COMENTÁRIOS DE CARLOS JÚLIO CÉSAR À GUERRA DA GÁLIA
Livro I - Livro II - Livro III - Livro IV - Livro V - Livro VI - Livro VII - Livro VIII
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ARGUMENTO
Cesar ordena que se apreste na Galia uma poderosa armada; e dirigindo-se ao Ilirico, contém os Pirustes no dever c. 1. De volta à Galia, compõe as perturbações entre os Treviros, castiga a Dunorix c. 2-7, e passa de novo à Britania c. 8-11, cuja descrição faz c. 12-14, e onde é bem sucedido na guerra com os insulares c. 15-22. Depois de seu regresso, rebela-se a mor parte dos Gauleses, exterminando-lhe os Eburões os tenentes Sabino e Cota com a legião c. 23-37. Os Nervios com os Aduatucos e Eburões atacam vigorosamente os arraiais de Q. Ciceco c. 38-48. São derrotados por Cesar c. 49-51. Os Senões e os Treviros maquinam, no entanto, novas rebeliões; mas, morto Induciomaro, fica a Galia um pouco mais sossegada c. 52-58.
I - No consulado de Lucio Domicio e Apio Claudio, ao retirar-se dos quartéis de inverno para Itália como costumava todos os anos, ordena Cesar aos tenentes seus, que prepusera as legiões, intendam em construir durante o inverno o maior número de navios possível, e em reparar os velhos. Determina o tamanho e a forma dos vasos. Para podê-los carregar, e varar em terra com presteza, fá-los um pouco mais rasos, que os de que nos servimos em nosso mar; e sabendo serem as vagas menores no Oceano em razão de contínuo movimento das marés, para o transporte das bagagens e quantidade de bestas, um pouco mais largos que os que empregamos em outros mares. Ordena sejam todos de vela e remo, ao que muito se presta o serem pouco alterosos. Manda vir de Espanha tudo o que era necessário para aparelhá-los. Terminadas as juntas da Galia citerior, dirige-se ao Ilírico, por ter notícia de que estava sendo a fronteira da província devastada pelos Pirustes. À sua chegada ali, ordena às cidades que alistem soldados designando lugar para se eles reunirem. A esta nova, mandam-lhe os Pirustes embaixadores a dizer que nada do que houve, fora feito por consenso da cidade, assegurando-lhe que estavam prontos a dar-lhe satisfação por toda e qualquer forma. Aceitando-lhes a escusa, exige Cesar reféns, determinando que lhe sejam trazidos em dia aprazado, e declarando-lhes que, se o não cumprissem, lhes havia de fazer guerra. Trazidos estes no dia marcado, como determinara, nomeia árbitros dentre as cidades para avaliarem o dano causado, e regularem a indenização.
II - Regulado isto, e terminadas as juntas, volta à Galia citerior donde parte para o exército. A sua chegada ali, percorrendo todos os quartéis de inverno, acha prontos, por singular diligência dos soldados, e quando havia penúria de tudo, cerca de seicentos navios de transporte das dimensões mencionadas, e vinte oito de guerra, sem faltar muito para serem todos lançados ao mar em poucos dias. Louvados os soldados, e os encarregados da comissão, mostra quanto importa fazer, e manda reunirem-se todos no porto Iccio, donde sabia ser o trajeto para a Britania o mais cômodo, por demorar ela aí cerca de trinta mil passos do continente. Deixando para isto o que lhe pareceu conveniente de soldados, marcha com quatro legiões expeditas e oitocentos cavalos para as fronteiras dos Treviros, que se mostravam desobedientes, recusando vir às reuniões, e eram denunciados de solicitar os Germanos dalém Rim.
III - Dentre todas as da Galia é esta a cidade mais poderosa em cavalaria: toca, como dissemos, no Rim. Disputavam-se nela o poder supremo dois cabecilhas, Induciomaro e Cingetorix. O segundo, mal constou a chegada de Cesar e das legiões, veio ter com este, asseverando que, fiéis à aliança romana, permaneceriam no dever ele e os seus, e o informou de tudõ que ia pelos Treviros. O primeiro, porém, reunia cavalaria e infantaria, e mandando os que pela idade não podiam pegar em armas, ocultarem-se na floresta das Ardenas, que se extende espaço imenso por entre os Treviros desde o Rim té entestar com os Remos, dispunha-se a fazer guerra. Mas depois que alguns principais da cidade, movidos não só da amizade de Cingetorix mas ainda do terror de nosso exército se apresentaram a Cesar, e entraram a fazer-lhe requerimentos sobre seus negócios particulares, visto como em nada podiam assentar sobre os da cidade, receiando ser abandonado de todos, enviou-lhe também esta embaixada: "Que não quisera até então apartar-se dos seus, nem vir logo ter com Cesar, para mais facilmente conter a cidade no dever, afim que, com a retirada de toda a nobreza, não cometesse a plebe alguma imprudência: - mas agora que tinha a cidade em seu poder, viria aos arraiais romanos, se Cesar o permitisse, e poria debaixo da proteção deste tanto a sua particular, como a fortuna da cidade."
IV - Posto que Cesar soubesse do motivo por que Induciomaro mandava dizer isto, e se desviava do propósito, contudo, para não ser obrigado a passar o estio entre os Treviros, depois de preparado tudo para a guerra da Britania, ordena que venha ele aos arraiais com duzentos reféns. Apresentados esses, e entre eles o filho e todos os parentes do mesmo Induciomaro, designados de antemão por seus nomes, Cesar o consola e exorta a permanecer no dever; chamando, nada obstante, à sua presença, os principais Treviros, os concilia um por um com Cingetorix, já por entender que era ele disso merecedor, já por julgar que muito convinha ser o mais autorizado entre os seus quem tão boa vontade lhe mostrava. Muito sentiu Induciomaro ver-se amesquinhado em preponderância entre os seus; e sendo-nos já dantes desafeto, inda mais com essa dor se exacerbou.
V - Determinado isto, passa-se Cesar com as legiões ao porto Iccio, Aí sabe que sessenta navios, fabricados entre os Meldas, não puderam seguir derrota em razão do mau tempo que os repeliu, e voltaram ao porto, donde haviam partido; acha os mais, prontos a navegar e aparelhados de tudo. Reune-se no mesmo ponto a cavalaria da Galia toda em número de quatro mil homens conjuntamente com os principais das cidades. Destes a mui poucos, em cuja fidelidade tinha inteira confiança, resolvera Cesar deixar, e aos demais levá-los consigo como reféns, pois receiava alterações na Galia durante sua ausência.
VI - Estava juntamente com os outros o Heduo Dunorix, de quem acima se fez menção. A este principalmente desejava ter consigo, porque o conhecia ávido de alterações e de mando, bravo, e mui acreditado entre os Gauleses. Acrescia a isto haver ele dito na assembléia dos Heduos que Cesar queria fazê-lo rei da cidade; o que os Heduos não levavam a bem, mas não ousavam dirigir-se a Cesar para recusar, ou conjurá-lo que o não efetuasse. Soubera-o Cesar de seus hóspedes. A princípio entrou Dunorix a empregar todo gênero de rogativas para ser deixado na Galia, ora alegando temer o mar por não habituado a navegar, ora ser impedido por motivos religiosos. Depois que viu denegado obstinadamente o seu pedido, e perdida toda esperança de alcançá-lo, começou a solicitar os principais da Galia; e, chamando-os de parte um por um, os exortava a permanecerem no continente; aterrava ao mesmo tempo, insinuando que não era sem fundamento ser a Galia despojada de toda a nobreza, pois era certamente plano de Cesar, mandá-lo matar depois de transportados à Britania, por arreceiar fazê-lo em presença dos Gauleses; dava aos demais sua palavra, e exigia a deles, de não fazerem o que julgassem de utilidade à Galia, senão de acordo comum. Isto é por muitos denunciado a Cesar.
