Cambises volta para a Pérsia - Diálogo entre Ciro e Ciaxares - Discurso de Ciro aos persas para a mudança das armas - Com a notícia da aproximação dos inimigos, Ciro anima seu exército por diferentes meios - Extenso diálogo entre Ciro e seus capitães - Discussão concernente aos prêmios com que deviam ser recompensados os serviços - Exercícios militares à imitação de batalhas campais - Ciaxares e Ciro dão audiência aos embaixadores da Índia - Determina-se uma expedição contra a Armênia - Ciaxares e Ciro partem para a Armênia sob o pretexto de uma caçada.
Cambises volta para a Pérsia - Diálogo entre Ciro e Ciaxares - Discurso de Ciro aos persas para a mudança das armas
Assim foram discorrendo até chegar às fronteiras da Pérsia; e notando que uma águia, ave de bom agouro, os precedia, fizeram votos aos deuses e heróis tutelares da Pérsia, para que na saída de seu território lhes fossem favoráveis e benignos, e atravessaram as fronteiras. Seus votos dirigiram-se então às divindades tutelares da Média, para que lhes dessem favorável e benigna recepção. Depois disto abraçaram-se, como era costume; Cambises tornou para a Pérsia, Ciro internou-se na Média, e chegou ao palácio de Ciaxares.
Abraçaram-se segundo o costume, e logo Ciaxares perguntou a Ciro que forças trazia.
- Eu trago - respondeu Ciro - trinta mil soldados, que já serviram aqui mercenariamente. Também vem certo número de homotimos, que nunca saíram da pátria.
- Qual é esse número?
- Seu número, se o ouvirdes, não vos há de agradar: mas deveis saber que, apesar de ser pequeno, facilmente regem os persas, não obstante seu grande número. Tendes precisão deles, ou o terror pânico se apoderou de vós? Não chegam os inimigos?
- Chegam sim, e em grande multidão.
- Como sabeis isso?
- Grande número de medos, vindos da Assíria, referem todos o mesmo, pouco variando as circunstâncias.
- Vamos pelejar contra eles.
- Assim é preciso.
- Mas ainda me não dissestes quais são suas forças e as vossas. Informados disto, pensaremos sobre o modo de mais vantajosamente dirigir as operações militares.
- Ouve: Creso, rei da Lídia, traz, segundo se diz, dez mil cavalos e mais de quarenta mil peltastas e arqueiros; Artamas, rei da grande Frígia, oito mil cavalos e não menos de quarenta mil lanceiros e peltastas; Aribeu, rei da Capadócia, seis mil cavaleiros e não menos de trinta mil arqueiros e peltastas; Maragdo da Arábia, dez mil cavaleiros, cem carros e considerável número de fundeiros. A respeito dos gregos asiáticos, não se sabe se trazem algum socorro. Enquanto aos que habitam a Frígia do Helesponto, diz-se que acompanham Gabeu, que nas planícies do rio Caistro tem seis mil cavaleiros e dez mil peltastas. Os cários, os cilícios, os paflagônios, que foram chamados, diz-se que não vêm. O rei assírio, que governa Babilônia e o restante da Assíria, parece-me que não contará menos de vinte mil cavaleiros, considerável número de infantes, e sei com certeza que vem com duzentos carros. Tal é o costume deste rei, quando invade nossas fronteiras.
- Por essa vossa conta temos que resistir a um exército de sessenta mil cavalos, e mais de duzentos mil peltastas e arqueiros. E quais são vossas forças?
- Mais de dez mil cavaleiros medos e uns sessenta mil peltastas e arqueiros nacionais. O país vizinho de Armênia fornecerá quatro mil cavaleiros e vinte mil infantes.
- Dessa maneira nossa cavalaria não iguala a terça parte da dos inimigos, a infantaria é quase metade.
- Pois que, julgas que são poucos os persas que vêm debaixo de teu comando?
- Se temos, ou não, necessidade de mais gente, havemos de discutir. Dizei-me agora qual é a maneira de combater de nossos inimigos.
- Todos têm quase o mesmo modo de pelejar. Nós e eles combatemos com arco e seta.
- Sendo essas suas armas, é preciso combater de longe.
- É verdade.
- E a vitória será da hoste mais numerosa, porque muitos ferirão e matarão um pequeno número com mais facilidade do que um pequeno número a muitos.
Em tal caso, que melhor medida podemos tomar do que mandar uma embaixada aos persas, a representar que os danosos efeitos desta guerra, no caso de mau êxito, também hão de chegar à Pérsia, e a pedir um auxílio maior?
- Ainda que venham todos os persas, nunca seremos superiores em número aos inimigos.
- Pois vê que melhor expediente se há de tomar.
