme no seu posto. No dia seguinte chegavam os dois exércitos. Instruídos sobre os acontecimentos, cada qual atribuía a si a vitória; os Árgios, porque ficaram com superioridade numérica; os Lacedemônios, porque os combatentes árgios se haviam retirado, enquanto que seu representante se mantivera no posto e despojara os adversários mortos na peleja. A disputa acalorou-se, e os dois exércitos engalfinharam-se, levando os Lacedemônios a melhor, depois de perdas consideráveis de parte a parte.

Desde essa ocasião, os Árgios, que até ali usavam cabelos compridos, passaram a raspar a cabeça; criaram uma lei regulamentando o assunto e decretaram maldições contra todo árgio que deixasse crescer o cabelo e contra as mulheres que usassem ornatos de ouro, até que retomassem Tiréia. Os Lacedemônios, até então de cabelos curtos, impuseram a si Próprios uma lei contrária, isto é, a de usarem cabelos compridos. Quanto a Otríades, o sobrevivente dos trezentos lacedemônios, dizem que, com vergonha de retornar a Esparta depois da perda dos companheiros, matou-se no campo de batalha, no território da Tiréia.

LXXXIII - Era essa a situação dominante em Esparta quando chegou de Sardes o emissário de Creso, solicitando socorro urgente para o soberano sitiado. Os Espartanos não hesitaram em enviá-lo. As tropas já se achavam prontas e os navios equipados, quando chegou outro correio trazendo a notícia de que a capital dos Lídios havia sido tomada e Creso feito prisioneiro. Tristes ficaram os Espartanos com a notícia, e considerando já inútil o seu auxílio, suspenderam a remessa das tropas.

LXXXIV - Vejamos como se deu a captura de Sardes. No décimo quarto dia do cerco, Ciro mandou anunciar por todo o acampamento que daria uma recompensa a quem subisse, em primeiro lugar, as muralhas. O exército, depois disso, fez diversas tentativas de assalto, sem êxito algum, e mantinha-se em repouso, quando um homem da terra dos Mardas, de nome Hiroeade, procurou escalar certo ponto da cidadela, onde não havia sentinela. Os Lídios nunca recearam que a praça fosse tomada por esse lado. Escarpada, inexpugnável, essa parte da cidadela era a única por onde Meles, antigo rei de Sardes, não levara o leão que recebera de uma concubina. Os adivinhos de Telmesse haviam predito que Sardes tornar-se-ia inexpugnável se se fizesse passar o leão em torno das muralhas. Ante a predição, Meles conduziu o animal por toda parte onde o inimigo pudesse tentar o ataque e forçar a cidadela. Todavia, considerou desnecessário levá-lo ao lado fronteiro ao monte Tmolus, por acreditá-lo inacessível. Hiroeade percebera na véspera um lídio descendo da cidadela por aquele ponto, a fim de apanhar uma moeda que lhe escapara das mãos, e o vira subir, em seguida, pelo mesmo caminho. Esta observação impressionou-o e fê-lo refletir. Subiu, ele próprio, por ali, acompanhado de outros persas. Seguia-o, pouco mais atrás, uma grande quantidade de soldados. Assim foi tomada Sardes, e a cidade inteira entregue à pilhagem.

LXXXV - Quanto a Creso, eis qual foi sua sorte: Tinha ele um filho surdo-mudo, de quem já fiz menção. Na época de prosperidade, Creso empregara todos os recursos para curá-lo, e entre outros meios recorrera ao oráculo de Delfos, tendo-lhe dito a pitonisa: "Lídio, rei de vários povos, insensato Creso, não procureis ouvir no vosso palácio a voz tão desejada do vosso filho. Melhor será para vós não ouvi-la nunca; ele começará a falar no dia em que começar a vossa desgraça".

Depois da tomada de Sardes, um persa, que não conhecia Creso, investiu contra ele para matá-lo. O soberano viu o movimento do agressor, mas, abatido pelo peso de seu infortúnio, não tentou evitá-lo, pouco lhe importando perecer então. O jovem príncipe mudo, à vista do persa que se lançava contra o pai, sentiu-se apoderado de tão grande terror que, num esforço para gritar, recuperou a voz: "Soldado! - exclamou ele - Não mates Creso!" Foram estas suas primeiras palavras, e até o fim de seus dias conservou ele a faculdade de falar.

LXXXVI - Assim os Persas se apoderaram de Sardes e fizeram Creso prisioneiro. Este reinara pelo espaço de quatorze anos, havendo sustentado um cerco de quatorze dias, e tendo, por fim, destruído seu próprio império. Os Persas, depois de aprisioná-lo, levaram-no a Ciro. Este fê-lo subir, carregado de ferros e cercado de quatorze jovens lídios, a uma grande fogueira erguida para sacrificar a alguns deuses as primícias da vitória, ou para cumprimento de um voto, ou, talvez, para comprovar se Creso, cujo espírito piedoso era tão proclamado, seria preservado das chamas por alguma divindade. Já sobre a fogueira, o rei dos Lídios, apesar da dor cruciante que experimentava, lembrou-se das palavras de Sólon, de que "nenhum homem pode dizer-se feliz enquanto respirar", palavras que então lhe pareciam inspiradas por um deus. A esse pensamento, assegura-se ter ele, com um longo suspiro, saído do silêncio em que se vinha mantendo, exclamando por três vezes: "Sólon!" Ciro, ouvindo-o, perguntou por intermédio dos intérpretes a quem invocava o prisioneiro. Creso, a princípio, nada respondeu; mas, compelido a falar, disse-lhe: "É um homem cujo convívio eu preferiria às riquezas de todos os reis". Parecendo aos persas obscura aquela resposta, eles o interrogaram de novo. Vencido pela insistência, Creso respondeu afinal, declarando que certa ocasião Sólon, de Atenas, viera à sua corte, e tendo contemplado todas as suas riquezas, nenhuma importância lhes dera. Tudo acontecera, porém, como Sólon previra, embora seu discurso não tivesse sido dirigido especialmente ao rei dos Lídios, pois era antes uma advertência a todos os homens em geral e, sobretudo, aos que se julgam felizes. Assim falou Creso. O fogo já havia sido ateado e a fogueira já começava a arder pelas extremidades quando Ciro, recebendo pelos intérpretes a resposta do soberano vencido, arrependeu-se do seu gesto. Lembrou-se de que também era um ser humano e que, não obstante, estava fazendo queimar um seu semelhante, que não se julgara menos feliz do que ele. Por outro lado, temia a vingança dos deuses; e refletindo sobre a instabilidade das coisas humanas, mandou apagar imediatamente a fogueira e fazer descer Creso e seus companheiros de infortúnio. Todavia, os maiores esforços já não conseguiam debelar a violência das chamas.

LXXXVII - Então Creso, segundo relatam os Lídios, informado da deliberação de Ciro e vendo aquela multidão açodada, tentando extinguir o fogo sem consegui-lo, invoca em altos brados a proteção de Apolo, suplicando-lhe que, se suas oferendas lhe foram agradáveis, o socorra e o salve de tão iminente perigo. Essas súplicas eram acompanhada de copiosas lágrimas. De súbito, num céu límpido e radioso, nuvens pardacentas se aglomeram; desaba uma tempestade, e a chuva, caindo em abundância, apaga o fogo. Tão prodigioso fato veio mostrar a Ciro o quanto Creso era querido pelos deuses por suas virtudes. Fazendo-o descer da fogueira, falou-lhe nestes termos: "Ó Creso, quem te aconselhou a invadir minhas terras com um exército, declarando-te meu inimigo em vez de buscares a minha amizade?" "Teu destino feliz e a má sorte me arrastaram, senhor, a esta malfadada empresa - respondeu Creso. - O deus dos Gregos foi o culpado de tudo; ele, somente ele, persuadiu-me a atacar-te. É preciso ser muito insensato para preferir a guerra à paz. Na paz, os filhos sepultam os pais; na guerra, os pais sepultam os filhos. Enfim, aprouve aos deuses que as coisas assim se passassem".

LXXXVIII - Em seguida, Ciro, mandando libertar Creso dos ferros, fê-lo sentar-se a seu lado e tratou-o com toda consideração, não podendo, ele e toda a corte, encará-lo sem espanto. Creso mantinha-se silencioso, entregue a profundas reflexões. Momentos depois, volvendo os olhos, viu os persas ocupados em saquear a cidade de Sardes. "Senhor, - exclamou, dirigindo-se a Ciro - é-me permitido dizer o que penso, ou minha situação obriga-me a calar?" Ciro disse-lhe que podia falar com franqueza. "Pois bem, - volveu Creso - essa multidão, que faz ela com tanto ardor?" "Saqueia tua capital e carrega-lhe as riquezas". "Não, senhor, não é, absolutamente, a minha cidade que eles saqueiam; não são as minhas riquezas que eles estão pilhando. Nada disso me pertence mais. Eles agora se apoderam do que é teu".

LXXXIX - Chocado com a observação, Ciro ordena aos presentes que se retirem e pergunta a Creso qual a medida que deveria tomar em semelhante contingência. "Senhor, - responde-lhe Creso - como os deuses me tornaram teu escravo, julgo-me no dever de advertir-te sobre o que mais vantajoso me pareça, quando o percebo melhor do que tu. Os Persas, indisciplinados por índole, são pobres. Se permites que eles pilhem esta cidade e retenham os despojos, é provável que quem lograr o melhor quinhão se disponha à revolta. Se aprecias meus conselhos, ordena a alguns dos teus guardas que se coloquem à entrada da cidade e exijam de tuas tropas os despojos, sob o pretexto de que é preciso consagrar a décima parte a Júpiter. Por esse meio não atrairás o ódio dos soldados, embora privando-os do produto da pilhagem; e quando eles souberem que não queres nada para ti, obedecerão de muito boa vontade.

XC - Aquela observação agradou enormemente a Ciro. Considerando o conselho muito sensato, cumulou seu autor de louvores, e depois de haver dado aos soldados as ordens sugeridas por Creso, dirigiu-se novamente a este: "Creso, - disse-lhe - já que tuas palavras e tuas ações provam que estás disposto a conduzir-te como um rei sábio, podes pedir-me o que te agradar; obtê-lo-ás imediatamente. "Senhor, - respondeu Creso - o maior favor que me poderás prestar será permitir-me enviar ao deus dos Gregos, aquele entre todos os deuses a quem mais louvei, estes ferros, com a ordem de lhe perguntarem se é lícito enganar alguém que sempre se houve no sentido de muito lhe merecer". Ciro perguntou de que se lamentava ele e qual o motivo do seu pedido. Creso pô-lo a par dos planos que traçara, das oferendas que fizera e das respostas dos oráculos animando-o a fazer a guerra contra os Persas, terminando por solicitar-lhe novamente permissão para mandar apresentar suas queixas ao deus. "Concedo-te - disse-lhe Ciro, rindo-se - não somente essa permissão, como tudo que desejares de ora em diante". Obtida a permissão, Creso enviou emissários lídios a Delfos, com ordem de colocar os ferros nos umbrais do templo e perguntar ao deus se ele não se envergonhava de havê-lo, por meio de oráculos, incitado à guerra contra os Persas, na esperança de arruinar o império de Ciro; e mostrando as correntes, únicas primícias que podia oferecer-lhe daquela expedição, perguntar se os deuses dos Gregos tinham o costume de ser ingratos.

XCI - Os lídios, havendo executado as ordens de Creso, dizem que a pitonisa lhes respondeu: "É impossível, mesmo a um deus, evitar a sorte determinada pelo destino. Creso está sendo punido pelo crime do seu quinto ancestral, que, simples guarda de um rei da dinastia dos Heraclidas, cedendo às instigações de uma mulher astuta, matou seu soberano e apoderou-se do trono ao qual não tinha direito algum. Apolo queria afastar de Creso a desgraça de Sardes e não fazê-la cair senão sobre seus filhos, mas as Parcas mostraram-se intransigentes. Com o máximo que elas lhe concederam, ele já contemplara o soberano: adiou de três anos a tomada de Sardes. Que Creso saiba ter sido feito prisioneiro três anos mais tarde do que lhe estava reservado pelo destino. Em segundo lugar, Apolo socorreu-o quando ele ia perecer vítima das chamas. Sobre o oráculo ainda, Creso não tem razão de se lamentar. Apolo predissera-lhe que, fazendo guerra aos Persas, destruiria um grande império. Se, ante essa resposta, Creso tivesse demonstrado maior iniciativa, teria mandado perguntar ao deus se se tratava do império dos Lídios ou do de Ciro. Não tendo, nem apreendido o sentido do oráculo, nem interrogado de novo o deus, não deve queixar-se senão de si mesmo. Finalmente, Creso não compreendeu também a resposta de Apolo com relação ao asno. Ciro era esse asno, por pertencerem os autores de seus dias a duas nações diferentes, sendo o pai de origem menos ilustre que a mãe; esta, natural da Média e filha de Astíages; o outro, persa e súdito da Média. Embora inferior em tudo, havia desposado a soberana".

Tomando conhecimento da resposta da pitonisa, Creso reconheceu ter sido exclusivamente sua a culpa, e não do deus. Eis aí o que concerne ao reinado de Creso e à primeira submissão dos Iônios.

XCII - As oferendas de que falei não são as únicas que Creso fez aos deuses; vêem-se ainda várias outras na Grécia. O soberano deu de presente a Tebas, na Beócia, um tripé de ouro, consagrado a Apolo Ismênio; a Éfeso, novilhas de ouro e a maior parte das colunas do templo; a Minerva Pronaia, em Delfos, um grande escudo de ouro. Essas dádivas subsistiam ainda no meu tempo e muitas outras se perderam. Quanto ao presente que deu aos Branquidos, no país dos Milésios, era, ao que pude saber, em tudo semelhante ao que deu a Delfos e tinha o mesmo peso. Os presentes a Delfos provinham dos próprios bens do príncipe; os outros, ao contrário, vinham dos bens de um inimigo, que formara um partido contra Creso antes da subida deste ao trono, empenhando-se com ardor para dar a Pantaleão a coroa da Lídia. Pantaleão era filho de Aliata e irmão de Creso, mas de outra mãe. Logo que se viu de posse da coroa, transmitida pelo pai, Creso mandou matar - retalhando com espinhos - o que ousara levantar-se contra ele, enviando os bens do morto aos templos dos deuses amigos, como vimos.

XCIII - A Lídia não oferece, como outros países, maravilhas dignas de figurarem na história, exceto as palhetas de ouro arrancadas do Tmolus. Vê-se, entretanto, ali, uma obra bem superior às que admiramos em outras partes (salvo, naturalmente, os monumentos do Egito e da Babilônia): o túmulo de Aliata, pai de Creso. A base é composta de grandes pedras, e o resto, de argamassa. Foi construído às expensas de negociantes, artistas e cortesãs. Cinco placas, colocadas no alto do monumento, subsistiam ainda no meu tempo, assinalando, por inscrições, a contribuição de cada uma das três classes para a ereção do grande monumento. Segundo uma dessas inscrições, a contribuição das cortesãs foi a mais considerável, pois todas as jovens, na Lídia, se entregavam à prostituição. Com isso formavam o dote e continuavam no negócio até casarem-se, cabendo-lhes o direito de escolher o esposo. Ao lado do monumento existe um lago que nunca seca, segundo afirmam os Lídios. É o lago Gigéia, como o denominam.

XCIV - As leis dos Lídios muito se assemelham às dos Gregos, exceto no tocante à prostituição das jovens. De todos os povos dos quais temos conhecimento, foram os Lídios os primeiros a cunhar moedas de ouro e de prata, e também dos primeiros a se dedicarem à profissão de revendedor. Atribuem-se-lhes a invenção de diversos jogos atualmente em uso, tanto entre os naturais do país como entre os Gregos, afirmando-se que, na ocasião em que tais jogos foram inventados, enviou-se uma expedição à região hoje ocupada pela Tirrênia, para a formação, ali, de uma colônia. Eis como se narra o fato: No reinado de Átis, filho de Manes, toda a Lídia se viu flagelada pela fome, suportada com paciência durante algum tempo. Vendo, porém, que a situação não melhorava, o povo começou a procurar um remédio para minorá-la, cada um imaginando-o à sua maneira. Nessa ocasião foram inventados os dados, o jogo da péla e todas as outras espécies de jogos, exceto o das damas, do qual os Lídios não se consideram os autores. Vejamos o uso que os habitantes fizeram de tais invenções para enganar a fome cada vez mais premente. Jogavam alternadamente durante um dia inteiro, a fim de distrair a vontade de comer, e no dia seguinte comiam e não jogavam. Assim continuaram pelo espaço de oito anos; mas o mal, em vez de atenuar-se, mais se agravava. O rei, então, dividiu os Lídios em dois grupos e mandou-os tirar a sorte; um deveria permanecer, e o outro retirar-se do país. Aquele a quem coube a sorte de ficar tinha por chefe o próprio rei, enquanto que seu filho Tirrênio se pôs à frente dos emigrantes.