VII - Ao fato de tudo, Cesar que tinha em muita consideração a cidade dos Heduos, entendia dever reprimir e desviar a Dunorix por toda e qualquer forma; e vendo-o ir por diante no desatino, providenciar, para que lhe não empecesse a ele, nem à república romana. Assim, havendo-se demorado vinte e cinco dias neste lugar, porque o vento Coro, que costuma soprar a mor parte do tempo nestas paragens, embargava a navegação, esforçava-se por contê-lo no dever, fazendo-lhe observar todos os passos. Encontrando finalmente monção favorável, dá ordem para embarcarem os soldados e a cavalaria. Mas enquanto estavam todos com isso ocupados, ia-se Dunorix retirando dos arraiais com a cavalaria dos Heduos sem Cesar o saber. Mal é avisado, suspende Cesar a partida, pondo tudo de lado, e manda segui-lo por grande parte da cavalaria, ordenando fosse reconduzido, e no caso de resistir e desobedecer, morto; pois nada certamente obraria de bom em ausência quem lhe as ordens menoscabava em presença. Intimado, entrou ele a resistir e a recorrer às armas, invocando a proteção dos seus, e bradando ser livre e cidadão de nação livre. É então cercado e morto, voltando entretanto para Cesar toda a cavalaria dos Heduos.
VIII - Depois disto, deixando no continente a Labieno com três legiões e dois mil cavalos para guardar o porto, prover nos bastimentos, conhecer do que se passasse pela Galia, e resolver segundo o tempo e caso requeressem, Cesar, com cinco legiões e número de cavalos igual ao que ficava no continente, faz-se de vela ao pôr do sol, favorecido do Abrego que soprava brandamente; mas acalmando o vento perto da meia noite, não pôde seguir a derrota; e arrebatado para longe pela violência da maré, avista ao amanhecer a Britania, que deixara para a esquerda. Seguindo, então, de novo, a mudança da maré, força remos para tomar a parte da ilha, aonde no passado estio reconhecera ser melhor o desembarque. Foi aqui muito de louvar a constância dos soldados, que com pesados navios de carga conseguiram, sem interrupção no trabalho de remar, igualar a carreira das galés. Aportou Cesar na Britania com todos os navios quase pelo meio dia, sem haver vista do inimigo nessa paragem; mas, como logo soube dos cativos, depois de alí reunido em grande número, aterrado pela multidão dos navios, que com as embarcações ligeiras e particulares que muitos haviam feito para cômodo seu, eram mais de oitocentos vistos a um tempo, tinha-se ele retirado da praia, e acolhido às alturas.
IX - Cesar, desembarcado o exército e escolhido lugar para os arraiais, como soube dos cativos aonde se haviam concentrado as tropas dos inimigos, deixando junto ao mar dez coortes com trezentos cavalos, para, sob o comando de Quincio Atrio, guardarem os navios, marcha contra aquelas na terceira vela da noite, receiando tanto menos por estes, que os deixava ancorados em praia docemente inclinada e aberta. Adiantando-se com sua cavalaria e carros de combate até junto a um rio, começam estes a embargar-nos o passo, atacando-nos das alturas. Rechaçados por nossa cavalaria acoutam-se nos bosques, ao abrigo de um lugar admiravelmente fortificado pela natureza e arte, preparado de antemão, ao que parecia, para alguma guerra civil; pois tinha fechadas todas as avenidas pela derruba de muitas árvores. Pelejando dispersos por entre o arvoredo, vedavam aos nossos o ingresso nos entrincheiramentos. Mas os soldados da sétima legião, ordenando-se em testudem, e igualando o terrado aos entrincheiramentos, tomam o lugar, e os expelem dos bosques, recebendo poucas feridas. Vedou, porém, Cesar, o persegui-los na fuga, já porque não conhecia a terra, já porque, consumida grande parte do dia, queria aproveitar o resto na fortificação dos arraiais.
X - Na manhã do seguinte dia expediu a perseguirem os fugitivos os soldados legionários e a cavalaria, divididos em três corpos. Pouco tinham estes avançado, avistando-se ainda dos arraiais as últimas fileiras, quando chegam alguns cavaleiros a noticiar a Cesar da parte de Quincio Atrio, que na passada noite quase todos os navios haviam sido destroçados e lançados à praia pela violência de uma grande tempestade, a que nem âncoras e amarras, nem marinheiros e pilotos puderam resistir; - e que do encontro de uns com outros vasos lhes resultara a todos gravissimo estrago.
XI - Com esta notícia expede Cesar ordem para serem chamadas as legiões e sobrestarem na marcha; dirige-se depois aos navios, e observa com seus olhos quase o mesmo, que lhe fora comunicado pelos correios e cartas, haverem-se perdido uns quarenta vasos, podendo os demais ser reparados com grande custo. Escolhe para isso os artífices das legiões e ordena, venham outros do continente. Escreve a Labieno, faça construir quantos mais navios pelas legiões, que tinha consigo. Posto que fosse de muito trabalho e fadiga, acha nada obstante ser o mais conveniente varar todos os navios em terra e compreendê-los em um só entrincheiramento com os arraiais. Nisto gasta cerca de dez dias, trabalhando os soldados dia e noite. Varados em terra os navios e mui bem fortificados os arraiais, deixa de guarda àqueles as mesmas tropas, que dantes e parte para o lugar donde viera, Ao chegar ali, acha já reunidas de todas as partes muito maiores forças de Britanos, e por acordo comum investido do comando delas e da suprema autoridade nas coisas da guerra a Cassivelauno, cujas fronteiras são extremadas das cidades marítimas pelo rio chamado Tamesis, cerca de oitenta mil passos do mar. Tinha este tido anteriormente contínuas guerras com as demais cidades; mas os Britanos, aterrados com nossa vinda, o haviam levantado por caudilho supremo.
XII - A parte interior da Britania é habitada pelos povos, que é tradição constante entre os mesmos serem oriundos da ilha; a marítima, pelos que vieram da Bélgica a prear e guerrear nela, (quase todos estes conservam as denominações das cidades, donde eram oriundos), e concluídas as expedições aí permaneceram e começaram a lavrar a terra. Há na ilha infinita multidão de homens, muitíssimos edifícios quase semelhantes aos dos Gauleses e grande quantidade de gados. Fazem ofício de moeda o cobre e uma espécie de dados de ferro. Nas terras do sertão há estanho; nas da costa, minas de ferro, bem que pouco abundantes; o cobre é importado. Há, como na Galia, todo gênero de madeira, menos faia e abeto. Não é permitido aos Britanos comerem lebre, galinha, nem pato; mas criam-nos para prazer seu. O clima mais temperado, que na Galia, sendo que é menos intenso o frio.
XIII - A ilha é de forma triangular, e apresenta um dos lados contra a Galia. Um dos ângulos dele, jacente em Cancio, aonde, de ordinário, aportam todos os navios da Galia, olha ao nascente; o outro, ao meio-dia. Tem este lado cerca de quinhentos mil passos. O outro inclina à Espanha e ao poente. Contra esta parte está a Hibernia, metade menor, ao que se estima, que a Britania; mas o trajeto de uma à outra é igual em tamanho ao da Galia à Britania. A meio caminho demora a ilha chamada Mona. Consta, além disso, haver outras ilhas menores, aonde escrevem alguns autores serem noite no inverno trinta dias contínuos. Em nossas indagações nada encontramos a tal respeito; e só verificamos com certos relógios d'agua serem as noites mais breves, que no continente. A extensão deste lado é, segundo a opinião dos tais, de setecentos mil passos. Está contra o setentrião o terceiro lado, ao qual nenhuma terra corresponde; mas por um ângulo olha principalmente à Germania. Estima-se em oitocentos mil passos a sua extensão. Assim toda a ilha tem vinte vezes cem mil passos de circunferência.