- Em teu lugar, eu quanto antes mandaria fabricar para todo o exército, que está a chegar da Pérsia, armas iguais às que trazem os chamados homotimos; que vem a ser, uma loriga para o peito, um escudo para o braço esquerdo, uma espada ou machado para a mão direita. Se assim fizerdes, por-nos-eis em estado de, com toda a segurança, combater de perto com os adversários, que anteporão a fuga à resistência. Se alguns resistirem, nós os bateremos, vós e a cavalaria ireis sobre os fugitivos tão velozmente, que eles nem continuar a fuga, nem retroceder possam.
Ciaxares aprovou este arrazoado, não se lembrou de solicitar mais socorros, e entendeu na fabricação das mencionadas armas. Estavam quase prontas, quando chegou da Pérsia o exército auxiliar. Ciro reuniu os homotimos, e lhes falou neste teor:
- Amigos, vendo-vos assim armados e dispostos a pelejar e sabendo que vossos soldados só trazem armas para combater de muito longe, receei que vos sucedesse alguma desgraça, sendo poucos e batalhando sós. Vossas tropas gozam de boa saúde, fornecer-se-lhes-ão armas iguais às nossas. Da vossa parte está o incutir-lhes coragem. É obrigação de um general ser valoroso e diligenciar que o sejam seus soldados.
Os homotimos folgaram de ouvir este discurso, persuadidos que assim teriam maior número de companheiros no combate: e um deles, tomando a palavra, falou nestes termos:
- Talvez cause admiração, aconselhar eu a Ciro, que em nosso lugar fale ele, quando aos nossos soldados forem entregues as armas. Estou certo que um orador que tem grande poder para fazer bem e mal, insinua-se maravilhosamente no espírito de seus ouvintes. Suas dádivas, ainda que inferiores às que forem feitas por pessoas de igual hierarquia, são sempre tidas em maior estimação. Os persas folgarão muito mais com as exortações de Ciro do que com as nossas. Sabendo que esta dignidade de homotimos, a que são exaltados, é obra do filho do rei e seu general, tê-la-ão por mais sólida do que se pensarem que é obra nossa. Da nossa parte não há de haver míngua de cuidado, para de todas as maneiras aguçar seu ânimo. É utilidade nossa que eles se portem com valentia.
Ciro chamou todos os soldados persas e recitou este discurso:
- Persas, que nascestes e vos criastes no mesmo país que nós, e cujos corpos não são menos vigorosos, preciso é que vossas almas não sejam inferiores. Se na pátria não gozáveis das mesmas regalias que nós, não era porque vosso mérito estivesse em esquecimento, mas porque vossa posição na sociedade vos obrigava a curar dos meios de vossa subsistência. Destes meios é a mim que agora cumpre tratar com auxílio dos deuses. Agora, posto que de certo modo deveis reconhecer vossa inferioridade, tendes licença para usar das mesmas armas, arrostar os mesmos perigos, e no caso de triunfo exigir os mesmos prêmios, Até agora vossas armas, assim como as nossas, eram arco e seta; e se em seu manejo éreis menos destros que nós, não causara admiração, visto não terdes tanto vagar. Mas com estas armas, que aqui vedes, não seremos superiores. Cada um terá uma saia de malha adaptada ao peito, um escudo no braço esquerdo, como costumamos trazer, na mão direita uma espada ou machado, para ferir o inimigo sem receio de falhar o golpe. Por conseqüência, em que diferis de nós, a não ser no valor, o qual contudo não deveis mostrar em menor grau? Pois que mais razão temos nós do que vós para desejar a vitória, que tantos bens traz após si? Porventura releva mais a nós que a vós curar da vitória, que dá aos vencedores todos os tesouros dos vencidos? Finalmente, tendes ouvido o meu discurso. Olhai para as armas. Recebam-nas os que quiserem; vão ter com seus taxiarcas, para que os alistem na mesma companhia que nós. Os que quiserem ficar na classe de soldados mercenários, conservem as armas próprias desta classe.
Ciro acabou de falar. Os persas, persuadidos que justamente viveriam para sempre na miséria se não quisessem anuir ao convite do seu general, todos se alistaram e receberam as armas.
Com a notícia da aproximação dos inimigos, Ciro anima seu exército por diferentes meios
Enquanto não chegavam os inimigos, que já se dizia virem marchando, Ciro tentava fortificar os corpos de seus soldados por meio de exercício, ensinava-lhes a tática e infundia-lhes coragem. Primeiro que tudo, recebeu de Ciaxares servidores para o exército, e lhes ordenou que fornecessem o necessário a cada soldado. Depois disto, só permitiu às suas tropas exercícios concernentes à guerra, persuadido que para chegar a ser distinto em qualquer arte, é preciso não desviar para outra parte a atenção. Assim lhes proibiu o uso do arco e seta, só consentindo o exercício da espada, escudo e loriga. Desta arte soube dispô-los ou a batalhar de perto com o adversário, ou a confessar que são aliados indignos. Ora, tal confissão é ignominiosa, porque sabem que para nenhuma outra coisa são assalariados senão para batalhar a favor de quem recebem o soldo.