Banidos da pátria, os lídios dirigiram-se primeiramente para Esmirna, onde construíram navios, dotando-os de todo o necessário, e neles embarcaram para procurar víveres em outras terras. Depois de haverem costeado diversos países aportaram à Úmbria, onde ergueram cidades, habitadas por esse povo até hoje. Trocaram, porém, o nome de Lídios pelo de Tirrênios, em homenagem a Tirrênio, filho do rei e que viera como chefe da colônia.

XCV - Vimos os Lídios submetidos pelos Persas; mas, quem era esse Ciro que destruiu o império de Creso? Como os Persas conseguiram a soberania na Ásia? São detalhes dos quais me ocuparei no decorrer desta narrativa. Tomarei por base informações de alguns persas que procuravam antes engrandecer as ações de Ciro, do que dizer a verdade, muito embora eu não ignore haver sobre o príncipe várias outras opiniões.

Havia quinhentos anos que os Assírios eram senhores da Alta Ásia, quando os Medos, que se encontravam sob o seu domínio, se rebelaram; e com tal ardor se empenharam na conquista da liberdade, que conseguiram sacudir o jugo e tornar-se independentes. As outras nações seguiram-lhes o exemplo.

XCVI - Todos os povos desse continente, libertos da dominação assíria, regeram-se durante algum tempo ainda pelas suas próprias leis, mas acabaram recaindo sob o poder de um único soberano, da maneira que passo a narrar: Havia entre os Medos um sábio de nome Déjoces, filho de Fraorte. Esse Déjoces, seduzido pela idéia de realeza, imaginou, para consegui-la, um plano assaz inteligente. Os Medos viviam dispersos em burgos. Déjoces, gozando de grande consideração no seu burgo, distribuía a justiça com muito zelo e aplicação, embora as leis fossem menosprezadas em toda a Média e ele soubesse que a justiça tem na injustiça um inimigo terrível. Os habitantes do seu burgo, testemunhando-lhe a sabedoria, haviam-no escolhido para juiz. Aspirando à realeza, como dissemos, Déjoces procurava manifestar em todas as ações a maior retidão e um profundo senso de eqüidade. Esta conduta valia-lhe os maiores elogios por parte dos seus concidadãos. Os habitantes de outros burgos, até então oprimidos por injustas sentenças, sabendo que Déjoces era o único a julgar rigorosamente de acordo com as regras da eqüidade, começaram a afluir ao tribunal onde ele distribuía a justiça, não querendo ser julgados senão por ele.

XCVII - O número de solicitantes aumentava dia a dia, pois todos achavam que os processos só chegavam a termo nas mãos dele. Quando Déjoces se reconheceu o único responsável por tantas sentenças, negou-se a voltar ao tribunal, renunciando formalmente às respectivas funções. Pretextou os prejuízos que causava a si mesmo abandonando os próprios negócios, enquanto passava dias inteiros a liquidar questões alheias. O banditismo e a desordem passaram a imperar como nunca nos burgos. Os Medos reuniram-se em conselho para tratar da situação. Aproveitando a oportunidade, os amigos de Déjoces, segundo se informaram, dirigiram-se à assembléia nos seguintes termos: "A situação está se tornando calamitosa, não nos permitindo mais habitar em sossego este país. Por isso, devemos escolher um rei. Estando a Média governada por boas leis, poderemos cultivar em paz nossos campos, sem o temor da injustiça e da violência". Este discurso persuadiu os Medos a aceitar um rei.

XCVIII - Deliberaram logo sobre a escolha. Todos os louvores e sufrágios reuniram-se em torno de Déjoces, conseguindo ele ser eleito por unanimidade de votos. Mandou, então, construir um palácio de acordo com a dignidade real e pediu guardas para sua segurança pessoal. Os Medos acederam. Construíram-lhe, no local por ele designado, um edifício amplo e bem fortificado, e permitiram-lhe escolher livremente, em toda a nação, uma guarda de sua inteira confiança.

Ao ver-se no trono, Déjoces obrigou igualmente os seus súditos a construir uma cidade, a ornamentá-la e a fortificá-la, sem se preocupar com as outras praças. Os Medos, dóceis a tudo, edificaram essa cidade fortificada e imensa, conhecida hoje pelo nome de Ecbatana, cujos muros concêntricos fecham-se uns nos outros, e são construídos de maneira que cada plataforma não ultrapasse a vizinha senão na altura das ameias. O local, em forma de bacia e elevando-se numa colina, facilitou o sistema. Havia ao todo sete plataformas, ficando situados na última o palácio e o tesouro real. A superfície da plataforma maior quase igualava a de Atenas. As ameias que circundavam a primeira eram pintadas de branco; as da segunda, de preto; da terceira, da cor de púrpura; da quarta, de azul; da quinta, de cor alaranjada; e das últimas, de cor prateada e dourada.

XCIX - Foi essa a cidade mandada construir por Déjoces. A população recebeu ordens para instalar-se aos pés das barreiras. Concluídos todos os edifícios considerados necessários, Déjoces proclamou como regulamento que ninguém poderia entrar nos aposentos reais; que todos os negócios seriam tratados por meio de mensagens, e que o rei não seria visível para nenhum estranho. Ordenou também que ninguém risse ou escarrasse na sua presença, bem como na presença de qualquer outra pessoa, considerando indigno e vergonhoso tal procedimento.

Instituiu Déjoces um cerimonial imponente, para que as pessoas da sua idade e com as quais fora educado, e aqueles de descendência tão elevada quanto a sua e nada inferiores, nem em bravura nem em mérito, não lhe tivessem inveja e não conspirassem contra ele. Acreditava que, tornando-se invisível aos súditos, passaria por possuir outra natureza aos olhos deles.

C - Estabelecidas essas regras e consolidada a autoridade real, Déjoces pôs-se a fazer justiça com toda severidade. Os processos lhe eram enviados por escrito; ele os julgava e os devolvia com a sentença. Tal o seu método quanto aos processos. Com referência ao resto, se tinha conhecimento de que alguém havia proferido uma injúria, mandava prendê-lo e aplicava-lhe uma pena proporcional ao delito. Para isso tinha em todos os seus estados emissários vigiando as ações e as palestras de seus súditos.

Cl - Déjoces reuniu todos os Medos numa só nação, reinando sobre eles. Essa nação compreende vários povos: os Búsios, os Paretacênios, os Estrucatas, os Arizantes, os Búdios e os Magos.

CII - Por sua morte, depois de um reinado de cinqüenta anos sucedeu-o no trono seu filho Fraorte. O reino da Média não bastou à ambição deste último. Atacou primeiramente os Persas, submetendo-os ao seu domínio. Formando assim duas nações, ambas poderosas, subjugou, em seguida a Ásia, marchando de conquista em conquista até sua malograda expedição contra os Assírios e a porção desse povo que habitava Nínive. Embora os Assírios, outrora senhores da Ásia, estivessem, então, sozinhos e abandonados pelos aliados, ainda se achavam em próspera situação. Fraorte pereceu nessa sortida, com grande parte do seu exército, depois de haver reinado vinte e dois anos.

CIII - Com a morte desse príncipe, subiu ao trono seu filho Ciaxares, neto de Déjoces. Dizem ter sido este soberano ainda mais belicoso do que o pai e o avô. Um dos seus primeiros atos ao subir ao poder foi dividir os diversos povos da Ásia em diferentes corpos de tropa, separando os lanceiros dos archeiros e dos cavaleiros, ordens que outrora formavam e combatiam em comum. Foi ele quem fez guerra aos Lídios e travou com eles uma batalha durante a qual o dia transformou-se subitamente em noite. Foi ele, ainda, que, depois de haver submetido toda a Ásia para cima do rio Hális, reuniu todas as forças do império e marchou contra Nínive, decidido a vingar o pai com a destruição dessa cidade. Já havia derrotado os Assírios em batalha campal e cercava Nínive, quando se viu assaltado por um grande exército de Citas, tendo à frente Mádias, o rei, filho de Protótios. Expulsando da Europa os Cimérios, os Citas haviam penetrado na Ásia; a perseguição aos fugitivos conduzira-os até o país dos Medos.

CIV - De Palos-Meótis ao Faso e à Cólquida leva trinta dias de viagem quem caminha com muita rapidez. Para quem se dirige da Cólquida para a Média, o trajeto não é longo, pois entre esses dois países encontra-se apenas a terra dos Saspiros. Atravessando-a, chega-se logo ao território dos Medos. Os Citas, entretanto, não penetraram desse lado; fizeram-no bem mais adiante, por uma estrada muito mais longa, deixando o Cáucaso à direita. Foi ali que os Medos, terçando armas com os Persas e sendo derrotados, perderam o império da Ásia, que passou para os Citas.

CV - De lá, os Citas marcharam para o Egito, mas quando chegaram à Síria, Psamético, rei do Egito, veio-lhes ao encontro, e, à força de presentes e de súplicas, conseguiu demovê-los de ir adiante. Retornaram eles pelo mesmo caminho e passaram por Ascalão, na Síria, sem causar nenhum dano, com exceção de algumas pilhagens no templo de Vênus Urânia, feitas por alguns dos que seguiam na retaguarda. Esse templo, ao que pude saber pelas informações colhidas, é o mais antigo de todos os dedicados à deusa, tendo servido de modelo ao de Cipro, segundo declararam os próprios Cíprios. O de Citera é obra dos Fenícios, originários da Síria. Irada com a ação dos soldados citas, a deusa enviou uma doença para aqueles que haviam saqueado o templo de Ascalão, e o castigo estendeu-se a toda sua posteridade. Os Citas acreditam ser essa doença uma punição pelo sacrilégio, e os estrangeiros que viajam pelo país podem observar o estado daqueles a quem os habitantes chamam de "enareus".

CVI - Conservaram os Citas, durante vinte e oito anos, o império da Ásia, mas arruinaram tudo pela violência e pela negligência. Além dos tributos ordinários, exigiam ainda de cada particular um imposto arbitrário; e, não satisfeitos com isso, percorriam a região pilhando e arrebatando a cada habitante o que bem lhes convinha. Ciaxares e os Medos, tendo convidado para uma visita a maior parte deles, massacraram-nos, depois de os haverem embriagado. Dessa forma recuperaram os Medos seus estados e o domínio sobre o país que já tinham outrora possuído. Em seguida, tomaram a cidade de Nínive. Sobre a maneira pela qual realizaram essa façanha, falarei em outra ocasião. Finalmente, submeteram os Assírios, com exceção do país da Babilônia. Algum tempo depois desses acontecimentos, Ciaxares morreu, havendo reinado quarenta anos, compreendendo o tempo que durara o domínio dos Citas.

CVII - Astíages, seu filho, sucedeu-o no trono. Teve esse príncipe uma filha, à qual deu o nome de Mandane. Certo dia sonhou que ela urinava com tal abundância que inundava a capital do reino e toda a Ásia. Comunicando o sonho aos magos que se dedicavam a interpretações desse gênero, ficou de tal forma aterrorizado com os detalhes da explicação, que, quando a filha cresceu, não quis dar-lhe por esposo um meda digno pela linhagem; fê-la desposar um persa chamado Cambises, o qual, embora filho de importante família e de muito bons costumes, ele o considerava inferior a um meda de condição medíocre.

CVIII - No primeiro ano do casamento de Cambises com Mandane, Astíages teve outro sonho; pareceu-lhe ver sair do seio da filha uma videira que se estendia, cobrindo toda a Ásia. Tendo consultado novamente os magos, mandou vir da Pérsia Mandane, prestes a dar à luz. Logo que ela chegou colocou-a sob vigilância, com a intenção de eliminar a criança que estava para nascer, pois os magos lhe haviam predito que essa criança devia reinar algum dia no lugar dele. Tendo tomado todas as providências, Astíages, logo que Ciro nasceu, mandou chamar Hárpago, seu parente e aquele, dentre todos os Medos, em quem mais confiava. "Hárpago, - disse-lhe ele - executa fielmente a ordem que te vou dar, sem tentar enganar-me, pois se o fizeres estarás cavando tua própria ruína. Toma esta criança que acaba de nascer de Mandane, leva-a para tua casa e faze-a perecer, enterrando-a em seguida como julgares conveniente". "Senhor, - respondeu Hárpago - sempre procurei vos ser agradável e farei todo o possível para nunca vos ofender. Se quereis que a criança morra, obedecerei rigorosamente vossas ordens, em tudo que depender de mim".

CIX - Tramada a sorte da criança, foi ela entregue, toda enfeitada para a morte, às mãos de Hárpago. Este voltou para casa com lágrimas nos olhos e, dirigindo-se à esposa, revelou-lhe a odiosa ordem de Astíages. "Qual a tua resolução?" - inquiriu ela. "Não executarei absolutamente as ordens de Astíages, - replicou ele - ainda que me torne passível da sua ira. Não me prestarei, de forma alguma, a tão nefando crime. Não farei isso por várias razões: primeiro, porque sou parente da criança. Segundo, porque Astíages está em idade avançada e não tem nenhum filho varão. Se depois da sua morte a coroa passar para a princesa, sua filha, cujo filho ele quer que eu hoje mate, não estarei eu ante a perspectiva de maior perigo? Para minha segurança atual é preciso que o recém-nascido pereça, mas isso deverá acontecer pelas mãos da gente de Astíages e não pelas minhas mãos".

CX - Dizendo isso, enviou sem perda de tempo um recado a um dos boiadeiros de Astíages, que sabia encontrar-se pastoreando o gado nas montanhas mais freqüentadas por animais ferozes. Esse boiadeiro chamava-se Mitrídates. Sua mulher, escrava de Astíages, respondia, como o marido, pelo nome de Spaco, que na língua dos Medos significa o mesmo que Sino na dos Gregos, isto é, "cadela". As pastagens onde Mitrídates fazia guarda ao gado do rei ficavam ao pé das montanhas ao norte de Ecbatana e na direção do Ponto Euxino. Daquele lado, a Média é um país de terras altas, cheio de montanhas e coberto de florestas, enquanto que o resto do reino é plano e úmido. Quando o boiadeiro chegou, disse-lhe Hárpago: "Astíages ordena-te que tomes esta criança e a exponhas no lugar mais deserto dos montes, a fim de que ela venha logo a perecer. Ordenou-me também a dizer-te que se não a fizeres morrer, se lhe salvares a vida de qualquer forma, condenar-te-á ao suplício mais cruel. Ainda mais: quer que eu me certifique de que cumpriste à risca as suas ordens".

CXI - Mitrídates tomou o recém-nascido e seguiu para sua cabana pelo mesmo caminho. Enquanto tinha vindo à cidade, sua mulher, que se encontrava em adiantado estado de gravidez, deu à luz um filho, por desígnio especial dos deuses. Quando o boiadeiro recebeu o chamado de Hárpago, ficaram ambos, marido e mulher, muito inquietos; ele, por estar ela em vésperas do parto; ela, porque Hárpago nunca o chamava. Logo que ele regressou, a mulher, como se já não esperasse revê-lo, foi-lhe ao encontro, pressurosa, querendo saber o motivo daquele chamado urgente e imprevisto. "Minha mulher, - disse-lhe ele - mal ali cheguei, vi e ouvi coisas que eu bem desejaria não ter visto nem ouvido. Toda a família de Hárpago estava em prantos. No interior da casa, deitada no chão, vi uma criancinha chorando e esperneando. Estava coberta com tecidos de ouro e envolvida em faixas de diversas cores. Assim que me viu, Hárpago ordenou-me que levasse prontamente a criança e a expusesse no lugar da montanha mais freqüentado por animais ferozes. Assegurou-me ter sido o próprio Astíages a dar-lhe essa ordem e me fez as maiores ameaças se eu deixasse de executá-la. Tomei, pois, a criança, e trouxe-a comigo, convencido de que se tratava de alguém de sua casa, não acreditando fosse ele o verdadeiro pai. Fiquei, entretanto, muito espantado ao ver a criança coberta de ouro e de panos tão preciosos, e toda a família de Hárpago em prantos. Afinal, no caminho, vim a saber pelo criado que me acompanhou até fora da cidade, que o recém-nascido era filho de Mandane e de Cambises, tendo Astíages ordenado que o matassem. Ei-lo aqui".