XIV - De todos estes povos os mais policiados são os que habitam Cancio, região toda marítima; pois pouco diferem dos Gauleses em costumes. Os do sertão pela mor parte não semeiam trigo; vivem de leite e carne, e vestem-se de peles. Todos os Britanos pintam-se com pastel, o que lhes dá uma cor azulada, e os torna de horrível aspecto na peleja; usam cabelos compridos, e rapam todo o corpo exceto a cabeça e o lábio superior. As mulheres são comuns entre eles aos dez, e aos doze, principalmente a irmãos com irmãos, e a pais com filhos; mas os filhos delas pertencem àqueles que primeiro as receberam.
XV - Os cavaleiros e essedários inimigos travaram renhido combate com nossa cavalaria em marcha, levando, todavia, esta, o melhor por toda parte; mas, mortos muitos deles, perseguindo com mais ardor o restante, perderam os nossos alguns dos seus. Passado algum tempo, achando-se os nossos desprevenidos e ocupados em fortificar os arraiais, rebentam os inimigos subitamente dos bosques, e atacam vigorosamente os que estavam guardando o campo. Mandando Cesar duas coortes de reforço e as primeiras de duas legiões, como estas se ordenassem em batalha, deixando pequeno intervalo de uma a outra, rompem por meio deste, aterrados os nossos com o novo gênero de peleja, e põem-se a salvo. Neste recontro é morto o tribuno dos soldados, Quincio Laberio Duro; e eles, enviadas mais coortes, são, afinal, repelidos.
XVI - Dando-se este novo gênero de combate à vista de todos e em frente dos arraiais, entendeu-se serem os nossos pouco aptos para semelhante guerra, por causa do peso das armas, pois nem podiam perseguir os que fugiam, nem arredar pé de junto aos estandartes, bem como achar-se a cavalaria exposta a grande perigo, porque os Britanos fugiam as mais das vezes de caso pensado, e conseguindo desviar os nossos das legiões, saltavam dos carros, e combatiam a pé em lide desigual. Os combates de cavalaria ofereciam risco igual para nossos cavaleiros, tanto na retirada, como na avançada. Acrescia o não pelejarem cerrados, mas dispersos e com grandes intervalos, deixando dispostas as reservas, a que se acolhiam, e donde, revezando-se sucediam aos cansados outros de fresco intactos.
XVII - No seguinte dia prostam-se os inimigos em cerros longe dos arraiais, mostrando-se em pequeno número, e provocando nossos cavaleiros mais frouxamente, que no precedente. Mas pela volta do meio dia, mandando Cesar três legiões com a cavalaria a forragear sob o comando do lugar-tenente Caio Trebonio, voam repentinamente de toda parte contra os forrageadores a pouca distância dos respectivos estandartes e legiões. Atacando-os bravamente, os repelem, os nossos; enviada em socorro, vendo as legiões no couce, não deixa de os perseguir a cavalaria, que faz neles grande mortandade, sem lhes dar tempo de se reunirem, tomarem posições, nem saltarem dos carros. Depois desta derrota, retiraram-se incontinenti os auxiliares que lhes haviam vindo de diversos pontos, e os inimigos se nos não apresentaram mais com forças superiores.
XVIII - Conhecendo-lhes o intento, marcha Cesar com o exército para as fronteiras de Cassivelauno e chega ao rio Tamesis, o qual só em um lugar, e isso com dificuldade, se vadeia. Ali observa acharem-se postados em ordem de batalha na outra margem do rio as tropas inimigas. A margem porém estava guarnecida de paliçadas de paus ponteagudos, e ao fundo do rio, de outras iguais puas encobertas pela água. Sabido isto dos cativos e transfugas, faz Cesar avançar a cavalaria, e ordena que as legiões a sigam. Com tal celeridade e galhardia se houveram os nossos, tendo unicamente a cabeça fora d'agua, que os inimigos não podendo sustentar o impeto das legiões e da cavalaria, abandonaram a margem e se puseram em fuga.
XIX - Despedindo o grosso das forças, depois de haver, como fica dito, perdido a esperança do competir conosco em campo raso, e conservando consigo cerca de quatro mil essedários, observava Cassivelauno a nossa marcha, e desviando-se alguma coisa dos caminhos, ocultava-se em lugares emaranhados e selváticos, e nas paragens, por onde sabia havermos de passar, compelia homens e gados dos campos para os bosques. Quando nossa cavalaria se espalhava pelos campos para saquear e forragear, despedia dos bosques os seus essedários por todas as avenidas e sendas, e a atacavam com muito risco dela, tolhendo-lhe com semelhante terror a faculdade de divagar a larga. Não restava a Cesar outro recurso, senão fazer com que esta não se destacasse para longe das legiões que iam marchando, e só empecesse ao inimigo, talando-lhe a campanha e incendiando as casas, tanto quanto podiam avançar os legionários em sua pesada marcha.
XX - Neste interim os Trinobantes, a cidade pela ventura a mais poderosa destas regiões, donde era o adolescente Mandubracio, que tinha vindo à Galia solicitar a proteção de Cesar, e cujo pai, rei da sobredita cidade, fora morto por Cassivelauno, escapando ele mesmo à morte pela fuga, mandam embaixadores a Cesar, prometendo render-lhe obediência para fazer quanto ordenasse, e pedindo-lhe protegesse a Mandubracio contra os ataques de Cassivelauno, e lho enviassem para governá-los e ser rei da cidade. Exige-lhes Cesar quarenta reféns com trigo para o exército e manda-lhes Mandubracio. Deram-se pressa em cumprir o ordenado, remetendo o número de reféns e o trigo exigidos.
XXI - Protegidos os Trinobantes contra todo gênero de violências da soldadesca, os Icenos, Cangos, Segonciacos, Ancalites, Bibrocos, Cassos, se submetem também a Cesar, enviando-lhes deputações. Deles sabe o mesmo achar-se não longe deste lugar a praça forte de Cassivelauno, defendida por bosques e paúes, para a qual se havia passado número assás avultado de homens e gados. Chamam os Britanos praça forte um bosque emaranhado, o qual guarnecem de tranqueira e fosso, e aonde costumam refugiar-se para evitar as incursões do inimigo. Para lá se dirige Cesar com as legiões. Deparando o lugar mui bem fortificado pela natureza e arte, começa todavia de atacá-lo por duas partes. Fazem-nos os inimigos rosto por um pouco, mas não podendo suportar o ímpeto de nossos soldados, fogem por outra parte da praça. Encontra-se nela grande quantidade de gado, e muitos dos bárbaros são apanhados e mortos na fuga.
XXII - Enquanto isto se passa nestes lugares, expede Cassivelauno para Cancio, região vizinha ao mar, como dissemos, instruções a quatro reis que nela imperavam. Cingetorix, Carvilio, Taximagulo, Segovax, ordenando-lhes que, reunindo todas as forças, atacassem de improviso nosso acampamento naval. Ao apresentarem-se eles em volta deste, fazem os nossos uma sortida, matam a muitos dos inimigos, aprisionam-lhes o famoso caudilho Lugotorix, e reconduzem os seus a quartéis sem perda. À notícia de um tal desastre, Cassivelauno que tantas derrotas e devastações de território experimentara abalado principalmente pela defecção das cidades, manda a Cesar embaixadores, sendo medianeiro o Atrebate Comio, a render-lhe obediência. Cesar, que determinava passar o inverno no continente por amor das repentinas alterações da Galia, e via poder a continuação da guerra absorver o pouco que restava de estio, exige reféns e marca o tributo, que devia a Britania pagar cada ano ao povo romano, proibindo a Cassivelauno o empecer a Mandubracio e aos Trinobantes.