CXII - Assim falando, Mitrídates descobriu a criança e mostrou-a à mulher. Encantada pela graça e beleza daquele pequenino ente, ela lançou-se aos pés do marido, suplicando-lhe com lágrimas nos olhos que não o sacrificasse. Ele declarou-lhe que não poderia deixar de fazê-lo, pois os espiões de Hárpago iriam observá-lo, e, se não obedecesse, pereceria da maneira mais cruel. Spaco, vendo baldadas suas súplicas, disse-lhe: "Já que não poderei demover-te desse intento, e já que és obrigado a expor uma criança na montanha, fâze, ao menos, o que te vou dizer: Acabo de dar à luz uma criança morta; leva-a à montanha e passemos a criar a da filha de Astíages como se fosse nossa. Dessa forma, não poderão provar que desobedeceste a teus senhores, e, quanto a nós, teremos tido este proveito: nosso filho morto terá uma sepultura real, e o outro não perderá a vida".

CXIII - Aceitando as justas considerações da mulher, Mitrídates não hesitou em seguir-lhe o conselho. Entregou-lhe a criança e, tomando o filho morto, colocou-o no berço do jovem príncipe, com todos os enfeites, indo abandoná-lo na montanha mais deserta. Três dias depois, tendo confiado a guarda do corpo a um de seus ajudantes, dirigiu-se à cidade, apresentando-se a Hárpago e declarando-se pronto a mostrar-lhe o cadáver da criança. Hárpago, certificando-se por intermédio de guardas fiéis enviados ao local, do cumprimento da missão, mandou sepultar o que acreditava fosse o neto de Astíages. Este tornou-se depois conhecido pelo nome de Ciro, embora Spaco lhe tivesse dado outro nome naquela ocasião.

CXIV - Quando contava dez anos de idade, a criança teve uma aventura que revelou sua verdadeira identidade. Certo dia, na aldeia onde se achavam os rebanhos e as manadas do rei, o menino brincava na rua com alguns companheiros da mesma idade, quando estes o elegeram rei, a ele, conhecido como o "filho do boiadeiro". A uns, Ciro ordenou, então, que lhe construíssem um palácio; a outros, nomeou-os seus guardas; a este, seu vigia; àquele, seu mensageiro. A cada um, Ciro dava uma função. O filho de Artembares, homem importante entre os Medos, brincava no grupo. Tendo-se recusado a cumprir as ordens do "rei", Ciro ordenou aos outros que o segurassem e lhe aplicassem um castigo corporal. Revoltado com semelhante procedimento, tão ofensivo à sua linhagem, o menino foi à cidade apresentar queixa ao pai contra Ciro. Naturalmente, não lhe deu esse nome, pois Ciro ainda não o possuía; chamou-o apenas "o filho do boiadeiro de Astíages". Cheio de indignação, Artembares dirigiu-se ao rei, em companhia do filho, cientificando-o do ultraje que havia recebido. "Senhor, - disse ele, descobrindo os ombros do filho - eis como nos ultrajou um dos vossos escravos, o filho do vosso boiadeiro".

CXV - Ante a acusação e os sinais que atestavam sua veracidade, Astíages, querendo vingar o filho de Artembares em consideração ao pai, mandou chamar Mitrídates e o menino à sua presença. Logo que eles chegaram, disse o príncipe a Ciro, encarando-o fixamente: "Como, sendo de origem tão humilde, tiveste a audácia de tratar de maneira tão indigna o filho de um dos grandes da minha corte?" "Assim o fiz, senhor, por um motivo justo. As crianças da aldeia, entre as quais ele se encontrava, escolheram-me, por simples brincadeira, para seu rei, por eu lhes parecer o mais digno. Todos executavam as minhas ordens. O filho de Artembares recusou-se a obedecer-me, e, por isso, eu o castiguei. Se esse procedimento merece alguma punição, eis-me pronto a sofrê-la".

CXVI - Enquanto o menino falava, Astíages, atentando para os seus traços fisionômicos, que lhe pareceram semelhantes aos seus; para a sua resposta adequada à natureza de um homem livre, e para a sua idade, que correspondia à época em que mandara matar o filho de Mandane, julgou reconhecer nele o neto que ele próprio sacrificara. Tão impressionado ficou com essa súbita revelação, que se quedou inteiramente mudo durante alguns momentos. Recuperando, finalmente, o domínio de si mesmo e querendo sondar Mitrídates em particular, dirigiu-se a Artembares: "Tua queixa, Artembares, não tem, como vês, nenhum fundamento.". Em seguida, ordenou aos seus oficiais que conduzissem Ciro para fora da sala. Ficando a sós com Mitrídates, perguntou-lhe quem era aquela criança e quem lha confiara. Este respondeu que era seu filho, mas o soberano, convencido de que ele estava ocultando a verdade, ameaçou-o, dizendo-lhe que, já que ele se mantinha em atitude negativa, ver-se-ia compelido a mandar torturá-lo. Dizendo isso, chamou os guardas para que o prendessem. Vendo que ia ser levado à tortura, Mitrídates confessou a verdade, relatando toda a história daquela criança e de como ela veio ter ao seu poder, terminando por suplicar a Astíages que o perdoasse.

CXVII - Senhor da verdade, Astíages decidiu não punir Mitrídates, mas tomado de ira contra Hárpago, mandou incontinênti chamá-lo e o inquiriu nestes termos: "Hárpago, de que maneira eliminaste o filho de Mandane que te entreguei naquela ocasião?" Vendo Mitrídates ali presente, Hárpago compreendeu que de nada lhe valeria mentir, e tudo confessou. "Senhor, - respondeu - quando recebi a criança, pus-me a refletir como poderia cumprir vossas ordens sem faltar ao dever para convosco e sem tornar-me culpado de um crime perante vós e a princesa, vossa filha. Assim, mandei chamar Mitrídates e entreguei-lhe a criança, cientificando-o do vosso desejo. Com isso, não contrariei, absolutamente, a vossa vontade, pois me ordenastes a fazê-la perecer de qualquer forma. Entregando-lhe a criança, obriguei-o a expô-la numa montanha deserta e a permanecer junto a ela, até vê-la morta, ameaçando-o com as mais terríveis torturas, caso não fosse rigorosamente obedecido. Informando-me da sua morte e, portanto, do inteiro cumprimento das vossas ordens, enviei ao local os mais fiéis dos meus servidores para constatar a verdade, fazendo-os, em seguida, sepultar o corpo. Eis aí, senhor, como as coisas se passaram e a sorte que teve a criança".

CXVIII - Hárpago nada dissimulou na sua narrativa, mas o soberano, ocultando seu ressentimento, repetiu-lhe primeiramente toda a história contada por Mitrídates, informando-o, depois, que a criança ainda vivia e que ele, Astíages, estava satisfeito com isso. "Devo confessar, - acrescentou ele - que fiquei muito penalizado com o destino que lhe reservara, e as lamentações de minha filha muito me sensibilizavam. Já que a fortuna nos foi favorável, envia teu filho para fazer companhia ao jovem príncipe restituído ao nosso convívio e não faltes à ceia desta noite; quero oferecer, pela conservação do meu neto, sacrifícios aos deuses, aos quais esta honra pertence".

CXIX - A estas palavras, Hárpago prosternou-se diante do rei e voltou para casa satisfeito com o feliz desenlace daquele triste caso e por haver sido, além disso, convidado para a ceia. Chegando ao lar, chamou seu filho único, de treze anos, e enviou-o ao palácio de Astíages, ordenando-lhe que fizesse tudo que o jovem príncipe mandasse. Em seguida, transbordando de contentamento, relatou a aventura à esposa.

Logo que o filho de Hárpago chegou ao palácio, Astíages mandou degolá-lo e cortá-lo em pedaços, fazendo assar uns, fritar outros e preparando tudo com muito cuidado. À hora da ceia, os convivas dirigiram-se para a mesa e Hárpago na companhia deles. A Astíages e a outros comensais foi servida carne de carneiro, e a Hárpago, o corpo do filho, com exceção da cabeça, das mãos e dos pés, que o rei havia colocado à parte, num cesto aberto. Quando pareceu ao soberano que Hárpago já havia comido bastante, perguntou-lhe se estava satisfeito com a refeição, ao que ele respondeu: "Muito satisfeito". Logo depois, os criados traziam-lhe, no cesto aberto, a cabeça, as mãos e os pés do filho, dizendo-lhe para descobri-lo e servir-se do pedaço que mais lhe agradasse. Hárpago obedeceu, e descobrindo o cesto viu ali os restos do filho. Todavia, não se perturbou, aparentando absoluta serenidade e calma. Astíages perguntou-lhe se sabia que animal havia comido. Respondeu ele que sim, e que tudo quanto seu soberano fazia lhe agradava sempre. Terminada a ceia, Hárpago voltou para casa com os restos do filho, juntando-os e dando-lhes sepultura.

CXX - O rei, tendo-se vingado de Hárpago, mandou chamar os mesmos magos que haviam interpretado os sonhos da maneira a que nos referimos, a fim de indagar deles a sorte reservada a Ciro. Chegando os adivinhos, perguntou-lhes se ainda se recordavam da interpretação que haviam dado outrora ao sonho que tivera, ao que eles responderam: "Se a criança ainda vive, há-de reinar fatalmente". "O menino vive e passa bem - volveu Astíages. - Foi criado no campo. Seus coleguinhas da aldeia elegeram-no seu rei e ele fez o que fazem os verdadeiros reis: instituiu um corpo de guardas, oficiais, porteiros, mensageiros, numa palavra, dispôs criteriosamente sobre todos os cargos. Que julgais possa isso pressagiar?"

"Como o menino vive - replicaram os magos - e reinou sem nenhum desejo premeditado, podeis tranqüilizar-vos, senhor, nada mais tendes a temer; não reinará ele uma segunda vez. Há oráculos cujo cumprimento se reduz a um ato frívolo qualquer, e sonhos que se realizam com bem pouca coisa". "Sou também dessa opinião - tornou Astíages. - Já tendo o menino trazido o nome de rei, o sonho realizou-se, e, portanto, julgo já fora de propósito os meus receios. Não obstante, peço-vos que reflitais bem sobre o caso e que me deis o conselho que julgardes mais vantajoso para a minha e para a vossa segurança". "Senhor, - declararam os magos - a prosperidade e a estabilidade do vosso reino nos importa muito, porque, afinal, o poder vindo cair nas mãos dessa criança, que é persa, passará para outra nação; e os Persas, encarando-nos como estrangeiros, não nos terão nenhuma consideração, e hão-de tratar-nos como escravos, ao passo que vós, senhor, sois nosso compatriota, e enquanto ocupardes o trono poderemos contar com os vossos favores e participar do vosso reinado. Nosso interesse obriga-nos a zelar pela vossa segurança e do vosso império. Se de agora em diante pressentirmos algum perigo, teremos o cuidado de logo vos advertir. Já que a solução do vosso sonho foi destituída de importância, estamos tranqüilos e vos exortamos a tranqüilizar-vos também. Afastai de vós essa criança, mandando-a de volta para a Pérsia, para junto daqueles que lhe deram o ser".

CXXI - Encantado com a resposta, Astíages mandou chamar Ciro. "Meu filho, - disse-lhe - tratei-te de maneira injusta por causa de um sonho vão, mas, enfim, teu destino feliz conservou-te a vida. Fica tranqüilo; partirás para a Pérsia, escoltado por aqueles que te darei como guardas, e ali verás teu pai e tua mãe, bem diferentes do boiadeiro Mitrídates e da sua mulher".

CXXII - Astíages enviou Ciro para a Pérsia, onde Cambises e Mandane, sabendo da sua vinda, receberam-no com todo carinho, pois há muito que o haviam dado como morto. Perguntaram-lhe como se tinha salvo, e ele respondeu que até ali tinha vivido na ignorância de tudo e que foram seus guardas quem, em caminho, lhe revelaram toda a verdade sobre o caso. Até então julgava-se filho de um boiadeiro de nome Mitrídates, cuja mulher, Sino (Spaco) o tratara com muito carinho e bondade. Servindo-se do nome dessa mulher, a quem Ciro não cessava de louvar, seus pais procuraram persuadir os Persas de que ele fora preservado pela vontade dos deuses e que uma cadela o amamentara quando abandonado na montanha.

CXXIII - Chegando à idade viril, Ciro tornou-se o mais valente e, ao mesmo tempo, o mais dócil dos jovens. Hárpago, que desejava ardentemente vingar-se de Astíages, enviava-lhe presentes, simulando-lhe confiança e veneração. Na sua condição de plebeu, não via meios de vingar-se, por iniciativa própria, do soberano; mas observando que Ciro, à medida que crescia, lhe trazia a possibilidade dessa vingança, identificava-se com a sorte do jovem e ligava-se a ele de maneira muito particular. Já havia tomado algumas medidas e aproveitara-se do tratamento muito rigoroso que o rei infligia aos Medos para insinuar-se no espírito dos grandes e persuadi-los a tirar a coroa de Astíages e dá-la a Ciro.

Urdida a trama e tudo preparado, Hárpago quis revelar a Ciro o plano, mas como o jovem príncipe se achava na Pérsia e os caminhos eram guardados, lançou mão de engenhoso expediente para dar-lhe a notícia: Obtendo uma lebre, abriu-lhe o ventre sem arrancar a pele e ali colocou uma carta, onde expunha tudo detalhadamente. Recoseu o ventre do animal e confiou-o a um dos seus servos mais fiéis, encarregando-o de levá-lo à Pérsia como um presente a Ciro, devendo, porém, dizer de viva voz ao príncipe que abrisse a lebre sem nenhuma testemunha.

CXXIV - Recebendo a lebre, Ciro abriu-a e encontrou a carta, redigida nestes termos: "Filho de Cambises, os deuses velam por vós; de outra maneira não teríeis tanta sorte. Vingai-vos de Astíages, que pretendia matar-vos e que tudo fez para isso. Se viveis, é aos deuses e a mim que o deveis. Já soubestes, naturalmente, de tudo que ele maquinou para vos eliminar e do que eu sofri por vos haver entregue a Mitrídates, em lugar de vos assassinar. Se quiserdes seguir agora mesmo os meus conselhos, todos os estados de Astíages serão vossos. Convencei os Persas a sacudirem o jugo do tirano e vinde à frente deles atacar os Medos. A empresa será coroada de êxito, quer Astíages me dê o comando das tropas que enviar contra vós, quer confie ele esse comando a outro dos mais distintos entre os Medos. Os grandes da nação serão os primeiros a abandoná-lo; reunir-se-ão a vós e farão os maiores esforços para destruir-lhe o poderio. Tudo está disposto para a execução do plano. Fazei o que vos sugiro e fazei-o prontamente".

CXXV - Depois de ler a carta, Ciro pôs-se a pensar sobre os meios mais propícios para levar os Persas à revolta. Ao cabo de muitas reflexões, decidiu-se pelo seguinte: forjou cuidadosamente uma carta e leu-a na assembléia dos Persas. Essa carta trazia a notícia de que Astíages o nomeava governador desse povo. "Agora, - disse ele - ordeno-vos a virem aqui, cada um com uma foice".

Tais foram as determinações de Ciro. As tribos componentes da nação persa são muito numerosas. Ciro convocou algumas dentre estas tribos e concitou-as a rebelar-se contra o domínio dos Medos. Eram as que maior influência tinham sobre todos os outros persas, a saber: os Pasargadios, os Maráfios e os Maspianos, sendo os primeiros os mais civilizados de todos. Os Aquemênidas, dos quais descendem os reis persas, constituem um ramo da tribo dos Pasargadios.

CXXVI - Quando se apresentaram todos, armados de foice, Ciro, levando-os a certo cantão da Pérsia, de dezoito a vinte mil estádios, inteiramente coberto de cardos, ordenou-lhes que o limpassem num só dia. Terminado esse trabalho, deviam banhar-se no dia seguinte e apresentar-se, em seguida, a ele, Ciro. Entrementes, mandou conduzir ao mesmo lugar todos os rebanhos do pai, tanto cabras quanto carneiros e bois, fez matar todos esses animais e prepará-los, como para um lauto banquete. Fez vir também grande quantidade de vinho e as iguarias mais finas para regalar os soldados. No dia seguinte, os persas chegaram; o príncipe fê-los sentar sobre a relva e ofereceu-lhes um grande festim. Terminado o repasto, perguntou-lhes qual das duas situações preferiam; se a presente ou a da véspera. Todos exclamaram que era enorme a diferença entre ambas: no dia anterior haviam sofrido mil penas, enquanto que naquele momento usufruíam toda sorte de regalos. Ciro aproveitou-se dessa resposta para lhes revelar seus planos. "Persas, - disse-lhes - tal é agora a contingência em que vos encontrais: se quiserdes obedecer-me, gozareis desses bens e de uma infinidade de outros ainda, sem submeter-vos a trabalhos servis; se, ao contrário, não quiserdes seguir os meus conselhos, não deveis esperar senão penas sem número e semelhantes às que sofrestes ontem. Tornar-vos-ei livres se me obedecerdes, pois pareço ter nascido por um desígnio especial dos deuses, para vos proporcionar todas as vantagens. Aliás, não vos considero em nada inferiores aos Medos, tanto no que concerne à guerra, como em qualquer outro terreno. Sacudi, pois, o mais cedo possível, o jugo de Astíages".

CXXVII - Os Persas, há muito inconformados com o domínio dos Medos, encontrando um chefe aproveitaram a ocasião para libertar-se. Astíages, tendo tido conhecimento das manobras de Ciro, mandou chamá-lo com urgência. Ciro encarregou o portador de dizer ao soberano que iria ter com ele bem mais depressa do que ele desejava. Ante a resposta, Astíages ordenou a todos os Medos que pegassem em armas, e, como obedecendo a uma sentença dos deuses, confiou o comando do exército a Hárpago, sem lembrar-se da maneira pela qual o havia tratado. Os Medos, entrando em campanha, enfrentaram os Persas. Todos os que não estavam a par do plano de Hárpago se bateram com denodo. Quanto aos outros, uma parte passou para o lado dos Persas, enquanto a outra, ao brado de guerra, abandonou a corte, fugindo.

CXXVIII - Informado da derrota vergonhosa dos Medos, Astíages prorrompeu em ameaças contra Ciro. "Não, - disse ele - Ciro não terá motivos para regozijar-se". Isso dizendo, mandou, sem demora, crucificar os magos que lhe haviam aconselhado a deixar partir o neto. Em seguida, fez pegar em armas todos os Medos que ainda restavam na cidade - jovens e velhos - e conduzindo-os contra os Persas, deu-lhes novamente combate. Foi derrotado e caiu, ele próprio, nas mãos dos Persas.

CXXIX - Cheio de júbilo por ver Astíages vencido e sob ferros, Hárpago apresentou-se diante dele e insultou-o, e entre outras palavras mordazes, lembrou-lhe o repasto em que o rei prisioneiro lhe servira a carne do filho, perguntando-lhe que gosto achava ele agora na escravidão e se a preferia à coroa. Astíages perguntou-lhe, por sua vez, se ele atribuía aquela empresa a Ciro, replicando Hárpago que se considerava com inteira justiça o autor da mesma, pois fora e1e que a preparara, escrevendo a Ciro. Astíages chamou-o o mais incoerente e o mais injusto dos homens; o mais incoerente porque, se na verdade provocara aquela revolta, podendo fazer-se rei, pusera a coroa na cabeça de outro; e o mais injusto porque, vingando-se da morte do filho e da afronta que sofrera, reduzira os Medos à escravidão. Se realmente era necessário dar a coroa a outro, e se Hárpago não queria guardá-la para si mesmo, seria mais justo colocá-la na cabeça de um meda do que na de um persa. O que fizera, afinal, fora submeter sua pátria à servidão, tornando os Persas, até então escravos dos Medos, senhores destes.

CXXX - Astíages perdeu assim a coroa, depois de um reinado de trinta e cinco anos. Os Medos, tendo possuído durante cento e vinte e oito anos o império da Alta Ásia até o rio Hális, sem incluir o tempo em que reinaram os Citas, passaram para o jugo dos Persas por causa da desumanidade daquele soberano. É verdade que deles se libertaram mais tarde, no reinado de Dario, mas novamente vencidos, em combate, foram de novo subjugados. Ciro e os Persas, revoltando-se contra os Medos, como acabamos de ver, ficaram com o domínio de quase toda a Ásia. Quanto a Astíages, Ciro o reteve ao seu lado até a morte, não lhe havendo feito outro mal. Pouco depois dessa sua ousada empresa, Ciro derrotou a Creso, que lhe movera uma guerra injusta, tornando-se, assim, senhor de toda a Ásia.

CXXXI - Entre os usos e tradições observados pelos Persas, vale ressaltar os seguintes: não costumavam erguer estátuas, nem templos, nem altares; tratavam, ao contrário, de insensatos os que assim procediam; e isso, na minha opinião, porque não acreditam terem os deuses forma humana. Fazem, todavia, sacrifícios a Júpiter no alto da montanha e dão o nome desse deus à abóbada celeste. Fazem ainda sacrifícios ao Sol, à Lua, à Terra, ao Fogo, à Água e aos Ventos, e juntam a isso o culto de Vênus Urânia, que herdaram dos Assírios e dos Árabes. Os Assírios dão à deusa o nome de Milita; os Árabes, o de Alita, e os Persas chamam-na de Mitra.

CXXXII - Eis aqui os ritos que os Persas observam ao sacrificarem aos deuses a que me referi: Não erguem altares, não acendem fogo, não fazem libações e não se servem nem de flautas, nem de ornamentos sagrados, nem de aveia misturada com sal. Quando um persa quer oferecer um sacrifício, conduz a vítima a um lugar puro e, com a cabeça coberta por uma tiara, ordinariamente de mirto, invoca o deus. Não é permitido a quem oferece o sacrifício fazer votos apenas para si; deverá pedir pela prosperidade do rei e de todos os outros Persas em geral, pois a sua própria pessoa se inclui nesse voto comum. Depois de cortar a vítima em pedaços e cozinhar-lhe a carne, estende no chão uma erva muito delgada, de preferência o trevo, coloca ali os pedaços da vítima, arrumando-os com muito cuidado, feito o que um mago, que se acha presente (sem mago não há sacrifício), entoa uma teogonia, reputada, entre eles, como o mais poderoso motivo de encantamento. Em seguida, o que ofereceu o sacrifício leva as carnes da vítima e dispõe delas como julgar melhor.

CXXXIII - Sentem-se os Persas no dever de festejar seu aniversário de nascimento, mais do que qualquer outra data, pondo nesse dia as melhores iguarias à mesa. Os ricos fazem servir um cavalo, um camelo, um asno e um boi inteiros e assados ao forno. Os pobres se contentam com um cardápio mais modesto. Os Persas comem poucos alimentos sólidos, mas muitas gulodices na sobremesa. Isso os leva a dizer que os Gregos satisfazem logo o apetite porque depois da refeição não lhes servem nada de bom; se lhes servissem, não deixariam de comer. São muito dados ao vinho, e não lhes é permitido vomitar nem urinar na presença de outrem. Observam ainda hoje tais costumes. Têm o hábito de deliberar sobre os negócios mais sérios depois de beberem muito; mas no dia seguinte, o dono da casa onde estiveram reunidos traz novamente à baila a questão, antes de começarem a beber de novo. Se aprovam, ela passa; se não, abandonam o assunto Às vezes, entretanto, dá-se o contrário: o que decidiram antes de beber passam a discutir novamente durante a embriaguez.

CXXXIV - Quando dois persas se encontram na rua, sabe-se logo se são da mesma condição, pois se o forem saúdam-se beijando-se na boca; se um é de origem um pouco inferior ao outro, beijam-se somente nas faces; se a condição de um é muito inferior à do outro, o inferior prosterna-se diante do superior. As nações vizinhas são as que eles mais estimam; às vezes mais do que seu próprio país. Em segundo lugar vêm as que confinam com as vizinhas; e vão regulando assim a estima, proporcionalmente ao grau de afastamento. Aos mais afastados, quase nenhuma importância dão. Isso porque, julgando-se em tudo de um mérito superior, pensam que a maioria dos homens só se torna virtuosa em conseqüência da aproximação deles, devendo, portanto, os mais afastados, que menos recebem essa influência, recair na maldade. Quando do domínio dos Medos, havia uma ordem de subordinação entre os diversos povos. Os Medos governavam a todos, bem como os mais próximos vizinhos. Estes comandavam os que com eles confinavam, os quais, por sua vez, dirigiam os outros vizinhos, e assim por diante. Os Persas, cujo império e administração se estenderam num raio de amplitude imensa, adotaram a mesma atitude com relação aos povos que dominavam.

CXXXV - Os Persas assimilam facilmente os costumes estrangeiros. Dominados os Medos, começaram a adotar os trajes destes por considerá-los mais belos do que os seus. Nas guerras, envergam couraças à maneira egípcia. Entregam-se com ardor aos prazeres de todo gênero, de que ouvem falar, e adquiriram com os Gregos o amor aos jovens. Desposa, cada um deles, em casamento legítimo, diversas mulheres, o que não impede de possuírem ainda várias concubinas.

CXXXVI - Depois das virtudes guerreiras, encaram como grande mérito o ter muitos filhos. O rei gratifica todos os anos os casais mais prolíficos. A razão dessa tendência para uma prole numerosa está em considerarem os Persas que a força viril é demonstrada pelo grande número de filhos. Estes eles começam a instruir aos cinco anos de idade, e daí até os vinte só lhes ensinam três coisas que consideram as mais importantes: montar a cavalo, atirar com o arco e dizer a verdade. Antes de completar cinco anos, um filho não se apresenta ao pai; permanece sempre junto à mãe e sob os cuidados dela. Adotam esse costume para que, no caso do filho morrer muito criança, a perda não cause desgosto ao pai.

CXXXVII - Tal costume me parece louvável. Aprovo também a lei que não permite a ninguém, nem mesmo ao rei, mandar matar um homem por um só crime, nem a nenhum persa punir rigorosamente um dos seus escravos por uma só falta. Se depois de refletido exame o senhor achar que as faltas do servo são em maior número e mais consideráveis do que os serviços, pode então dar expansão à sua cólera. Asseguram os Persas nunca ter alguém, entre eles, matado o pai ou a mãe, pois todas as vezes que se tem notícia de um tal crime, descobre-se, depois de rigorosas pesquisas, que o filho criminoso, ou era suposto ou adulterino. Isso porque os Persas não podem admitir a possibilidade de um homem matar o verdadeiro autor dos seus dias.

CXXXVIII - Não lhes é permitido falar das coisas que não podem fazer. Nada lhes parece mais vergonhoso do que a mentira, e depois da mentira, contrair dívidas; isso por várias razões, mas sobretudo porque quem possui dívidas mente por força. Um cidadão contaminado da lepra branca não pode entrar na cidade e nem ter qualquer espécie de contato com o resto dos Persas, pois vêem nisso uma prova de haver o indivíduo pecado contra o Sol. Todo estrangeiro atacado desse mal é afastado do país; e, pela mesma razão, não podem tolerar os pombos brancos. Não urinam nem escarram nos rios; ali não lavam nem mesmo as mãos e nem permitem que alguém o faça, pois adotam o culto dos rios{3}.

CXXXIX - Têm eles também algo de singular que nem eles mesmos percebem e que, no entanto, não nos escapou: Seus nomes, derivados dos atributos do corpo e das qualidades do indivíduo, terminam pela mesma letra a que os Dórios denominam san e os Iônios sigma; e se prestardes atenção, vereis que os nomes dos Persas terminam todos da mesma maneira, sem exceção de um só.

CXL - Sobre o que acabo de expor, posso falar com inteira segurança; mas o que se segue é assunto privado e não se baseia na mesma certeza: Não se enterra, absolutamente, o corpo de um persa, sem ter sido ele, antes, estraçalhado por um pássaro ou cão. Quanto aos magos, estou seguro de que observam esse costume, pois praticam-no à vista de todos. Os Persas untam de cera os mortos e enterram-nos em seguida.

Os magos diferem muito dos outros homens e particularmente dos sacerdotes do Egito. Estes têm as mãos sempre puras do sangue de animais e não matam senão os que imolam aos deuses. Os magos, ao contrário, matam com as próprias mãos toda espécie de animais, com exceção do homem e do cão; vangloriam-se mesmo de matar igualmente as formigas, as serpentes e outros animais, tanto répteis como voláteis. Deixemos, todavia, esse costume, tal como tem sido adotado, e retomemos o fio de nossa história.

CXLI - Mal os Lídios haviam sido subjugados pelos Persas, e já os Iônios e os Eólios enviavam embaixadores a Ciro, em Sardes, pedindo-lhe para acolhê-los no número dos seus súditos, nas mesmas condições em que o foram de Creso. O príncipe respondeu a essa proposta com este apólogo: Um tocador de flauta, tendo percebido peixes no mar, pôs-se a tocá-la, imaginando que eles viriam à terra. Vendo malogrado seu intento, lançou à água uma rede e retirou-a com grande quantidade de peixes, depositando-os no chão; e vendo-os saltar, disse: "Cessai, cessai agora de dançar, pois não quisestes vir a mim ao som da minha flauta".

Deu essa resposta aos Iônios e aos Eólios porque, tendo outrora concitado os primeiros, por intermédio de embaixadores, a abandonar o partido de Creso, não conseguira convencê-los, e agora via-os dispostos a obedecer-lhe somente porque vencera. Diante disso, os Iônios fortificaram suas cidades e reuniram-se todos no Panionium, com exceção dos Milésios, os únicos com os quais Ciro fez um tratado nas mesmas condições a eles concedidas por Creso. Nesse conselho dos Iônios ficou unanimemente resolvido o envio de um pedido de socorro a Esparta.

CXLII - Os Iônios, aos quais pertence o Panionium, construíram suas cidades nas regiões mais agradáveis que conheço, quer pela beleza do céu, quer pelo clima. Com efeito, os países que circundam a Iônia, ao norte ou ao sul, a leste ou a oeste, não podem absolutamente comparar-se com ela; uns, sujeitos às chuvas e aos rigores do Inverno; outros, ao calor e à seca. Os Iônios não falam todos o mesmo dialeto; suas palavras têm quatro espécies de terminação. Mileto é a primeira de suas cidades ao sul, vindo em seguida Mionte e Priena, que ficam na Cária e onde a língua é a mesma. Éfeso, Cólofon, Lébedo, Teos, Clazômenas e Focéia ficam situadas na Lídia. Estes povos falam entre si um mesmo idioma, mas que não é entendido nas primeiras cidades a que me referi. Há ainda três outras cidades iônias, das quais duas ficam nas ilhas de Samos e Quios, e a terceira, Eritréia, no continente. A língua dos habitantes de Quios e da Eritréia é a mesma; mas os de Samos possuem um idioma particular, deles somente.

CXLIII - Entre os Iônios, apenas os habitantes de Mileto, para se porem a coberto de todo perigo, conseguiram fazer um tratado com Ciro. Quanto aos insulares, não tinham, no momento, nada a temer, uma vez que os Fenícios ainda não estavam submetidos aos Persas, e estes não possuíam marinha. Os Milésios, de resto, se haviam separado dos outros Iônios, porque se todos os gregos reunidos ainda eram muito fracos, os Iônios o eram ainda mais e não gozavam de nenhuma consideração. Realmente, com exceção de Atenas, nenhuma das cidades da Iônia se tornou célebre. A maioria dos Iônios e dos Atenienses não queria que os chamassem de Iônios; o nome desagradava-os, e até hoje quase todos se envergonham de trazê-lo. As doze cidades de que acabo de falar fizeram construir um templo, a que chamavam de Panionium, e tomaram a resolução de excluir dele as outras cidades iônias. Os Esmírnios foram os únicos que solicitaram e tiveram ingresso ali.