XXIII - De posse dos reféns, reconduz o exército ao mar e acha reparados os navios. Postos estes em nado, já por ter grande número de cativos, já por se haverem inutilizado alguns transportes com a tempestade, determina repassar o exército em duas viagens. E caso singular! De tantos navios, em tantas viagens, tanto este como o ano passado, nenhum dos que transportavam soldados se perdeu; mas dos que, depois de desembarcados os soldados do primeiro trajeto, vinham vazios do continente, e dos que mandara construir Labieno em número de sessenta, bem poucos aferraram o porto, esgarrando quase todos. Depois de haver esperado algum tempo em vão, para não perder a monção por estar eminente o equinócio, impelido da necessidade embarca os soldados menos folgadamente, e largando com mar bonança na segunda vela da noite, poja em terra ao romper dalva, conduzidos todos os navios a salvamento.
XXIV - Depois de varar os navios em terra, e assistir as juntas Gauleses em Samarobriva, por haver este ano carência de trigo em razão da seca, viu-se obrigado a colocar o exército em quartéis de inverno por outro modo, que nos precedentes anos, distribuindo as legiões por muitas cidades. Uma legião que devia ser conduzida para os Morinos deu-a ao lugar-tenente Caio Fabio; outra que o devia ser para os Nervios, a Quincio Cicero; a terceira que o devia ser para os Esuvios, a Lucio Roscio; a quarta mandou-a com Tito Labieno invernar entre os Remos nos confins dos Treviros; três estabeleceu-as no Belgio, prepondo-lhes seu questor Marco Crasso e tenentes Lucio Munacio Planco e Caio Trebonio. Uma legião, que de próximo alistara além Pó, e cinco coortes, as expediu para os Eburões, cuja máxima força existe entre o Mosa e Rim sob a autoridade de Ambiorix e Catuvolco; e a estes soldados prepôs os seus tenentes Quincio Titurio Sabino e Lucio Aurunculeio Cota. Distribuindo por tal forma as legiões, julgou poder mui facilmente ocorrer à deficiência de trigo. Os quartéis de inverno de todas essas legiões, afora a que por Lucio Roscio devia ser conduzida para um país mui pacífico e sossegado, continham-se numa área de cem mil passos. Determinou, entretanto, demorar-se na Galia até ter certeza do estabelecimento das legiões e da fortificação dos respectivos quartéis.
XXV - Havia um gaulês de ilustre linhagem entre os Carnutes, de nome Tasgecio, cujos antepassados tinham sido reis na sua cidade. Cesar, a quem ele prestara assinalados serviços em todas as guerras, lhe tinha por seu reconhecido valor e lealdade restituido a dignidade de seus avós. Reinava ele já há três anos contando numerosos inimigos na sua cidade, quando por estes foi morto. É o fato levado ao conhecimento de Cesar. Receiando que, por serem muitos os comprometidos no atentado, a cidade se rebelasse a impulso deles, manda a Lucio Planco marchar à pressa do Belgio com uma legião para os Carnutes, invernar entre eles, prender os conhecidos matadores de Tasgecio, e remeter-lhos. Neste comenos é por todos os seus tenentes e questor, aos quais confiara as legiões, certificado de haverem chegado a seus quartéis de inverno, e feito os respectivos entrincheiramentos.
XXVI - Cerca de quinze dias depois que se estabeleceram em quartéis de inverno, deu-se o começo de uma súbita revolta e defecção, ocasionado por Ambiorix e Catuvolco, que, acorrendo em princípio às fronteiras de seu reino ao encontro de Sabino e Cota, e levando-lhes trigo para o acampamento, impelidos depois por correios do Treviro Induciomaro, insurrecionaram os seus, e caindo de repente sobre os lenhadores da legião, vieram com grandes forças atacar-nos os arraiais. Tomando armas a pressa sobem os nossos à trincheira, e expedindo por uma parte do campo os cavaleiros espanhóis, levam o melhor no recontro da cavalaria. Desesperando o bom sucesso, fazem os inimigos retirar os seus do assalto; e gritando, então, a seu modo, pedem, saia algum dos nossos a conferenciar com eles, pois tinham a propor sobre o interesse comum coisas com que esperavam poder terminar-se a desavença.
XXVII - São enviados a conferenciar com eles, o cavaleiro romano Caio Arpinio, amigo de Sabino, e um certo Quincio Junio, espanhol, já dantes acostumado a ser por Cesar enviado a Ambiorix. Fala-lhes Ambiorix nesta substância: "Que grande devedor se confessava de Cesar por benefícios dele recebidos, pois o libertara do tributo, que aos Aduatucos, vizinhos seus, costumava pagar, e lhe restituira seu filho e o do irmão, que, enviados em reféns a esses, haviam sido por eles escravizados e acorrentados; - nem atacara nossos arraiais por impulso ou vontade própria, mas obrigado por sua cidade, pois era de natureza tal seu poder, que a multidão não tinha sobre ele menos jurisdição que ele sobre a multidão. Que sua cidade empreendia a guerra, na impossibilidade de resistir à repentina conjuração dos gauleses; - e o provava com a sua mesma fraqueza, porque não era tão inexperiente, que confiasse poder com suas forças vencer o povo romano - Mas era plano comum a toda Galia; e este era o dia marcado para atacar ao mesmo tempo todos os quartéis de inverno de Cesar, afim de não poder uma legião vir em auxílio de outra - E era quase impossível recusarem Gauleses sua cooperação a Gauleses, principalmente quando se tratava de recobrar a liberdade comum. Que tendo satisfeito ao que dele exigia o amor da pátria, mostrava-se agora reconhecido aos benefícios de Cesar, avisando e suplicando a Titurio em nome da hospitalidade, que atendesse a sua e a salvação dos soldados. Que numerosas tropas de Germanos mercenários haviam transposto o Rim, e alí estariam em dois dias - Aos mesmos, portanto, cumpria resolver, e, isto, antes de o presentirem os vizinhos, se seria mais conveniente tirar os soldados destes quartéis para fazerem junção ou com Cicero ou com Labieno, dos quais um estava distante cerca de cinquenta mil passos, o outro pouco mais - Que prometia, e o asselava com juramento, haver de dar passagem franca por suas fronteiras - Que fazendo-o, atendia não só ao interesse de sua cidade, que ficava assim aliviada do peso dos quartéis do inverno, mas mostrava-se também grato a Cesar pelos obséquios recebidos. Depois de haver dito isto, retira-se Ambiorix.
XXVIII - Arpineio e Junio referem aos lugar-tenentes quanto ouviram. Perturbados com o repentino caso, estes, posto o aviso partisse de um inimigo, julgavam todavia não ser para desprezar, e deixavam-se maiormente impressionar porque mal era de crer que a ignóbil e humilde cidade dos Eburões fizesse de motu próprio guerra ao povo romano. Põem pois o negócio em consulta, e suscita-se entre eles grave controvérsia. L. Aurunculeio e muitos dos tribunos dos soldados e centuriões mais graduados eram de opinião, que não convinha obrarem coisa alguma de afogadilho, nem retirarem-se dos quartéis de inverno sem ordem de Cesar. De poder se resistir, diziam, em arraiais fortificados às massas dos Germanos, por grandes que fossem, era prova o haverem os nossos repelido com muito esforço o primeiro assalto dos inimigos, ferindo rijamente neles: que não se sentia falta de víveres e podia neste meio tempo vir socorro, já dos arraiais vizinhos, já de Cesar - Em conclusão que podia haver de mais inconsiderado e vergonhoso, que resolver negócio de tanta monta por alvitre de um inimigo?