CXLIV - A mesma resolução adotaram os Dórios de Pentápolis, outrora chamada Hexápolis. Não admitem no templo triópico nenhum dório da vizinhança; e se alguém da própria Pentápolis viola as leis do templo, é dele excluído. Nos jogos celebrados em honra a Apolo Triópico concediam-se tripés de bronze aos vencedores, não sendo, porém, a estes permitido retirá-los do templo; deviam consagrá-los aos deuses. Um habitante de Halicarnasso, de nome Agasicles, tendo conquistado um prêmio nesses jogos, levou o tripé para casa, desprezando a proibição. As cinco cidades dórias: Lindo, Iáliso, Camiro, Cós e Cnido puniram Halicarnasso, que era a sexta, excluindo-a da comunidade.

CXLV - Os Iônios estão, creio eu, divididos em doze cantões e não querem admitir maior número em sua confederação, pois no tempo em que habitavam o Peloponeso se achavam repartidos em doze grupos, da mesma maneira que ainda o são agora os Aqueus, que os expulsaram. Pelena é a primeira cidade dos Aqueus, do lado de Cicione. Encontramos, em seguida, Egira, Ege, - banhada pelo Crátis, que nunca seca e que deu seu nome a um rio da Itália - Bure, Hélice - onde os Iônios se refugiaram depois de derrotados pelos Aqueus - Égio, Ripe, Patras, Fáris e Oleno, banhada pelo Pírus, rio de grande volume de água. Temos ainda Dimo e Tritéia, as únicas situadas na zona central.

CXLVI - Os doze cantões, hoje habitados pelos Aqueus, pertenciam outrora aos Iônios, e foi isso que levou estes a construir doze cidades na Ásia. Seria rematada tolice acreditar que esses Iônios são superiores ou de linhagem mais ilustre do que os outros, porquanto os Abantes da Eubéia estão, em parte considerável, mesclados com esses povos e nada têm de comum com os habitantes da Iônia, nem sequer o nome. Os Atenienses consideram como os mais nobres e mais ilustres dos Iônios os que saíram do Pritaneu4. Quando os Pritanes foram fundar sua colônia, não levaram mulheres consigo, mas desposaram mulheres carianas, cujos pais haviam matado. Essas mulheres, furiosas com o massacre de seus pais, maridos e filhos, e pelo fato de os Pritanes as terem, depois disso, tomado por esposas, impuseram a si próprias uma lei: a de nunca fazerem suas refeições em companhia do marido e de jamais lhes dar esse nome, lei essa que juraram observar e transmitida aos seus descendentes. Foi em Mileto que isso se passou.

CXLVII - Os Iônios elegeram como reis, uns os Lícios, descendentes de Glauco, filho de Hipóloco; outros, os Cuacones Pílio, descendentes de Codro, filho de Melantres; outros, enfim, recorreram a ambas as raças. Estou de acordo com os que afirmam que os Iônios estão mais identificados com esse nome do que o resto da nação e que são eles os puros, os verdadeiros Iônios; mas convém que se saiba que todos os que se originaram de Atenas e que celebram a festa das Apatúrias são também Iônios.

CXLVIII - O Panionium é um lugar sagrado, no monte Mícale, dedicado pelos Iônios, em comum, a Netuno Helicônio. Acha-se voltado para o norte. Mícale é um promontório do continente, estendendo-se para oeste, na direção de Samos. Os Iônios de todas as cidades reúnem-se ali para celebrar uma festa denominada Paniônia. Os nomes das festas dos Iônios terminam sempre pelas mesmas letras, tendo elas isso em comum com as dos Gregos e com os nomes próprios dos Persas.

CXLIX - Eis o que eu tinha a dizer sobre as cidades dos Iônios. As dos Eólios são: Cimo, também chamada Fricónis, Larissa, Neontico, Temnos, Cila, Nócio, Egirusa, Pitanéia, Egéia, Mirina e Grínia. Aí estão as onze antigas cidades dos Eólios. Eram doze as cidades, espalhadas no continente, mas os Iônios lhes arrebataram Esmirna. O país dos Eólios é mais fértil do que o dos Iônios, entretanto de clima bem diferente.

CL - Vejamos como os Eólios vieram a perder Esmirna. Os Colofônios, tendo fracassado numa sedição, foram obrigados a expatriar-se. Os habitantes de Esmirna deram-lhes asilo. Algum tempo depois, os fugitivos, observando que o povo de Esmirna celebrava fora da cidade uma festa em honra a Baco, fecharam os portões e apoderaram-se da praça. Os Eólios vieram todos em socorro, mas acabaram transigindo, ficando convencionado que eles deixariam os captores de posse da cidade, desde que estes lhes entregassem todos os móveis. Os Esmírnios, tendo aceito a condição, foram distribuídos pelas onze cidades eólias, que lhes concederam direitos de cidadania.

CLI - Além dessas cidades situadas no continente, os Eólios possuem ainda cinco núcleos urbanos na ilha de Lesbos. Havia um sexto núcleo denominado Arisba, cujos habitantes foram reduzidos à escravidão pelos Metimneus, embora houvesse entre eles laços de consangüinidade. Os Eólios possuem também uma cidade na ilha de Tênedos e outra nas Cem Ilhas. Os Lésbios e os Tenédios não tinham, então, nada a temer, e muito menos os do ramo iônio que habitavam as ilhas; mas os habitantes das outras cidades resolveram seguir os Iônios para toda parte, para onde quer que eles os quisessem conduzir.

CLII - Os embaixadores dos Iônios e dos Eólios, tendo ido a Esparta em diligência, escolheram, logo ao chegar, um fócio de nome Pitermo para falar em nome de todos. Pitermo vestiu um traje de púrpura, a fim de que, ante aquela novidade, os Espartanos acorressem em grande número à assembléia. Adiantando-se para o meio deles, Pitermo exortou-os, com um longo discurso, a tomar-lhes a defesa; mas os Lacedemônios, sem levar em consideração esse pedido, resolveram não lhes conceder nenhum auxílio. Os Iônios retiraram-se. Embora não atendessem àquele apelo, os Lacedemônios decidiram enviar em um navio de cinqüenta remos, emissários para observar o estado em que se encontravam os negócios de Ciro e da Iônia. Chegando a Focéia, os deputados enviaram Lacrines, o mais ilustre dentre eles, a Sardes, para dizer a Ciro, em nome dos Lacedemônios, que não procurasse causar dano a nenhuma cidade da Grécia, pois Esparta não poderia tolerar isso.

CLIII - Tendo Lacrines executado as ordens, dizem haver Ciro perguntado aos gregos presentes que espécie de homens eram os Lacedemônios e qual o número deles para usarem daquela linguagem. Recebendo a resposta, dirigiu-se nestes termos ao arauto dos Espartanos: "Nunca temi essa gente que possui no centro da sua cidade uma praça onde se reúne para enganar uns aos outros por meio de juramentos recíprocos. Se os deuses me conservarem a saúde, encontrará tal povo mais motivos para comentar a própria desgraça do que os Iônios". Ciro lançou essas palavras ameaçadoras contra todos os Gregos, pois se referia às feiras livres que eles mantêm nas suas cidades. Os Persas não adotam o costume de mercadejar nas praças públicas, não existindo nas suas cidades nenhum mercado.

Confiando o governo de Sardes a um persa de nome Tabalo e encarregando o lídio Páctias de transportar para a Pérsia os tesouros de Creso e dos outros lídios, o príncipe voltou para Ecbatana, levando o soberano vencido em sua companhia, pouco caso fazendo dos Iônios para pensar em marchar primeiramente contra eles. Babilônia, os Bactros, os Sácios e os Egípcios constituíam maiores obstáculos aos seus desígnios. Resolveu ir combater em pessoa esses povos e enviar um outro general contra os Iônios.

CLIV - Mal Ciro partiu de Sardes, Páctias sublevou os Lídios contra o príncipe e Tabalo. Como tinha nas mãos todas as riquezas da cidade, desceu até o litoral, contratou tropas mercenárias, concitou os habitantes da zona costeira a coadjuvá-lo na luta e marchou contra Sardes, atacando Tabalo, que se retirou para a cidadela.

CLV - Tendo tido em caminho conhecimento da insurreição, Ciro assim se dirigiu a Creso: "Qual será o fim de semelhante aventura? Pelo que vejo, os Lídios não deixarão de criar-me dificuldades, provocando-as eles próprios. Quem sabe se não seria mais vantajoso reduzi-los à escravidão? Parece-me que agi como alguém que houvesse poupado os filhos de uma pessoa a quem matou. Eras para os Lídios mais do que um pai; levo-te prisioneiro e entrego-lhes a cidade. Não me causa espanto vê-los rebelar-se". Essa declaração exprimia a maneira de pensar do príncipe; e Creso, receando que ele destruísse inteiramente a cidade de Sardes, tornou a palavra: "O que acabas de dizer é justo, mas não te abandones à cólera e não destruas, de forma alguma, uma cidade antiga, que não tem culpa das perturbações passadas e nem das de hoje. Fui a causa das primeiras e sofro as conseqüências. O culpado agora é Páctias, a quem confiastes o governo de Sardes; que seja ele punido. Perdoa aos Lídios, e para evitar que no futuro se tornem perigosos e se sublevem, proíbe-os de trazer armas, ordena-lhes a usar túnicas sob os seus mantos, a calçar sapatos de salto alto, a ensinar as crianças a tocar cítara, a cantar e a comerciar. Por esse meio, senhor, verás logo os homens transformados em mulheres e não haverá mais receio de revolta da parte deles".

CLVI - Creso deu-lhe esse conselho, que lhe pareceu mais vantajoso para os Lídios do que serem vendidos como vis escravos. Sentia que sem alegar boas razões não faria Ciro mudar de resolução. Além disso, receava, no caso dos Lídios escaparem do atual perigo, a tentativa de uma nova revolta, capaz de atrair sobre eles a ruína total. A sugestão foi muito bem recebida por Ciro. Passado o momento de cólera, pareceu-lhe acertado seguir o conselho de Creso. Mandou imediatamente chamar um meda de nome Mazarés, ordenando-lhe que transmitisse aos Lídios a decisão sugerida por Creso e reduzisse à servidão todos os que se haviam aliado para cercar Sardes, trazendo-lhe, principalmente, Páctias vivo. Dando essas ordens, continuou a viagem para a Pérsia.

CLVII - Páctias, informado de que o exército que marchava contra ele se aproximava de Sardes, sentiu-se tomado de pânico e fugiu para Cimo. Entretanto, Mazarés chegou a Sardes com uma pequena parte das tropas de Ciro, e não tendo encontrado Páctias, deu cumprimento às outras ordens de Ciro. Os Lídios submeteram-se e mudaram sua antiga maneira de viver. Em seguida, Mazarés mandou intimar os habitantes de Cimo a entregar-lhe Páctias. Reunindo-se em conselho, os Címios deliberaram consultar o oráculo dos Branquides sobre o partido a tomar. O local em que se encontrava esse oráculo, a que os Iônios e os Eólios costumavam recorrer, estava situado no território de Mileto, acima do porto de Panorma.

CLVIII - Os Címios, por meio de delegados, perguntaram aos Branquides como deveriam proceder com relação a Páctias, a fim de se tornarem agradáveis aos deuses. O oráculo respondeu ser necessário entregá-lo aos Persas. Diante disso, os Címios resolveram satisfazer a exigência de Mazarés, entregando-lhe Páctias. Todavia, embora fosse essa a opinião da maioria dos Címios, Aristódico, filho de Heraclides, homem ilustre e gozando de grande consideração entre seus compatriotas, opôs-se à resolução, impedindo que a tomassem antes de fazer nova consulta ao oráculo, na qual ele figuraria entre os delegados, certamente porque desconfiava da infidelidade destes ou do próprio oráculo.

CLIX - Logo que os deputados chegaram aos Branquides, Aristódico, tomando a palavra, consultou o deus nestes termos: "Grande deus, o lídio Páctias veio procurar asilo entre nós, para fugir à morte de que o ameaçam os Persas. Eles nos intimam a entregá-lo, mas, embora lhes receemos o poder, decidimos não cumprir a ordem sem que primeiro soubéssemos de vós, com segurança, o que devemos fazer". O oráculo respondeu da maneira que fizera antes, ordenando-lhes que entregassem Páctias aos Persas. Diante disso, Aristódico dirigiu-se, com premeditado propósito, em torno do templo e retirou os pardais e todas as outras espécies de pássaros que ali faziam ninho. Conta-se que, enquanto assim procedia, uma voz, vinda do santuário, invectivou-o: "Ó celerado, tens a audácia de arrancar do meu templo os meus suplicantes?", ao que Aristódico, sem se perturbar, replicou: "Então, grande deus, socorreis os vossos suplicantes e ordenais aos Címios que entreguem ao inimigo o deles?" "Quero que assim seja; - volveu a voz - e para que, tendo cometido uma impiedade, não incorras no risco de perecer, aconselho-te a não vir mais consultar o oráculo para saber se deves ou não entregar suplicantes".

CLX - Ante a nova resposta dos delegados, os Címios enviaram Páctias a Mitilene, não desejando, nem expor-se libertando-o, nem serem sitiados continuando a dar-lhe asilo. Tendo Mazarés exigido dos Mitilênios a devolução de Páctias, eles se dispuseram a entregá-lo mediante uma certa recompensa, que não ouso, entretanto, precisar, pois o acordo não se realizou. Os Címios, sabedores da intenção dos Mitilênios, enviaram a Lesbos um navio, que transportou Páctias para Quios.

Os habitantes dessa ilha arrancaram-no do templo de Minerva Polioucos e o entregaram a Mazarés com a condição de este lhes dar Atarnéia, país da Mísia, defronte de Lesbos.

Quando os Persas tiveram Páctias nas mãos, guardaram-no com a maior segurança, para apresentá-lo a Ciro. Depois desse acontecimento, os habitantes de Quios levaram muito tempo sem ousar, nos sacrifícios, espalhar sobre a cabeça da vítima a aveia de Atarnéia, nem oferecer a qualquer deus bolos feitos com farinha desse cantão, excluindo dos templos tudo que dali provinha.

CLXI - Mal os habitantes de Quios entregaram Páctias, Mazarés marchou contra os que se haviam unido ao rebelde para cercar Tabalo. Reduziu os Priênios à servidão, fez uma incursão na planície do Meandro e permitiu aos soldados saquearem tudo. Tratou da mesma maneira Magnésia, depois do que, caindo doente, morreu.

CLXII - Hárpago sucedeu-o no comando do exército. Era meda de nascimento, como Mazarés, e, por causa de uma refeição abominável que lhe oferecera Astíages, auxiliara Ciro a apoderar-se do trono da Média. Logo que Ciro o nomeou general, passou ele para a Iônia e tomou as cidades por meio de entrincheiramentos: assim que encurralava os habitantes por detrás das barreiras, reduzia estas últimas, erguendo terraços ao nível das muralhas. Focéia foi a primeira cidade conquistada.

CLXIII - Foram os Fócios os primeiros entre os Gregos a empreender longas viagens marítimas e a conhecer o mar Adriático, a Tirrênia, a Ibéria e Tartesso. Não se serviam de embarcações redondas, mas de navios de cinqüenta remos. Tendo chegado a Tartesso, caíram nas graças de Argantônio, rei dos Tartéssios e que governou durante oitenta anos, tendo vivido cem anos. Souberam, de certo, fazer-se estimar por esse soberano, que lhes aconselhou a deixar a Iônia e a se estabelecerem na região do Tartesso que mais lhes conviesse; mas não conseguindo persuadi-los e tendo sabido por eles que as forças de Creso aumentavam cada vez mais, deu-lhes certa soma de dinheiro para cercarem sua cidade de muralhas. Essa quantia devia ser considerável, pois eles ergueram um círculo de muralhas de grande amplitude, todas de pedras enormes e agregadas com arte.

CLXIV - Aproximando-se dessa praça, Hárpago estabeleceu o cerco, mandando dizer, ao mesmo tempo, aos Fócios, que ficaria satisfeito se eles demolissem apenas uma de suas ameias e consagrassem uma casa. Como não podiam suportar a escravidão, os Fócios pediram um dia para deliberar sobre a proposta, comprometendo-se, depois disso, a dar sua resposta. Pediram-lhe também para retirar as tropas da frente das muralhas enquanto se mantinham em conselho. Hárpago respondeu-lhes que, embora não ignorasse suas intenções, nada faria para impedi-los de deliberar. Enquanto o meda retirava suas tropas, os Fócios lançaram seus navios ao mar, neles colocando as esposas, os filhos, os móveis e, além do mais, as estátuas e as oferendas que se achavam no templo, exceto quadros e as obras de bronze e de pedra, depois de transportarem tudo para os navios, embarcaram e abriram velas para Quios. Os Persas, encontrando a cidade abandonada, dela se apoderaram.

CLXV - Vendo que os habitantes de Quios não queriam vender-lhes as ilhas Enussas com receio de que eles lhes prejudicassem o comércio, os Fócios retirantes rumaram para Cirne, onde vinte anos antes haviam construído a cidade de Alalia em obediência a um oráculo. Aliás, Argantônio tinha morrido nesse intervalo. Antes porém de aportarem a Cirne, retornaram a Focéia, massacrando a guarnição deixada por Hárpago. Dirigindo, em seguida, as mais terríveis imprecações contra os que se haviam separado da frota, atiraram ao mar um pedaço de ferro em brasa, formulando o juramento de não retornarem jamais a Focéia enquanto o pedaço de ferro não voltasse à tona. Todavia, quando se achavam em caminho para Cirne, mais da metade deles, com saudades da pátria e dos velhos lares, violou o juramento e regressou a Focéia. Os outros, mais religiosos, continuaram a rota, deixando para trás as ilhas Enussas.

CLXVI - Ao chegarem a Cirne, ergueram templos e residiram pelo espaço de cinco anos com os colonos que os tinham precedido; mas como devastavam e saqueavam os vizinhos, os Tirrênios e os Cartagineses lançaram-se ao mar, de comum acordo, em sessenta navios, para dar-lhes combate. Os Fócios, por sua vez, equipando um número correspondente de embarcações, foram-lhes ao encontro no mar da Sardenha. Conseguiram uma vitória cadmiana{5} pois perderam quarenta navios, ficando os outros inutilizados. Retornaram a Alalia, e reunindo as mulheres, os filhos e tudo mais que puderam arrecadar do resto dos seus bens, abandonaram Cirne, rumando para Régio.

CLXVII - Os Cartagineses e os Tirrênios repartiram por sorteio os Fócios que haviam aprisionado, ficando os segundos com maior número. Levaram-nos, então, para terra, massacrando-os com pedradas. Desde essa ocasião, nem gado, nem animal de carga, nem mesmo os homens, numa palavra, ninguém que pertencesse aos Agilenses pôde mais atravessar o campo onde os Fócios haviam sido aniquilados, sem ter os membros deslocados ou tornar-se disformes, estropiados ou paralíticos. Os Agilenses mandaram delegados a Delfos para expiarem o seu crime. A pitonisa ordenou-lhes realizar suntuosas cerimônias fúnebres às suas vítimas e instituir em sua honra jogos gímnicos e corridas de carro. Os Agilenses realizam ainda hoje essas cerimônias.

Tal foi a sorte desses Fócios. Quanto aos que se refugiaram em Régio, partindo dali construíram nos campos da Enótria a cidade hoje conhecida por Hiléia. Isso fizeram a conselho de um habitante de Possidônia, que lhes dissera haver a pitonisa ordenado em resposta a uma consulta, o estabelecimento de uma colônia na ilha de Cirne e a ereção de um monumento ao herói de Cirnos.

CLXVIII - Os Teienses conduziram-se mais ou menos como os Fócios. Realmente, mal Hárpago ocupara suas muralhas por meio de um terraço improvisado, fizeram-se ao mar, passando-se para a Trácia, onde construíram a cidade de Abdera. Timésios de Clazômenas já a tinha fundado antes, mas os Trácios o expulsaram de lá. Os Teienses de Abdera rendem-lhe hoje culto como a um herói.

CLXIX - Esses povos forarn os únicos entre os Iônios, que preferiram abandonar a pátria a suportar o jugo do estrangeiro. É verdade que o resto dos Iônios, com exceção dos de Mileto, lutaram contra Hárpago, a exemplo dos que haviam deixado a Iônia, e deram provas de valor defendendo cada qual sua pátria; mas vencidos e caindo em poder do inimigo, foram compelidos a permanecer no país e a submeter-se ao vencedor. Quanto aos Milésios, tinham eles, como já disse antes, prestado juramento de fidelidade a Ciro, ficando em perfeita tranqüilidade. A Iônia foi, assim, reduzida à escravidão pela segunda vez. Os Iônios habitantes das ilhas, receando destino semelhante ao que Hárpago impusera aos do continente, renderam-se voluntariamente a Ciro.

CLXX - Embora acabrunhados por esses reveses, os Iônios não deixavam de reunir-se no Panionium. Bias de Priene deu-lhes, como dissemos, um conselho útil, que os tornaria os mais felizes de todos os Gregos se o tivessem seguido: Exortou-os a embarcar, todos juntos, numa mesma frota e dirigir-se para a Sardenha, e ali fundar uma única cidade para todos os Iônios. Fez-lhes ver que por esse meio poderiam escapar à escravidão e que, habitando a maior de todas as ilhas, as outras lhes cairiam nas mãos, enquanto que, se permanecessem na Iônia, não teriam nenhuma possibilidade de recobrar a liberdade. Tal foi o conselho dado por Bias ao Iônios depois do desastre destes últimos; mas antes de eles haverem recaído na servidão, Tales de Mileto, cujos ancestrais eram originários da Fenícia, fez-lhes outra excelente sugestão: a de estabelecerem em Teos, no centro da Iônia, um conselho geral para toda a nação, sem prejudicar o governo das outras cidades, as quais continuariam seguindo seus usos e costumes particulares, como se fossem outros tantos estados separados.

CLXXI - Hárpago, tendo subjugado a Iônia, voltou-se contra os Cários, os Cáunios e os Lícios, com um reforço de tropas fornecido pelos Iônios e Eólios. Os Cários, que passaram das ilhas para o continente, tinham sido outrora súditos de Minos. Eram então conhecidos pela designação de Lelegos. Habitavam as ilhas e não pagavam nenhuma espécie de tributo - pelo menos assim depreendo das suas mais antigas tradições -, mas todas as vezes que Minos deles precisava, atendiam prontamente com seus navios. Enquanto esse príncipe, feliz na guerra, ampliava suas conquistas, os Cários angariavam maior celebridade do que todos os povos conhecidos de então. A eles se devem três invenções adotadas mais tarde pelos Gregos. Foram, com efeito, os Cários os primeiros a colocar penachos nos capacetes, a ornar de figuras os escudos, a acrescentar uma alça de couro a essa arma e a manejá-la por meio de um talabarte de couro, passado pelo pescoço e pelo ombro esquerdo. Muito tempo depois, os Dórios e os Iônios expulsaram os Cários das ilhas, e assim passaram estes para o continente. Eis o que os Cretenses contam dos Cários; mas estes historiam de maneira diferente a própria origem. Dizem ser originários do continente, acreditando não haverem jamais tido nome diferente do que hoje trazem. Mostram também em Milassa um antigo templo dedicado a Júpiter Cário, onde só admitem a presença dos Milésios e dos Lídios, em razão da afinidade que possuem com esses povos. Dizem que Lido e Miso eram irmãos de Caro, de onde a aproximação entre esses povos.

CLXXII - Quanto aos Cáunios, parece-me serem eles autóctones, embora se digam originários de Creta. Se moldaram sua língua pela dos Cários, ou se estes moldaram a sua pela deles, é coisa que não posso afirmar com segurança. Possuem, entretanto, costumes bem diferentes dos dos Cários e de todos os demais povos. Constitui entre eles ato muito honesto o reunirem-se para beber, homens, mulheres e crianças, pela ordem da idade ou grau de amizade. Prestavam culto aos deuses estrangeiros, mas, mudando de sentimento, resolveram não mais se dirigirem a nenhuma divindade senão às do país. Todos os jovens cáunios, munidos de armas e terçando no ar as lanças, arrastaram até as fronteiras as estátuas dos deuses estrangeiros, proclamando que os estavam expulsando.

CLXXIII - Os Lícios, originários de Creta, remontam à mais alta antigüidade. Desde os tempos mais recuados, a ilha inteira se achava completamente ocupada pelos bárbaros. Sarpédon e Minos, filhos de Europa, disputaram entre si a soberania. Minos levou a melhor e Sarpédon foi expulso com todos os seus partidários, indo ter à Milíada, cantão da Ásia - o país que hoje habitam os Lícios chamava-se outrora Milíada, e os Mílios tinham o nome de Sólimos. Durante o tempo em que Sarpédon reinou sobre eles, eram chamados Térmilos; mas, tendo Lico, filho de Pandíon, sido expulso de Atenas pelo seu irmão Egeu e procurado refúgio entre os Térmilos, junto a Sarpédon, esse povo passou a chamar-se, com o tempo, Lícios, por causa do nome do referido príncipe. Seguem os Lícios, em parte, os costumes de Creta, e em parte, os da Cária. Possuem um, entretanto, que lhes é muito peculiar: adotam o nome da mãe em lugar do do pai. Se perguntarmos a um Lício a que família pertence, ele dá-nos a genealogia da mãe e dos antepassados da mãe. Se uma mulher de condição livre desposa um escravo, os filhos são considerados nobres. Se, ao contrário, um cidadão, mesmo da mais elevada categoria, desposa uma estrangeira ou uma concubina, os filhos são espúrios.

CLXXIV - Os Cários foram submetidos por Hárpago sem nada terem feito de memorável. E não somente eles. Todos os Gregos que habitavam esse país coisa alguma fizeram que os distinguisse. Figuram ainda nesse número os Cnídios, colonos da Lacedemônia, cujo país, voltado para o mar, forma um promontório chamado Triópio, onde começa a Bibássia. Toda a Cnídia, excetuando uma pequena nesga, é cercada pelo mar: ao norte, pelo golfo Cerâmico; ao sul, pelo mar de Sima e de Rodes. Foi essa estreita faixa de terra, cuja extensão não ia além de cinco estádios, que os Cnídios, querendo, para sua maior segurança, isolar seu país do continente, transformando-o numa ilha, puseram-se a cavar enquanto Hárpago se achava ocupado com a conquista da Iônia. Empregaram grande número de trabalhadores nessa empresa, mas os estilhaços de pedra começaram a feri-los de um modo tão extraordinário nas diferentes partes do corpo e, principalmente, nos olhos, que pareciam revelar uma intervenção divina. Mandando perguntar a Delfos que força se opunha aos seus esforços, a pitonisa respondeu-lhes nestes termos: "Não cavai e nem fortificai o istmo. Júpiter teria feito de vosso país uma ilha, se tal tivesse sido a sua vontade". Ante essa resposta, os Cnídios deixaram de cavar, e quando Hárpago se apresentou diante deles, renderam-se sem combater.

CLXXV - Os Pedásios habitam uma região central, ao norte de Halicarnasso. Todas as vezes que esses povos e seus vizinhos são ameaçados por uma desgraça, uma longa barba cresce na sacerdotisa de Minerva. Esse fato extraordinário aconteceu três vezes. Os Pedásios foram os únicos povos da Cária a resistir durante muito tempo a Hárpago, causando-lhe inúmeros embaraços com a fortificação da montanha de Lida, mas acabaram sendo subjugados.

CLXXVI - Os Lícios foram ao encontro de Hárpago logo que ele apareceu à frente do seu exército nas planícies de Xanto. Embora não fossem mais do que um punhado de homens em relação ao inimigo, bateram-se valorosamente; mas perdendo a batalha e vendo-se forçados a entrincheirar-se nas muralhas, levaram para a cidadela suas riquezas e, reunindo as mulheres, os filhos e os escravos, fizeram uma fogueira e reduziram a praça a cinzas com tudo o que ali se achava. Tendo, depois disso, selado um pacto pelo juramento mais terrível, realizaram uma sortida contra o invasor e pereceram todos em combate. Assim, a maior parte dos Lícios que existem hoje e denominados Xântios é composta de estrangeiros, com exceção de oitenta famílias que, por se acharem afastadas da pátria, escaparam à ruína comum. Assim foi tomada a cidade de Xanto. Hárpago apoderou-se da de Cauno quase da mesma maneira, pois os Cáunios seguiram, em grande parte, o exemplo dos Lícios.

CLXXVII - Enquanto Hárpago devastava a Ásia Menor, Ciro, em pessoa, subjugava todas as nações da Ásia Superior, sem exceção de nenhuma. Nada direi sobre a maioria delas, contentando-me em falar das que lhe deram mais trabalho e mais merecedoras de um lugar na história. Quando o príncipe colocou sob o seu domínio todo o continente, pensou em ir atacar os Assírios.

CLXXVIII - A Assíria possui várias cidades importantes, mas Babilônia é a mais célebre e a mais forte de todas. Ali os reis do país haviam fixado residência desde a destruição de Nínive. A cidade, situada numa grande planície, forma um quadrado com cento e vinte estádios de cada lado. É de uma tal magnificência, que não conhecemos outra capaz de com ela comparar-se. Um fosso largo, profundo e cheio de água circunda-a, erguendo-se adiante uma muralha de cinqüenta "côvados de rei" de espessura (o côvado de rei é três dedos maior do que o comum).

CLXXIX - Vem a propósito acrescentar ao que acabo de dizer, o emprego que se deu à terra retirada do fosso circular e de que maneira foi construída a muralha. À medida que os construtores cavavam o fosso, convertiam a terra em tijolos, e quando já haviam reunido uma grande quantidade destes, levaram-nos ao forno. Em seguida, à guisa de cimento utilizavam o betume quente, e de trinta em trinta camadas de tijolos punham redes de caniços entrelaçados. Construíram primeiramente, por esse processo, as bordas do fosso. Passaram, em seguida, para as muralhas, construindo-as da mesma maneira. No alto e nas bordas da muralha ergueram-se torres de um único andar, umas diante das outras, entre as quais havia espaço suficiente para dar passagem a um carro puxado por quatro cavalos. Cem portas de bronze maciço completavam a monumental obra. A oito dias de Babilônia fica a cidade de Is, situada à margem de um pequeno rio do mesmo nome e que desemboca no Eufrates. Esse rio arrasta em suas águas grande quantidade de betume, o mesmo utilizado para cimentar os muros de Babilônia.

CLXXX - O Eufrates corta a cidade pelo meio, dividindo-a em dois quarteirões. O rio é grande, profundo e rápido; vem da Armênia e desemboca no mar Eritreu. Algumas das muralhas formam verdadeiros cotovelos sobre o rio, e é desse ponto que parte um muro de tijolos, bordejando o Eufrates. As casas são de três a quatro andares e as ruas retas e cortadas por outras que vão ter ao rio. Frente a estas últimas abriram-se no muro que corre ao longo do rio, pequenas portas, por onde se desce até as margens. Há tantas portas quantas ruas transversais.

CLXXXI - O muro exterior serve de defesa; o interior não é menos resistente, porém mais estreito. A parte central dos dois quarteirões é digna de nota: no primeiro encontra-se o palácio do rei, cujo recinto vasto se acha bem fortificado; no outro, o templo consagrado a Júpiter Belo, cujas portas de bronze ainda hoje subsistem. É um quadrado com dois estádios de largura, no meio do qual se ergue uma torre maciça de um estádio de comprimento por outro de largura. Sobre essa torre eleva-se outra, e sobre essa segunda, outra ainda, e assim por diante até completar oito. Do lado de fora construiu-se uma escada em caracol, que dá acesso às oito torres. Essa escada é provida de postos de parada, com cadeiras para descanso dos que sobem. Na última torre encontra-se uma grande capela, e nesta um amplo e bem guarnecido leito, tendo ao lado uma mesa de ouro. Não se vêem estátuas. Ninguém ali passa a noite, a menos que seja alguma filha da terra, eleita pela divindade, como dizem os Caldeus, sacerdotes dessa divindade.

CLXXXII - Esses sacerdotes afirmam que o deus vem em pessoa à capela e repousa no leito, o que não me parece crível. Coisa idêntica se dá em Tebas, no Egito, a acreditar no que dizem os Egípcios, pois ali também se deita uma mulher no templo de Júpiter Tebano. Dizem que tanto esta como aquela não têm relações com nenhum homem. Ainda o mesmo acontece em Pátaros, na Lícia, quando o deus honra a cidade com a sua presença. A sacerdotisa encerra-se durante a noite no templo, e não se dão oráculos enquanto o deus ali permanece.