XXIX - Sabino, ao contrário, bradava que haviam de fazê-lo tarde, quando com a junção dos Germanos se reunissem maiores forças inimigas, ou quando alguma calamidade se tivesse experimentado nos próximos quartéis de inverno. Que breve era a ocasião de deliberar - Reputava a Cesar partido para a Itália; pois, se assim não fosse, não teriam os Carnutos tomado a resolução de matar a Fasgecio, nem estando Cesar presente, viriam os Eburões aos arraiais com tanto menosprezo nosso. Que montava partir o aviso de um inimigo? - O que ele considerava era o fato em si: que ficava próximo o Rim; exasperados estavam os Germanos com a morte de Ariovisto, e com nossas passadas vitórias; ardia, recebidas tantas afrontas, a Galia reduzida ao império do povo romano com extinção de sua antiga glória militar. Quem se persuadiria enfim, que Ambiorix, se não existisse o fato, se abalançaria a dar semelhante aviso? Que seu parecer era seguro por qualquer dos dois lados que se encarasse: - pois, a realizar-se alguma desgraça, haviam de chegar sem perigo à próxima legião; - e, a ligar-se toda a Galia com os Germanos, na celeridade estava posta a única via de salvação. Qual seria, porém, o resultado do parecer de Cota, e dos mais que do seu dissentiam? Se não havia nele perigo atual, havia de certo a fome a temer com a prolongação do cerco.
XXX - Travada a disputa com razões de um e outro lado, e impugnado acremente Cota e os centuriões mais graduados, Vencei, diz Sabino, já que o quereis e isto em voz bem alta, para que o ouvisse grande parte dos soldados, nem eu sou homem que me deixe grandemente aterrar com ameaças de morte por vossa parte; estes o saberão; e se alguma adversidade acontecer, te tomarão contas; pois, se não foras tu, poderiam, reunidos depois de amanhã aos próximos quartéis de inverno, sustentar com os mais o comum caso de guerra, e não se veriam lançados e desterrados para longe dos mais, com certeza de perecer pelo ferro e pela fomes.
XXXI - Levantam-se do concelho: abraçam os oficiais um a outro, instam com eles, que não levem as coisas a perigoso extremo com sua dissenção e pertinácia: que o negócio, ou ficassem ou partissem, não apresentaria dificuldade, uma vez que todos concordassem e assentassem num único alvitre; na dissensão, ao contrário, nenhuma salvação descortinavam. Prolonga-se a disputa até meia noite. Cota finalmente dá as mãos, vencido: triunfa a opinião de Sabino. Marca-se a partida para o romper d'alva, O resto da noite é gasto em vigílias, vendo cada soldado o que era seu, o que podia levar consigo, e o que era forçado a deixar do necessário para invernar. Como que se excogita tudo, para permanecerem não sem perigo, e aumentarem o perigo, já com a languidez, já com as vigílias do soldado. Ao romper d'alva partem dos arraiais, como se estivessem persuadidos, na extensíssima ordem da marcha entravada de grande bagagens, de que partia o conselho, não de inimigo, mas de um homem amicíssimo - Ambiorix!
XXXII - Mas os inimigos, mal lhes presentiram a partida pelo frêmito noturno e vigólias, dispostas emboscadas nas selvas por duas partes em lugar oportuno e oculto, até cerca de dois mil passos aguardavam a chegada dos Romanos e como o mais do exército descesse a um grande vale, mostraram-se repentinamente de uma e outra parte do vale, e entraram a apertar com os da retaguarda, a tolher a subida aos dianteiros, e a travar combate em lugar mui desvantajoso aos nossos.
XXXIII - Então, finalmente, Titurio, que nada havia providenciado de antemão, se apressava, corria, dispunha as coortes, isto ainda assim timidamente, e como se parecesse faltar-lhe tudo; o que de ordinário acontece aos que tomam conselho na mesma conjuntura. Mas Cota, que pensara poderia isto acontecer na marcha, e não fora porisso autor da partida, em nada faltava à salvação comum, e desempenhava o ofício, já de general no apelidar e esforçar os soldados, já de soldado no pelejar. Sendo que, em razão da longa ordem de marcha, não podiam ocorrer a tudo por si, e providenciar o que se devia obrar em toda parte, mandaram os dois generais abandonar as bagagens, e formar em círculo. E esta resolução, ainda que não é para censurar em caso tal, teve, todavia, mau resultado, seja diminuindo a esperança aos nossos soldados, seja tornando os inimigos mais alvoroçados no pelejar, visto conto parecia ela conseqüência de grande temor e desesperança. Aconteceu além disso o que era necessário acontecesse, abandonarem os soldados as signas em grande número, apressar-se cada um a ir buscar e tomar das bagagens o que tinha de mais caro, e encher-se tudo de clamor e pranto.
XXXIV - Aos bárbaros, porém, não faltou o acordo. Mandaram seus caudilhos proclamar por todo o exército, que ninguém abandonasse o posto, pois sua deles era a presa, e reservado lhes estava quanto houvessem de deixar os Romanos: assim tudo pusessem na esperança da vitória. Eram os nossos iguais em valor e número na peleja; e, dado que desamparados do general e da fortuna, no valor, nada obstante, punham toda esperança de salvação, e quantas vezes avançava cada coorte, grande era o número de inimigos, que por esse lado caia. Atentando nisto, manda Ambiorix proclamar aos seus, que arremessem dardos de longe, não se cheguem perto, e cedam naquela parte, contra a qual avançarem os Romanos (pois pela leveza de suas armas e quotidiano exercício não haviam de receber dano), mas os persigam de novo, ao recolherem-se aqueles para junto das respectivas signas.
XXXV - Observado mui cuidadosamente este preceito, quando saia qualquer coorte do círculo, e atacava, tornavam os inimigos a fugir velocíssimamente. Necessário era, entretanto, que ficasse esta parte descoberta e se recebessem dardos pelo lado aberto. Quando começavam a voltar outra vez para o lugar, donde tinham saído, viam-se cercados, tanto pelos que haviam fugido, como pelos que estavam próximos; mas se queriam guardar o posto, nem se deixava lugar ao valor, nem cerrados podiam evitar os dardos arremessados por tamanha multidão. Assoberbados por tantos incômodos, recebidas muitas feridas, resistiam, todavia, e consumida grande parte do dia, combatendo-se desde o romper d'alva até às duas horas da tarde, nada praticavam, que deles fosse indigno. Então a T. Balvencio, que fora o ano passado promovido a primipilar, homem valoroso, e de grande autoridade, são com uma arma de arremesso atravessadas ambas as coxas; Q. Lucanio, da mesma graduação, é morto, combatendo mui denodadamente para salvar o filho, que estava cercado; o lugar-tenente L. Cota é ferido na boca com um tiro de funda, enquanto anima as coortes e fileiras.
XXXVI - Abalado com isto, Q. Titurio, ao ver ao longe Ambiorix, animando os seus, envia-lhe o seu língua Gneo Pompeio a rogar-lhe que o poupe a ele e os soldados. Ambiorix respondeu: Que, se Titurio queria falar-lhe, podia fazê-lo, pois esperava se conseguiria da multidão o que dizia respeito à salvação dos soldados; ao mesmo porém nenhum mal se lhe faria, e nisso empenhava a sua palavra. Com esta resposta procura Titurio a Cota ferido, afim que, se este o levasse a bem, se retirassem do conflito, e falassem conjuntamente a Ambiorix, porque contava alcançar dele a salvação de ambos e a dos soldados. Recusa Cota ir falar a um inimigo em armas e nisso persevera.
XXXVII - Faz-se Sabino acompanhar dos tribunos militares e centuriões mais graduados, que tinha no momento em volta de si, e ao chegar perto de Ambiorix, é mandado depôr as armas, o que executa, ordenando aos seus, pratiquem o mesmo. Neste interim, enquanto trata com Ambiorix, e a discussão é por este de propósito alongada, é pouco a pouco cercado e morto. Então proclamam os bárbaros a vitória a seu modo, levantando desconcertada grita, e investindo contra os nossos, rompem-lhes as fileiras. Aí é L. Cota morto em combate, bem como a maior parte do exército. Os restantes acolhem-se aos arraiais donde tinham saido. E destes o porta-águia, L. Petrosidio, vendo-se assoberbado de grande multidão inimiga, atira com a águia para dentro da trincheira, e é morto em frente dos arraiais, combatendo mui esforçadamente. Os que tinham conseguido entrar, mal sustentam a investida até a noite; e no decurso desta, perdida a esperança de salvação, matam-se todos entre si até o último. Poucos que haviam escapado da batalha, chegam por caminhos incertos, através dos bosques, aos quartéis de inverno de T. Labieno, e informam a este do sucedido.