CLXXXIII - Na parte inferior do templo de Babilônia há outra capela, onde se vê uma grande estátua de ouro representando Júpiter sentado. Ao lado, uma grande mesa de ouro. O trono e o escabelo são do mesmo metal. Tudo isso, segundo informações dos Caldeus, pesa oitocentos talentos de ouro. Vê-se também, fora da capela, um altar de ouro, e ao lado desse, outro de grandes dimensões, onde se sacrifica o gado adulto, pois no de ouro só é permitido sacrificar cordeiros ainda não desmamados. Os Caldeus queimam também no grande altar, todos os anos, por ocasião das festas em honra do deus, mil talentos de incenso. Havia ainda naquele templo, no recinto sagrado, uma estátua de ouro maciço de doze côvados de altura. Não a vi, contentando-me, portanto, a repetir o que dizem os Caldeus. Dario, filho de Histaspes, forjou um plano para apropriar-se dela, mas não ousou executá-lo. Xerxes, filho de Dario, matou o sacerdote que a ele se opôs nessa empresa e apoderou-se da estátua. Tais são as riquezas do templo, onde se vêem também muitas oferendas particulares.

CLXXXIV - Babilônia teve um grande número de reis. Em minha "História da Assíria" mencionarei os que embelezaram as muralhas e os templos, e, entre outros, duas mulheres. A primeira precedeu de cinco gerações a outra e chamava-se Semíramis. Foi ela quem mandou construir os diques colossais que contêm o Eufrates no leito, impedindo-o de inundar os campos, como acontecia outrora.

CLXXXV - A segunda rainha, Nitócris, era mais prudente que a primeira. Entre as suas obras memoráveis, destaca-se a seguinte: Tendo notado que os Medos, tornando-se poderosos, não podiam permanecer inativos e iam conquistando cidades após cidades, inclusive Nínive, resolveu fortificar, tanto quanto possível, seu reino, prevenindo-se contra qualquer ataque. Foi assim que, como primeira medida de defesa, mandou abrir canais ao norte de Babilônia, de que resultou tornar-se o Eufrates, que atravessa a cidade pelo meio, oblíquo e tortuoso, a ponto de passar três vezes por Arderica, burgo da Assíria; e, ainda agora, os que descem o rio em direção a Babilônia passam pelo referido burgo três vezes em três dias.

Nitócris mandou erguer em seguida, de cada lado da cidade, uma cerca monumental, tanto pela largura como pela altura. Mais distante, ao norte da Babilônia, a pequena distância do rio, mandou cavar um lago destinado a receber o excesso das águas do Eufrates nas cheias. Esse lago media quatrocentos e vinte estádios de circunferência, e quanto à profundidade, sabe-se que cavaram até encontrar água. A terra retirada dali serviu para elevar as ribanceiras do rio. Terminada a abertura do lago, revestiram-lhe as margens de pedras. Essas duas obras tinham por fim tornar mais lento o curso do rio, quebrando-lhe o ímpeto por um grande número de sinuosidades, e obrigar os que se dirigiam a Babilônia por via fluvial, a fazer várias voltas, forçando-os ainda, no fim do trajeto, a seguir o vasto contorno do reservatório. Realizou Nitócris esses trabalhos naquela parte de seus estados mais exposta às incursões dos Medos e do lado onde eles dispõem de caminho mais curto para penetrar na Assíria, a fim de que, não mantendo comércio com os Assírios, eles não pudessem tomar conhecimento dos seus negócios.

CLXXXVI - Concluídas essas obras, atirou-se a rainha a nova iniciativa: Babilônia está dividida em duas partes, e o Eufrates corta-a pelo meio. Nos reinados anteriores, quando se queria ir de um lado a outro da cidade era necessário atravessar o rio de barca, o que não deixava de ser muito incômodo. Atendendo a isso, Nitócris, terminada a construção do lago, empreendeu uma obra digna de admiração. Fez talhar grandes pedras e, quando estas estavam prontas, desviou as águas do Eufrates para o lago. Enquanto este enchia, o rio secava. Mandou então revestir as margens de tijolos, assim como as rampas que iam das pequenas portas ao rio, servindo-se do mesmo processo empregado na construção das muralhas. Mandou erguer também, no centro da cidade, uma ponte de pedras ligadas com ferro e chumbo. Durante o dia, passava-se sobre peças de madeira quadradas, que eram retiradas à noite, para evitar que os habitantes, andando na escuridão, roubassem uns aos outros. Desviadas para o lago as águas do rio, teve início a construção da ponte. Terminada esta, a corrente foi devolvida ao seu antigo leito. O terreno cavado tornou-se um verdadeiro pântano, cuja utilidade os Babilônios reconheceram construindo também uma ponte sobre ele, para utilizá-lo como julgassem necessário.

CLXXXVII - Eis a manobra imaginada ainda por essa rainha: Mandou erguer um mausoléu sobre um dos portões mais freqüentados da cidade, com a seguinte inscrição: "Se a algum dos reis que me sucederem em Babilônia vier a faltar dinheiro, abra ele este sepulcro e lance mão de quanto desejar; mas deve evitar abri-lo por outros motivos, pois, se não tiver do dinheiro grande necessidade, poderá arrepender-se disso".

O túmulo permaneceu intacto até o reinado de Dario. Este príncipe, indignando-se por não haver ninguém, até ali, feito uso da porta e de não ter lançado mão do dinheiro em depósito (os habitantes não se serviam da porta para não passar sob um cadáver), mandou abrir o sarcófago, encontrando apenas o corpo de Nitócris com esta inscrição: "Se não fosses insaciável de dinheiro e ávido de ganho inconfessável, não terias aberto o túmulo dos mortos".

CLXXXVIII - Foi contra o filho de Nitócris que Ciro lançou suas tropas. Era o primeiro rei da Assíria e chamava-se, como o pai, Labineto. O grande rei não se pôs em marcha sem levar consigo grande quantidade de víveres e gado. Levou também um carregamento de água do Choaspe, que corre em direção a Susa, pois não bebia outra. A água, fervida e depositada em jarros de prata, era transportada em carros de quatro rodas, puxados por mulas.

CLXXXIX - Ciro, marchando contra Babilônia, chegou às margens do Gindo. Este rio nasce nos montes Macianos, e depois de atravessar o país dos Dardaneus deságua no Tigre, que passa ao longo da cidade de Ópis e desemboca, por sua vez, no mar de Eritréia. Enquanto Ciro procurava atravessar o Gindo (não pôde fazê-lo em barcas), um dos seus cavalos brancos, considerados sagrados, impelido pelo ardor, saltou na água e esforçou-se por ganhar a margem oposta; mas a forte correnteza arrastou-o, afogando-o. Ciro, indignado com a afronta do rio, ameaçou-o de torná-lo tão fraco que, dali em diante, até as mulheres poderiam atravessá-lo sem molhar os joelhos. Assim dizendo, suspendeu a expedição contra Babilônia, dividiu o exército em dois corpos, traçou com uma corda, ao longo do rio, cento e oitenta canais em diversos sentidos, fazendo, em seguida, cavá-los pelas tropas. Conseguiu realizar tão vultosa empresa por haver empregado um número imenso de soldados, mas isso lhe ocupou as tropas durante todo o Verão.

CXC - Tendo-se vingado do Gindo cortando-o em trezentos e sessenta canais, continuou a marcha para Babilônia ao anunciar-se a segunda Primavera. Os Babilônios, pondo suas tropas em campo, esperaram de pé firme. Mal o inimigo apareceu nas vizinhanças da cidade, deram-lhe batalha, mas, batidos, encerraram-se atrás das muralhas.

Como sabiam, de longa data, que Ciro não ficaria sossegado e que atacaria igualmente todas as nações, os Babilônios haviam reunido de antemão provisões para muitos anos. Por conseguinte, o cerco não os inquietava de maneira alguma. Ciro encontrava-se em grande embaraço: cercava a praça há muito tempo e não tinha conseguido outra vantagem que a do primeiro dia.

CXCI - Finalmente, ou porque concluísse por si mesmo sobre o que devia fazer, ou porque alguém, vendo-o em dificuldades, o aconselhasse, o príncipe tomou a seguinte resolução: Colocou o exército, parte no ponto onde o Eufrates penetra na Babilônia, parte no local onde o rio deixa o país, com ordem de invadir a cidade pelo leito do mesmo, logo se tornasse vadeável. Com o exército assim distribuído, dirigiu-se para o lago com algumas tropas menos aguerridas. Ali chegando, a exemplo do que fizera a rainha Nitócris, desviou as águas do rio para o lago pelo canal de comunicação. As águas se escoaram, e o leito do rio facilitou a passagem. Sem perda de tempo, os Persas postados nas margens entraram na cidade, com as águas do rio dando apenas pelas coxas. Se os Babilônios tivessem sido instruídos com antecedência sobre o propósito de Ciro, ou se o percebessem no momento da execução, poderiam ter feito perecer todo o exército, evitando a invasão da cidade; bastaria fechar as portas que conduzem ao rio e atacá-lo do muro marginal; os soldados seriam apanhados como peixes na rede. A verdade é que os Persas surgiram quando eram menos esperados, e, a acreditar no depoimento dos Babilônios, quando os pontos extremos da cidade já se achavam em poder do inimigo, os defensores que se encontravam na parte central ainda não tinham conhecimento disso, tão grande era ela. No momento em que se deu a invasão, os Babilônios estavam realizando um festim, e, longe de imaginar que um perigo iminente os ameaçava, entregavam-se aos prazeres e às danças. Quando se inteiraram da situação, era demasiado tarde. Assim Babilônia foi tomada pela primeira vez.

CXCII - Entre outras provas do poderio dos Babilônios, às quais me reportarei em seguida, insisto nesta: Em todo o território do grande rei, o imposto pago era redistribuído entre os diversos distritos para a manutenção da casa real e do exército. Ora, Babilônia faz essa despesa durante quatro dos doze meses de que se compõe o ano, restando apenas oito para as contribuições do resto da Ásia. A Babilônia corresponde, pois, em riqueza, a um terço da Ásia. O governo dessa província (os Persas dão o nome de satrapias a tais governos) era o melhor de todos. Mantinha ela ainda para o rei, em caráter particular e sem contar os cavalos de guerra, um haras de oitocentos reprodutores e dezesseis mil éguas, de maneira que a cada reprodutor cabiam vinte éguas. Criava-se também ali grande quantidade de cães indianos. Quatro grandes burgos situados na planície estavam encarregados de alimentá-los e isentos, por isso, de qualquer outro tributo. Tais os proventos que o rei retirava de Babilônia.

CXCIII - As chuvas não são freqüentes na Assíria. A água do rio alimenta a semente e desenvolve a messe, não como o Nilo, estendendo-se pelos campos, mas pelo trabalho humano e por meio de máquinas; pois a Babilônia é, à semelhança do Egito, inteiramente cortada de canais, o maior dos quais comporta até navios. De todos os países que conhecemos, é esse, sem dúvida alguma, o mais fértil. Ali não se cultivam árvores; ali não se vêem nem a figueira, nem a videira, nem a oliveira. Em compensação, a terra se presta ao plantio de toda espécie de sementes, desenvolvendo-as na proporção de duzentas por uma, e até de trezentas em alguns anos. Ás folhas da aveia e do centeio chegam a quatro dedos de largura. Embora eu não ignore a altura que ali atingem as hastes do milho e do sésamo, prefiro nada dizer sobre isso, pois sei que os que ainda não estiveram na Babilônia poderão dizer que estou exagerando. Os Babilônios não se servem do óleo extraído do sésamo. A planície em que se estende o país está coberta de palmeiras, a maioria das quais produz frutos; uns utilizados na alimentação e outros na fabricação do vinho e do mel. A palmeira é ali cultivada da maneira que cultivamos a figueira.

CXCIV - Vou falar de outra maravilha que, depois da cidade, é a maior de todas as que encerra o país: os barcos utilizados para descer o rio até Babilônia, feitos de peles e de formato arredondado. Esses barcos são fabricados em uma parte da Armênia, ao norte da Assíria. A carena é feita de salgueiro, e os varais são revestidos exteriormente com peles, emprestando-lhes a configuração de uma prancha. As extremidades são arredondadas como um escudo, não se distinguindo a popa da proa, e o fundo enchem-no de palha. Depois de construídos, são lançados na correnteza do rio carregados de mercadorias e, principalmente, de vinho de palmeira. Dois homens o dirigem com dois remos, manejados um do lado de dentro e outro do lado de fora. Esses barcos variam em tamanho, podendo os maiores comportar até cinco mil talentos de peso. Os menores podem transportar um asno, e os maiores, vários deles. Quando os tripulantes chegam a Babilônia e vendem a mercadoria, põem também à venda os varais e a palha. Carregam depois os asnos com as peles e voltam para a Armênia, tangendo-os pela estrada.

CXCV - Quanto aos trajes, usam os Babilônios uma túnica de linho que vai até os pés, e, por cima, outra de lã, envolvendo-se, em seguida, num manto branco. O calçado em moda no país assemelha-se aos dos Beócios. Deixam crescer o cabelo, cobrem a cabeça com uma espécie de mitra e impregnam o corpo de perfume. Trazem, cada qual, um sinete e um bastão trabalhado a mão, com o cabo em forma de maçã, de rosa, de lírio ou de um objeto qualquer, pois não lhes é permitido usar bengala ou bastão sem um ornamento característico. Tal a sua indumentária. Passemos às leis.

CXCVI - A mais sábia de todas, na minha opinião, é a que vigorava entre os Vênetos, povo da Ilíria: em cada burgo, os que possuíam filhas núbeis levavam-nas, todos os anos, a um certo lugar, onde se reunia em torno delas grande quantidade de homens. Um leiloeiro apregoava-as e vendia-as, uma após outra. Começava sempre pela mais bela, e depois de haver obtido boa soma por ela, passava a apregoar a que se lhe aproximava em beleza, e assim por diante. Só as vendia, porém, com a condição de os compradores desposá-las. Todos os Babilônios ricos e em idade de casamento para lá se dirigiam, fazendo suas ofertas. Quanto à gente do povo que desejava casar-se, como pouca pretensão tinha de desposar belas criaturas, arrematava as mais feias com o dinheiro que davam a estas. Com efeito, mal o leiloeiro terminava a venda das belas, erguia uma das mais feias ou uma das estropiadas, se as houvesse, e apregoando-a pelo mais baixo preço, perguntava quem queria desposá-la como condição essencial, adjudicando-a àquele que o prometesse. Assim, o dinheiro proveniente da venda das belas servia para fazer casar as feias e as estropiadas. Não era permitido ao pai escolher esposo para a filha, e quem comprava uma moça não podia conduzi-la para casa sem a fiança de casamento. Só quando encontrava fiadores tinha o direito de levá-la dali, e se não encontrava, a lei mandava que lhe devolvessem o dinheiro. Era também permitido, indistintamente, aos habitantes de outros burgos, comparecer ao leilão e arrematar as moças.

Esta lei, tão sabiamente instituída, não subsiste mais. De uns tempos para cá imaginaram outro meio para prevenir os maus tratos que pudessem ser infligidos às mulheres e impedir que elas fossem levadas para outra cidade. Depois da tomada de Babilônia e das brutalidades sofridas pelos habitantes, os Babilônios perderam seus bens, e não há mais ninguém que, ao ver-se na indigência, não prostitua as filhas por dinheiro.

CXCVII - Depois do costume concernente ao casamento, o mais sábio é o que diz respeito aos doentes. Como não há médicos no país, os doentes são transportados para a praça pública, e os transeuntes deles se acercam. Os que já tiveram a mesma doença ou conheceram alguém que a tivesse acodem o enfermo com os seus conselhos, exortando-o a fazer o que eles próprios fizeram ou viram outros fazer para curar-se. Não é permitido passar perto de um doente sem inquirir do seu mal.

CXCVIII - Os Babilônios costumam untar os mortos de mel; mas o luto se assemelha muito ao dos Egípcios. Todas as vezes que um babilônio tem relações com a sua mulher, queima essências e senta-se num canto para purificar-se, fazendo a mulher o mesmo. Ao raiar do dia, tomam seu banho, pois não lhes é permitido tocar em nenhum móvel sem se lavarem. Os Árabes observam o mesmo costume.