XXXVIII - Ensoberbecido com esta vitória, parte incontinenti Ambiorix com a cavalaria para os Aduatucos, que vizinhavam com o seu reino; e, ordenando à infantaria que o siga, nem dia, nem noite interrompe a marcha. Exposto o negócio, e sublevados os Aduatucos, chega no seguinte dia aos Nervios, aos quais exorta a não perderem a ocasião de libertar-se para sempre, e vingar-se nos Romanos das afrontas recebidas, mostrando que haviam sido mortos dois lugar-tenentes, e perecera uma grande parte do exército; - que era difícil ser destruída a legião, que invernava com Cicero, sendo opressa repentinamente: assegura-lhes para isso o seu apoio. Com este discurso persuade facilmente aos Nervios.
XXXIX - Assim, enviados imediatamente correios aos Ceutrones, Grudios, Levacos, Pleumoxios, Geodunos, os quais todos estão na sua dependência deles, reunem o maior número de tropas que podem e voam aos arraiais de Cicero, a quem não havia ainda chegado a fama da morte de Titurio. Aconteceu também a este, o que era inevitável, e foi, que alguns soldados, que andavam pela mata, fazendo lenha, e cortando madeira para a fortificação, foram surpreendidos com a repentina chegada da cavalaria. Envolvidos estes, começam Eburões, Nervios, Aduatucos, e aliados e clientes de todos eles, a assaltar a legião com numerosas forças. Correm os nossos incontinenti às armas e sobem à trincheira. Com dificuldade se sustenta este dia, por que na celeridade toda esperança punham os inimigos, e, alcançada mais esta vitória, confiavam seriam sempre vencedores.
XL - São logo por Cicero enviadas cartas a Cesar com promessas de grandes prêmios aos que as levassem. Cercados todos os caminhos, são interceptados os portadores. Da madeira transportada para a fortificação levantam-se de noite até cento e vinte torres com incrível rapidez; conclui-se o que parecia faltar à obra de entrincheiramento. No seguinte dia assaltam os inimigos aos arraiais com muito mais forças reunidas; cegam o fosso. Resistem os nossos pela mesma forma que no antecedente. Faz-se depois o mesmo nos restantes dias. Em nenhuma parte da noite se interrompe o trabalho; nem aos doentes, nem aos feridos, se dá faculdade de descançar. Apresta-se de noite tudo o que é necessário para repelir o assalto do dia seguinte; aprontam-se muitas azagaias tostadas, e grande número de pilos murais; põem-se tabolados nas torres; tecem-se ameias e parapeitos de grades para a muralha. O mesmo Cicero, homem de saúde delicadíssima, nem ainda o tempo noturno se reserva para repouso, a ponto de ser obrigado a poupar-se pelas vozes expontâneas e concurrência dos soldados.
XLI - Então os caudilhos e principais dos Nervios, que tinham alguma entrada e relações de amizade com Cicero, dizem que lhe querem falar. Dada a permissão de o fazerem, referem o mesmo, que Ambiorix havia dito a Titurio: "Que achava-se toda a Galia em armas; que haviam os Germanos passado o Rim; e estavam sendo atacados os quartéis de inverno de Cesar e seus tenentes." Acrescentam a notícia da morte de Sabino; apresentam por prova a Ambiorix: "Que estavam muito enganados, se esperavam auxílio dos que corriam igual perigo; mas - tal era disposição de seu ânimo deles para com Cicero e o povo romano, que nada recusavam, senão o ônus dos quartéis de inverno, pois não queriam ficasse inveterado tal costume: que lhes era lícito a Cicero e aos seus retirarem-se livremente dos quartéis de inverno, e partirem sem medo para onde quisessem." A isto respondeu novamente Cicero: - "Não ser costume do povo romano receber proposta alguma de inimigo armado: que depusessem as armas, servissem-se de sua mediação e enviassem embaixadores a Cesar, pois esperava, atenta a eqüidade deste, haverem eles de alcançar quanto desejavam."
XLII - Repelidos desta esperança, os Nervios cingem os quartéis de inverno com um entrincheiramento de onze pés de alto, e um fosso de quinze de fundo. Tinham aprendido de nós estas coisas, já com a prática dos anos precedentes, já ensinados por certos prisioneiros, que haviam feito do exército; mas, sem cópia de instrumentos próprios para isto, viam-se obrigados a cortar os cespedes em volta com os gladios, e a tirar a terra com as mãos e com os sagulos. E por aí se pôde conhecer a sua imensa multidão; porquanto em menos de três horas levaram a efeito uma fortificação de quinze mil passos de circunferência, e nos restantes dias entraram, ensinados pelos mesmos prisioneiros a preparar e fabricar torres até à altura de nossa trincheira, foices e testudes.
XLIII - No sétimo dia de sítio, soprando um vento fortíssimo, entraram com fundas a arremessar balas ferventes de argila em brasa e dardos inflamados, contra as barracas de nossos soldados, que eram, ao modo Gaulês, cobertas de palha. Estas ganharam imediatamente fogo, e o comunicaram com a violência do vento a todas as partes dos arraiais. Avançando com imenso alarido, como se já tivessem a vitória nas mãos, começaram os inimigos a chegar torres e testudes, e a escalar a trincheira. Mas tamanho foi o esforço de nossos soldados, e tal sua presença de espírito, que, abrasados pelas chamas, assoberbados por uma infinidade de projetís, e certos de estarem ardendo todas as suas bagagens e haveres, nenhum deles se moveu da trincheira para ir até lá, ou quase para lá olhou, antes todos combateram encarniçada e denodadamente. Este dia foi mais prejudicial aos nossos; teve, contudo, em resultado, ficar ferido e morto muito maior número de inimigos, porque, cerrando-se em volta de uma mesma trincheira, os últimos dentre eles não permitiam retirada aos primeiros. Cessando um pouco as chamas, e havendo eles em certo lugar aplicado uma torre, que tocava na trincheira, os centuriões da terceira coorte retiraram-se do lugar em que estavam e fizeram igualmente retirar os seus: depois com acenos e vozes convidaram os inimigos a entrar mas nenhum deles ousou fazê-lo. Foram então derribados com pedras arremessadas de toda parte, e queimou-se a torre.
XLIV - Havia nesta legião dois mui esforçados centuriões, que já se aproximavam das primeiras graduações, de nomes, T. Pulão e L. Voreno. Andavam estes em perpétuas competências de qual seria o preferido, e contendiam todos os anos com inimizades sobre os primeiros lugares. Destes, no maior ardor do combate junto às trincheíras, diz Pulão: Por que é que hesitas, Voreno? ou que ocasião esperas para mostrar o teu valor? este dia será juiz de nossas competências. E ao dizer isto, salta fora das trincheiras, e arremete contra aquela parte em que os inimigos pareciam mais cerrados. Nem tão pouco Voreno se deixa ficar dentro, mas segue-o pelo receio de parecer somenos na geral opinião. Restando medíocre espaço, vibra Pulão o pilo contra os inimigos, e atravessa um da multidão que corria ao seu encontro; enquanto alguns protegem com os escudos o ferido que expirava, todos arremessam dardos contra o inimigo, e tiram-lhe a possibilidade de voltar. É o escudo traspassado a Pulão, e fica-lhe o dardo preso no boldrié. Este caso desvia-lhe a bainha, demora-lhe a mão direita no arrancar da espada, e o deixa embaraçado no meio dos inimigos que o cercam. Acode-lhe o inimigo Voreno, indo em seu socorro neste aperto. Logo toda a multidão se volta contra este abandonando Pulão. Atacando de improviso, combate Voreno de perto à espada, e morto um, consegue repelir por um pouco os mais; mas, enquanto aperta com mais ardor, cai, faltando-lhe o pé, num lugar inferior. A este cercado pelo seu turno socorre igualmente Pulão, e ambos com sumo louvor recolhem-se sãos e salvos para as trincheiras, deixando a muitos mortos no campo. De tal sorte provou a fortuna a um e outro, quer na competência, quer no combate, que, sendo um inimigo do outro, levou socorro e salvação a seu inimigo, sem que se pudesse decidir qual o mais valoroso.
XLV - Quanto mais pesado e áspero de dia para dia se tornava o cerco, principalmente porque ferida grande parte dos soldados, mui reduzido se achava o número dos defensores, tanto mais amiudados, cartas e correios, eram enviados a Cesar; e deles surpreendidos, eram mortos a tormento à vista dos nossos soldados. Havia nos arraiais um Nervio, de nome Verticão, nascido de família honesta, que logo no princípio do cerco havia fugido para Cicero, e prometera ser-lhe fiel. Este persuade a um escravo seu com promessa de liberdade e grandes prêmios, que leve uma carta de Cicero a Cesar. Ele a leva ligada no dardo, e Gaulês anda por entre Gauleses sem mover suspeita e chega a Cesar. Dele se sabe o perigo que corria Cicero e a legião.
XLVI - Cesar, recebida a carta pela undécima hora do dia, (às 5 da tarde), despacha logo um correio ao questor Crasso, cujos quartéis de inverno nos Belovacos distavam dele vinte cinco mil passos, ordenahdo-lhe faça marchar a legião a meia noite, e venha incontinenti ter com ele. Parte Crasso com o correio. Expede outro a C. Fabio, ordenando-lhe conduza a legião às fronteiras dos Atrebates, por onde devia ele próprio fazer a sua marcha. Escreve a Labieno, que, se o puder fazer sem inconveniente, venha com a legião às fronteiras dos Nervios. A restante parte do exército, que estava um pouco mais longe, julga não dever esperá-la. Reune cerca de quatrocentos de cavalo dos próximos quartéis de inverno.
XLVII - À terceira hora do dia, (ás 9 da manhã), certificado da vinda de Crasso pelos batedores, avança nesse dia uns vinte mil passos. Deixando uma legião a Crasso, o prepõe a Samarobriva, porque aí deixava as bagagens do exército, os reféns das cidades, o arquivo, e todo o trigo que mandara transportar, para passar o inverno. Fabio com a legião, segundo fora ordenado, o encontra também em marcha, sem muita demora. Labieno, sabido o caso de Sabino e o morticínio das coortes, e marchando contra ele todas as tropas dos Treviros, receioso de, em fazendo uma partida dos quartéis de inverno com visos de fuga, não poder resistir aos inimigos, ensoberbecidos principalmente com a recente vitória, responde a Cesar, narrando-lhe quanto risco havia em tirar a legião dos quartéis de inverno, bem como o desastre ocorrido nos Eburões, e o achar-se toda a cavalaria e infantaria dos Treviros acampada a três mil passos dos seus arraiais.
XLVIII - Aprovando o parecer de Labieno, Cesar, ainda que desapontado na esperança das três legiões, voltava às duas, na celeridade com tudo punha o único auxílio da comum salvação. Chega com marchas forçadas às fronteiras dos Nervios. Aí conhece dos cativos o que vai pelos arraiais de Cicero, e a que extremidade têm ali chegado as coisas. Persuade, então, com grandes prêmios a um da cavalaria gaulesa que leve uma carta a Cicero. Remete-a escrita em grego, para que, no caso de ser interceptada, não fossem nossos planos conhecidos dos inimigos. Se não poder penetrar dentro, recomenda ao portador, que atire para a fortificação dos arraiais uma tragula com a carta presa na correia. Manda-lhe dizer nesta que vinha em marcha e estava a chegar com as legiões concluindo por exortá-lo a conservar o antigo valor. O Gaulês, receioso do perigo, atira a tragula como lhe fora recomendado. Esta ficou casualmente pregada a uma torre, sem que ninguém desse por isso durante dois dias; no terceiro é vista por um soldado, tirada e levada a Cicero. Ele, depois de lida a carta, a recita aos soldados reunidos, enchendo a todos de grande alegria. Via-se então ao longe o fumo dos incêndios: o que expelia toda dúvida da vinda das legiões.
XLIX - Os Gaulêses, sabido o caso pelos exploradores abandonam o cerco, e marcham com todas as forças contra Cesar. Tinham em armas cerca de sessenta mil homens. Cicero, recorrendo ao mesmo canal, torna a pedir a Verticão o gaulês, de que acima tratamos, afim de levar outra carta a Cesar; e recomendando ao portador cautela e presteza, escreve a Cesar que os inimigos haviam abandonado o cerco, e dirigiam toda a multidão contra ele. Recebendo esta carta pela meia noite, dá Cesar conta dela aos seus, e os esforça a pelejar. No seguinte dia levanta campo ao romper d'alva, e tendo avançado cerca de quatro mil passos, avista a multidão dos inimigos da banda da'lém dum vale e duma ribeira. Era mui arriscado combater contra tamanhas forças em lugar desvantajoso; então, sabendo estar Cicero livre do cerco, julga conveniente demorar a marcha. Faz alto, e fortifica arraiais no lugar mais vantajoso, que se lhe depara; e a estes, ainda que de si pequenos, e apenas de sete mil homens, sobre tudo sem bagagens algumas, os aperta ainda assim o mais que pode, estreitando-lhes as ruas, afim que pareçam muito desprezíveis aos inimigos. Entretanto, expedindo exploradores em diversos sentidos, manda examinar por onde lhe seja possível passar o vale mais comodamente.
L - Travados este dia pequenos combates equestres junto a água, conservam uns e outros as suas respectivas posições: os Gauleses, porque esperavam maiores forças, que ainda não tinham chegado; Cesar, para, com a simulação de temor, atrair os inimigos à posição a ele favorável, afim de pelejar aquém do vale em frente dos arraiais; e, não o podendo conseguir, de passar com menos risco o vale e a ribeira por caminhos explorados. Ao romper d'alva aproxima-se dos arraiais a cavalaria inimiga, e trava combate com a nossa. Cesar ordena de proposito à nossa que ceda, e se retire para os arraiais: manda ao mesmo tempo alteiar por toda a parte a trincheira dos arraiais, obstruir as portas, correr, ao fazê-lo, de uma à outra parte, e agir com simulação de temor.
LI - Convidados por tudo isto, traspassam os inimigos suas tropas, postando-se em lugar desvantajoso; ao retirarem-se também os nossos da trincheira, chegam eles para mais perto, despedem dardos de todas as partes para dentro da fortificação, e mandam por pregoeiros proclamar em volta do campo - Que a todo Gaulês ou Romano, que quisesse passar para eles, ser-lhe-ia permitido fazê-lo antes da terceira hora do dia (das 9 da manhã), não o sendo mais depois disso - E por tal forma chegaram a desprezar aos nossos, que, por lhes parecer, achando-se cada uma das portas dos arraiais aparentemente obstruída por ordens de cespedes, não poderem romper por essa parte, entram uns a arrancar os paus da trincheira com as mãos, outros a cegar os fossos. Então Cesar, feita a sortida por todas as portas, e despedida a cavalaria, põe prestesmente os inimigos em fuga, a ponto que nem um só ousa fazer alto para resistir, mata grande número deles, e a todos os despoja das armas.