CXCIX - Os Babilônios possuem, todavia, uma lei vergonhosa: Toda mulher nascida no país é obrigada, uma vez na vida, a ir ao templo de Vênus para entregar-se a um estrangeiro. Muitas dentre elas, não querendo confundir-se com as outras pelo orgulho que lhes inspira a riqueza, dirigem-se ao templo em carro coberto. Lá permanecem sentadas, tendo atrás de si grande número de criados; mas a maioria senta-se no recinto sagrado, com a cabeça cingida por uma corda. Quando umas chegam, as outras se retiram. Vêem-se, em todos os sentidos, alas separadas por cordas estendidas. Os estrangeiros passeiam por entre as alas e escolhem as mulheres que mais lhes agradam. Quando uma mulher toma lugar ali, não pode voltar para casa senão depois que algum estrangeiro lhe atire dinheiro aos joelhos e tenha relações com ela, fora do recinto sagrado. É preciso que o estrangeiro, ao atirar-lhe o dinheiro, diga-lhe: "Invoco a deusa Milita" (os Assírios dão a Vênus o nome de Milita). Por muito módica que seja a soma, o estrangeiro não encontrará recusa; a lei proíbe tal coisa, pois o dinheiro se torna sagrado. A mulher segue o primeiro que lhe atira dinheiro, pois não pode recusar quem quer que o faça. Finalmente, depois de haver-se desobrigado do dever para com a deusa, entregando-se ao forasteiro, regressa ao lar. Depois disso, ela não mais se deixa seduzir por dinheiro algum. As que possuem um belo corpo ou um belo rosto não fazem longa permanência no templo, mas as feias esperam, às vezes, três ou quatro anos, antes que possam cumprir a lei. Costume mais ou menos semelhante observa-se em certos lugares da ilha de Chipre.

CC - Tais são as leis e os costumes dos Babilônios. Há, entre eles, três tribos que se alimentam única e exclusivamente de peixes. Quando os pescam, fazem-nos secar ao sol, amassam-nos num pilão e passam-nos, depois, num pano, comendo-os em forma de bolos ou cozidos como pães. Preparam os peixes ainda de outras formas, porém estas são as mais comuns.

CCI - Quando Ciro subjugou esse país, veio-lhe o desejo de dominar os Masságetas. Dizem que esses povos formam uma nação considerável e que são bravos e corajosos. Habitam um país a leste, além do Araxo, vizinho aos Issédons. Alguns afirmam serem eles descendentes dos Citas.

CCII - O Araxo, segundo certos informantes, é maior que o Íster; segundo outros, é menor. Dizem haver nesse rio muitas ilhas cujo tamanho se aproxima do da de Lesbos, e que os povos que as habitam alimentam-se, no Verão, de diversas espécies de raízes, reservando para o Inverno os frutos maduros, colhidos nas árvores. Dizem também que eles descobriram uma árvore, cujo fruto deitam ao fogo, em torno do qual se reúnem para aspirar-lhe o vapor. Esse vapor os embriaga, como o vinho aos Gregos; e quanto mais frutos atiram ao fogo, mais se embriagam, até o momento em que se levantam e se põem todos a cantar e a dançar. Quanto ao Araxo, vem ele do país dos Macianos, onde corre também o Gindo, reduzido por Ciro a trezentos e sessenta canais. O Araxo divide-se em quarenta braços, na foz, e todos esses braços, com exceção de um, vão ter a pântanos e lagunas onde, ao que dizem, vivem homens que se alimentam de peixe cru e se vestem de pele de veados marinhos. Apenas um braço do Araxo corre livremente até o mar Cáspio. Esse mar apresenta como principal característica não ter comunicação com nenhum outro mar. Todos os outros mares onde navegam os Gregos, bem como o que se estende para além das colunas de Hércules e que se denomina Atlântida, e o da Eritréia, formam, juntos, um só oceano.

CCIII - O Cáspio é um mar isolado e bem diferente de qualquer outro. Um navio, costeando-o, pode percorrê-lo em apenas quinze dias, e em sua maior largura leva oito dias. O Cáucaso margina-o do lado do Ocidente. É esse, talvez, o maior de todos os sistemas de montanhas, quer em extensão, quer em altitude, sendo habitado por diversos povos, que se alimentam, na sua maioria, de frutos selvagens. Assegura-se possuírem eles uma espécie de árvore cujas folhas, pisadas e deitadas n’água, produzem uma tinta com a qual pintam nos trajes figuras de animais. A água não apaga, absolutamente, essas figuras, que ali se gravam como se fossem tecidas, não desbotando senão com o desgaste da própria fazenda. Afirma-se também que esses povos praticam publicamente o coito, como os animais irracionais.

CCIV - O mar Cáspio é limitado a oeste pelo Cáucaso e a leste por uma planície que se estende a perder de vista. Os Masságetas, a quem Ciro decidiu guerrear, ocupam a maior parte dessa vasta planície. Importantes considerações levaram o príncipe a essa guerra. A primeira, a convicção de haver qualquer coisa de sobrenatural no seu nascimento; a segunda, a sorte que sempre o acompanhara em todas as campanhas, pois, em toda parte onde levara suas armas, sempre lograra êxito.

CCV - Tómiris, viúva do último rei, era quem governava os Masságetas nessa ocasião. Ciro enviou-lhe embaixadores, sob o pretexto de lhe propor casamento; mas a rainha, compreendendo estar ele mais apaixonado pela sua coroa do que por ela própria, proibiu-lhe a entrada no país. Vendo o malogro de tais artifícios, Ciro resolveu marchar abertamente contra os Masságetas, avançando até o Araxo. Lançou uma ponte sobre o rio para facilitar a passagem e fez erguer torres sobre os batéis destinados à travessia das tropas.

CCVI - Enquanto se achava ocupado com esses trabalhos, Tómiris enviou-lhe um emissário, ao qual encarregou de fazer-lhe esta advertência: "Rei dos Medos, cessa de apressar uma empresa que ignoras se será bem sucedida e contenta-te em reinar sobre os teus súditos, deixando-nos reinar tranqüilamente sobre os nossos. Se não queres seguir os meus conselhos; se preferes a luta ao sossego, enfim, se tens tanto desejo de medir forças com os Masságetas, desmancha essa ponte que começaste. Nós nos retiraremos a uma distância de três dias do rio, a fim de te dar tempo de passar e penetrar no nosso país; ou, se preferes receber-nos no teu, faze como nós".

Ciro, depois de ouvir o embaixador, convocou seus principais para pedir-lhes sua opinião. Concordaram todos em receber Tómiris com o respectivo exército.

CCVII - Creso, também presente às deliberações, desaprovou o alvitre, propondo outro inteiramente oposto: "Ó rei, - disse ele a Ciro - já te declarei desde o primeiro dia que, me havendo Júpiter entregue ao teu poder, não cessarei de empregar todos os esforços para procurar desviar de sobre tua cabeça as desgraças que porventura te ameacem. As vicissitudes por que tenho passado trouxeram-me boa dose de experiência. Se te acreditas imortal, se julgas comandar um exército de imortais, de nada adiantará revelar-te o meu pensamento; mas se te reconheces também um ser humano, comandando homens como tu, considera, antes de tudo, a mutabilidade das coisas e a contradança da fortuna; imagina a vida uma roda girando sem cessar, não nos permitindo ser sempre felizes. De minha parte, no caso que acaba de ser discutido, sou de opinião inteiramente contrária à dos que te aconselharam. Se recebemos o inimigo em nosso país e ele nos bate, não terás a temer a sorte do teu império? Pois, se os Masságetas levarem vantagem, em vez de voltar para trás, atacarão naturalmente tuas províncias. Desejo a tua vitória; e não será ela mais completa se, depois de haveres batido os inimigos no seu próprio território, não tiveres outra coisa a fazer senão persegui-los? Procurarei fazer valer essa minha opinião, uma vez que, alcançada a vitória, poderás avançar imediatamente até o interior dos estados de Tómiris. Por outro lado, não seria bastante vergonhoso e insuportável para Ciro, filho de Cambises, recuar diante de uma mulher?

Sou de opinião que deves atravessar o rio, avançar à medida que o inimigo se afastar e, em seguida, procurar vencê-lo pelo meio que te vou expor: Os Masságetas, estou bem informado disso, não conhecem o conforto dos Persas, estando privados de todas as comodidades da vida. Que se mate uma boa quantidade de gado e se prepare um banquete, mandando servi-lo no acampamento, juntando-se vinho em abundância e toda sorte de iguarias. Concluídos esses preparativos, deixaremos no acampamento as piores tropas, retirando-nos em direção ao rio com o resto do exército. As forças masságetas, se eu não me enganar, vendo tanta abundância, correrão para ela, e então teremos o momento oportuno para mostrar-lhes o nosso poderio".

CCVIII - Entre as duas sugestões opostas, Ciro optou pela de Creso. Mandou, por conseguinte, dizer a Tómiris que se retirasse, pois tinha o propósito de atravessar o rio. A rainha afastou-se, como ficara convencionado. Ciro declarou seu filho Cambises seu sucessor e, confiando-lhe Creso, recomendou-lhe que louvasse esse príncipe e o cumulasse de benefícios, ainda que a expedição malograsse. Dando essas ordens, enviou-os de volta para a Pérsia e atravessou o rio com seu exército.

CCIX - Ciro transpôs o Araxo e, tendo caído a noite, dormiu no país dos Masságetas. Durante o sono teve esta visão: pareceu-lhe ver o filho mais velho de Histaspes trazendo nos ombros asas, uma das quais cobria toda a Ásia com sua sombra, enquanto a outra cobria a Europa. Esse primogênito de Histaspes, de nome Dario, contava, então, cerca de vinte anos. O pai, filho de Arsamo e da raça dos Aquemênidas, deixara-o na Pérsia porque ele ainda não se achava em idade de manobrar armas.

Refletindo ao despertar sobre o estranho sonho e julgando-o de grande significação, Ciro mandou chamar Histaspes e falou-lhe em particular, dizendo-lhe: "Histaspes, teu filho conspirou contra mim e contra o meu reino. Vou contar-te como vim a sabê-lo, de maneira indubitável. À noite passada vi em sonhos teu primogênito com imensas asas nos ombros, uma das quais cobria a Ásia, enquanto a outra se estendia sobre a Europa. Isso me leva a supor, e com muita razão, que ele está tramando alguma coisa contra mim. Parte, pois, imediatamente para a Pérsia, e quando eu regressar, depois da conquista deste país, quero que o leves à minha presença, a fim de que eu o interrogue".

CCX - Assim falou Ciro, persuadido de que Dario conspirava contra ele; mas o que os deuses pressagiavam com esse sonho era que ele morreria no país dos Masságetas e que sua coroa passaria para a cabeça de Dario. Histaspes, depois de ouvi-lo reverentemente, respondeu-lhe: "Ó rei, os deuses não hão-de permitir que se encontre entre os Persas alguém que pretenda atentar contra a vossa vida; e se existe esse alguém, pereça ele o mais cedo possível. De escravos que eram, vós os tornastes homens livres, e, em lugar de receberem ordens de um senhor, passaram a mandar em todas as nações. Se alguma visão vos deu a entender que meu filho conspira contra vossa pessoa, eu mesmo o entregarei nas vossas mãos para fazerdes dele o que vos aprouver". Após haver dado essa resposta, Histaspes atravessou o Araxo, a fim de assegurar-se sobre o que fazia o filho e entregá-lo ao soberano, caso tramasse realmente contra ele.

CCXI - Ciro, tendo avançado até a distância de um dia de viagem do Araxo, deixou no acampamento suas piores tropas, segundo o conselho de Creso, e retornou ao rio com as mais aguerridas. Os Masságetas vieram atacar, com um terço de suas forças, as tropas que Ciro deixara guardando o acampamento, e passaram-nas a fio de espada depois de alguma resistência. Em seguida, vendo tudo pronto para o repasto, puseram-se à mesa, comeram e beberam a mais não poder, caindo depois em profundo sono. Era o momento azado. Os Persas, surgindo inesperadamente, mataram sem dificuldade grande número de Masságetas, aprisionando os restantes, inclusive o próprio Espargapiso, seu general e filho de Tómiris.

CCXII - A rainha, informada do desastre ocorrido às suas tropas e ao filho, enviou um arauto a Ciro com esta mensagem: "Príncipe sedento de sangue; que este sucesso não te envaideça; não o deves senão à cepa da videira, a esse licor que nos torna insensatos e que nos penetra no corpo para refluir aos lábios em palavras incoerentes. Levaste de vencida meu filho, não numa batalha e pela força das armas, mas pela atração do veneno sedutor. Escuta e segue um bom conselho: devolve o meu filho, e embora tenhas eliminado um terço do meu exército de maneira ultrajante, permitirei ainda que te retires impunemente dos meus estados. Se não o fizeres, juro-te pelo Sol, senhor dos Masságetas, que te saciarei de sangue, por mais sedento que dele estejas".

CCXIII - Ciro não deu a mínima importância a essa exortação. Quanto a Espargapiso, voltando a si da embriaguez e tomando conhecimento da lamentável situação em que se encontrava, pediu a Ciro que lhe tirasse as cadeias, e, logo que se viu em liberdade, matou-se. Tal foi o fim do jovem príncipe.

CCXIV - Tómiris, informada de que Ciro repelira sua proposta, reuniu todas as suas forças e ofereceu-lhe combate. A batalha foi, creio eu, a mais famosa até hoje travada entre bárbaros. Tentarei descrevê-la apoiado em informações a mim prestadas: Os dois exércitos rivais lançaram primeiramente flechas à distância; esgotadas as flechas, chocaram-se numa carga de azagaias e punhais. Combateram durante muito tempo, de pé firme, com vantagens equivalentes de ambos os lados e sem que nenhum recuasse. Afinal, a vitória decidiu-se pelos Masságetas. A maior parte do exército persa pereceu no local, e o próprio Ciro perdeu a vida no combate, depois de haver reinado vinte e nove anos. Tómiris, mandando procurar o corpo do soberano entre os mortos, profanou-o, e mergulhando-lhe a cabeça num balde de sangue, disse: "Embora esteja eu viva e vitoriosa, tu me desgraçaste fazendo meu filho perecer por um cobarde estratagema; mas eu te saciarei de sangue, como te prometi". Há quem relate de maneira diversa a morte de Ciro. Adotei a versão que me pareceu mais verossímil{6}.

CCXV - Os Masságetas vestem-se como os Citas e a estes se assemelham na maneira de viver. Combatem a pé e a cavalo, com igual perícia e sucesso. São archeiros e lanceiros, trazendo também sagaras{7}. Utilizam o ouro e o cobre numa infinidade de objetos. Empregam o cobre na confecção das lanças, das pontas das flechas e das sagaras, e reservam o ouro para ornar os capacetes, os escudos e os seus largos cintos - que vão até a altura das axilas. As couraças que guarnecem o peito de seus cavalos são de cobre. O ferro e a prata não são utilizados entre eles e nem mesmo existem no país, enquanto que o ouro e o cobre são encontrados ali em abundância.

CCXVI - Passemos aos seus costumes. Desposam, cada qual, uma mulher, mas fazem uso comum das esposas. É entre os Masságetas que se verifica esse costume, e não entre os Citas, como pretendem os Gregos. Quando um masságeta se apaixona por uma mulher, tem o direito de aproveitar-se dela à vontade. Não estabelecem limites para a vida, mas quando um homem chega a uma idade muito avançada e fica aniquilado pela velhice, os parentes reúnem-se e sacrificam-no com o gado. Cozinham-lhe depois a carne e regalam-se com ela. Esse gênero de morte passa, entre esses povos, como o mais feliz. Não comem quem morre de doença; enterram-no e lamentam-no por não haver atingido a idade do sacrifício.

Não plantam e vivem exclusivamente dos seus rebanhos e dos peixes que o Araxo lhes fornece em abundância. O leite é sua bebida comum. De todos os deuses, é o Sol o único que adoram. Sacrificam-lhe cavalos, porque julgam acertado sacrificar ao mais veloz dos deuses o mais veloz dos animais. Ler o livro 2, ou ir para o Índice dos livros.

Postar um comentário

0 Comentários