LII - Receiando segui-los mais longe, porque se metiam bosques e pântanos de permeio, e via não haverem eles abandonado suas posições sem grande perda, chega no mesmo dia aos arraiais de Cicero com todas as suas tropas a salvo. Admira a construção das torres, máquinas de guerra e fortificações dos inimigos; formada a legião, verifica não haver um só de cada dez soldados, que deixe de estar ferido: de tudo isto ajuiza, que risco se havia corrido, e com que esforço se tinha obrado. Louva a Cicero pelo serviço prestado, bem como a legião, dirigindo-se, em particular, a cada um dos centuriões e tribunos dos soldados, que sabia por informações do mesmo mais se haverem distinguido em bravura. Dos cativos sabe o caso de Sabino e Cota com mais individuação e certeza. No seguinte dia expõe aquele desastre em pública reunião, consola e esforça os soldados, mostrando-lhes que a perda recebida por culpa e temeridade do lugar-tenente devia ser suportada de melhor ânimo, porque havendo sido compensada pelo benefício dos deuses imortais e valor dos mesmos, não tinham os inimigos motivo para alegria duradoura, nem os nossos, para dor mais prolongada.
LIII - Entretanto, a Labieno chega pelos Remos com incrível rapidez a fama da vitória de Cesar, pois, estando distante cerca de sessenta mil passos dos arraiais de Cicero, e chegando Cesar a estes depois da nona hora do dia, (depois das 3 da tarde), antes da meia noite lhe rebentava as portas dos arraiais o clamor, com que os Remos lhe exprimiam a significação e os parabéns da vitória. Levada esta fama aos Treviros, Inducionaro, que se dispunha a atacar os arraiais de Labieno no dia seguinte, foge de noite, e reconduz as suas tropas. Reenvia Cesar a Fabio com a legião aos seus quartéis de inverno, e resolve invernar ele mesmo com três legiões distribuidas por três quartéis nas vizinhanças de Samarobriva, e porque tantos eram os movimentos na Galia, passar o inverno todo com o exército. Por quanto espalhada a notícia da morte de Sabino, quase todas as cidades da Galia, expedindo correios e embaixadas para diversas partes, tratavam de empreender a guerra e examinavam, fazendo reuniões noturnas em lugares ermos, que plano convinha adotar, e onde devia esta começar. Nem se passava tempo algum do inverno sem cuidado para Cesar, que não cessava de receber avisos dos projetos e da agitação dos Gauleses. É entre os demais avisos informado pelo lugar-tenente, L. Roscio, que prepusera a décima terceira legião, de que grandes tropas de Gauleses daquelas cidades, ditas da Armorica, se haviam reunido para atacá-lo e não estavam distantes mais de oito mil passos dos seus quartéis de inverno; mas que, sabida a notícia da vitória de Cesar, tinham feito uma retirada com visos de fuga.
LIV - Mas Cesar, chamando à sua presença os principais de cada cidade, ora atemorizando-os, com dizer que sabia o que se tramava, ora exortando-os, conseguiu reter no dever grande parte da Galia. Os Senones, todavia, cidade mui principal e acreditada entre os Gauleses, havendo resolvido em concelho matar a Cavarino, rei seu posto por Cesar, e cujo irmão Moritasgo reinava, quando Cesar veio à Galia, bem como em outras eras reinaram seus passados, e havendo-o perseguido até às fronteiras, em razão de o ter ele pressentido e fugido, o expeliram do reino e da pátria; e enviando embaixadores a Cesar para dar-lhe satisfação, e mandando este vir à sua presença todo o senado, recusaram obedecer. Tanto pôde com homens bárbaros haver quem os excitasse a guerra, e tanta mudança produziu isso nas vontades de todos, que, se excetuarmos os Heduos e os Remos, os quais sempre Cesar teve em particular estimação, os primeiros por sua antiga e constante amizade para com o povo romano, os segundos pelos recentes serviços prestados na guerra gaulesa, não houve quase cidade alguma que nos não fosse suspeita. Não sei se seja tanto para admirar, que se doam mui gravemente, não por outros motivos, como e mui principalmente, por terem, quando a todos os povos sobresaiam em valor guerreiro, decaido desse conceito a ponto de suportarem o jugo do povo romano.
LV - Em nenhum tempo do inverno, porém, cessaram os Treviros e Induciomaro de mandar embaixadores além Rim, solicitando cidades, prometendo dinheiro, e asseverando "que, morta grande parte de nosso exército, apenas restava uma pequena parte". Não se deixou todavia cidade alguma dos Germanos persuadir a passar o Rim, pois diziam: "que, tendo experimentado duas vezes a fortuna, uma na guerra de Ariovisto, outra na passagem dos Tencteros, não haviam de tentá-la mais". Decaido desta esperança, entrou sem embargo Induciomaro a reunir tropas, a exercitá-las, a aprestar cavalos dentre os vizinhos, e a atrair a si de toda a Galia com grandes recompensas os desterrados e condenados. E tanta autoridade adquiriu com isto na Galia, que de toda parte lhe chegavam embaixadas, solicitando seu favor e amizade em público e particular.
LVI - Como viu que se corria a ele expontaneamente, sendo de uma parte os Senones e Carnurtes instigados pela consciência do crime, e preparando de outra os Nervios e Aduatucos guerra aos Romanos, nem lhe haviam de faltar tropas de voluntários, ao adiantar-se de suas fronteiras, convoca um concelho armado. Eis a usança com que se começa a guerra entre os Gauleses; reunem-se por lei comum todos os moços púberes armados, e o que dentre eles chega por último de todos, é morto à vista da multidão com todo gênero de tormentos. Neste concelho, a Cengetorix, cabeça da outra facção, e genro seu, que acima mostramos ter seguido a Cesar e haver-lhe sido fiel, o declara inimigo e confisca-lhe os bens. Feito isto, declara no concelho, que convidado pelos Senones, Carnutes e outras cidades mais, havia de marchar para ali pelas fronteiras dos Remos, assolando-lhes os campos, mas que antes de o fazer, havia de atacar os arraiais de Labieno. Ordena o que cumpre executar.
LVII - Estando em arraiais mui fortificados pela natureza e pela arte, nada tinha Labieno que temer por si e pela legião; pensava em não deixar escapar ocasião de empreender um feito notável. Assim, inteirado por Cingetorix e seus parentes do discurso, que Induciomaro proferira no concelho, expede correios às cidades vizinhas, e de todas convoca cavaleiros; marca-lhes dia certo para se reunirem. Quase quotidianamente vagava Induciomaro com toda a cavalaria à vista dos arraiais, seja para conhecer a posição destes, seja para bravatear ou atemorizar; os seus cavaleiros as mais das vezes todos atiravam dardos para dentro do entrincheiramento. Continha Labieno os seus na fortificação, e, em tudo que podia, aparentava visos de crescente temor.
LVIII - Continuando Induciomaro a aproximar-se cada dia dos arraiais com mais desprezo, introduziu Labieno uma noite os cavaleiros das cidades vizinhas já convocados, e por meio de vigias reteve os seus nos arraiais com tanto cuidado, que não pôde ser isso anunciado ou levado aos Treviros. Entretanto, aproxima-se Induciomaro dos arraiais na forma costumada, e aí consome grande parte do dia; seus cavaleiros atiram dardos, e provocam os nossos a combate com muita afronta de palavras. Não respondendo os nossos, retiram-se pela tarde, quando julgam conveniente, dispersos e separados. De repente despede Labieno por duas partes toda a cavalaria, ordenando-lhe que, espantados e afugentados os inimigos, (como era de prever acontecesse), acometam todos unicamente a Induciomaro, e proibindo-lhe ao mesmo tempo que a nenhum outro firam antes de o verem morto, pois não queria que escapasse, ganhando espaço com a demora da perseguição dos outros; promete grandes recompensas aos que o matassem; envia coortes em auxílio da cavalaria. Confirma a fortuna a plano do homem, e acometendo todos a um só, é Induciomaro surpreendido e morto no mesmo vau do rio, e sua cabeça trazida aos arraiais: na volta perseguem e matam os cavaleiros a quantos inimigos podem. Sabido isto retiram-se todas as tropas dos Eburões e Nervios, que se achavam reunidas e depois deste fato teve Cesar a Galia um pouco mais quieta.
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