Afora isto, como sabia que os homens preferem sempre os exercícios em que se dá emulação, propôs às suas tropas aqueles que reputava serem-lhes vantajosos. Ao soldado raso recomendava a obediência a seus superiores, atividade, valor prudente, perícia nos trabalhos bélicos, elegância nas armas, e em tudo isto o desejo de louvor. Ao pentadarca recomendava que fosse tal qual um soldado intrépido, e que igual intrepidez fizesse por haver na quincúria a seu mando confiada. O mesmo recomendava ao decadarca acerca de sua decúria, ao logago a respeito de sua coorte, e da mesma sorte ao taxiarca. Igual recomendação fazia a cada um dos outros chefes, para que seu comportamento irrepreensível servisse de exemplo aos oficiais subalternos, e estes por seu turno contivessem seus subordinados nos limites de suas obrigações.
Aos taxiarcas que melhor adestrassem suas companhias, prometia premiá-los com a dignidade de quiliarca; do mesmo modo aos decadarcas, pentadarcas e soldados, que se distinguissem, com os postos de logago, de decadarca e pentadarca. Desta maneira os chefes viam executadas suas ordens, e todos folgavam com a esperança das recompensas. Ciro ainda os nutria com maiores esperanças, prometendo maiores galardões no caso de grande sucesso. Também em geral propunha prêmios às companhias, coortes, decúrias, quincúrias, que mais se singularizassem na pontual obediência a seus superiores. Eram estes prêmios os que mais quadravam à índole da soldadesca. Tais eram as propostas de Ciro, e a matéria dos exercícios militares.
Entendeu na construção de tantas barracas de campanha quantos eram os taxiarcas, dando-lhes suficiente tamanho para cada companhia. Cada companhia tinha cem homens. Esta forma de habitações comuns para cada companhia lhe parecia vantajosa; porque nutridos todos de igual alimento, nenhum soldado podia alegar por pretexto seu pior sustento, por na ocasião da batalha ter-se havido com covardia, ter-se mostrado inferior a seus camaradas. Também lhe parecia vantajosa, por assim adquirirem os soldados conhecimento uns dos outros; conhecimento que gera o respeito. Na presença de pessoas desconhecidas, o homem, como na escuridão, mais facilmente é arrastado à prática de ações censuráveis. Outra vantagem era conseguir a boa ordem das companhias, que por esta maneira estavam ordenadas como na ocasião de marcha. O mesmo se pode dizer a respeito das coortes, decúrias e quincúrias. Esta boa ordem lhe parecia conveniente para evitar a confusão, e, no caso dela, tomarem rapidamente seus postos; isto com a mesma facilidade com que um artista junta várias peças de pedra e madeira, espalhadas por diferentes partes, se tem perfeito conhecimento dos lugares a que compete cada uma delas. Era finalmente outra vantagem o desejo de se conservarem unidos, porque notava que os animais criados juntamente sentiam grande saudade no caso de separação. Tinha Ciro todo o cuidado em que seus soldados, sem estarem cobertos de suor, não jantassem nem ceassem. Para isto ou os levava à caça ou excogitava certos jogos violentos, ou os mesmos trabalhos precisos dirigia de maneira que produzissem o desejado efeito. Julgava isto vantajoso para acharem a comida mais saborosa, para tornar o corpo mais vigoroso e para fazer o cansaço mais suportável. Também lhe parecia que desta maneira os soldados seriam mais tratáveis uns para com os outros como os cavalos empregados nos mesmos trabalhos. De feito, nas pelejas sobressai sempre o valor dos soldados que se consideram bem exercitados.
Ciro mandou fazer para si um pavilhão onde coubessem à vontade os que ele fosse servido de admitir à sua mesa. Quase sempre convidava taxiarcas, não desdenhando, contudo, algumas vezes convidar logagos, decadarcas, pentadarcas e soldados, e até mesmo uma quincúria, uma decúria, uma coorte, ou uma companhia inteira. Este honroso convite tinha lugar quando via que se comportavam à medida de seus desejos. A ele e aos convidados as mesmas iguarias eram apresentadas, e a mesma atenção tinha com os servidores do exército. Esta classe de gente não lhe parecia digna de menos honra do que os arautos e embaixadores. Entendia que eles deviam ser fiéis, versados nas matérias da milícia, perspicazes, ativos, velozes, diligentes e animosos; e que além de deverem possuir todas as partes que constituem um homem valoroso, cumpria que estivessem na persuasão de que eram obrigados a executar sem a menor relutância as ordens do general.
Extenso diálogo entre Ciro e seus capitães
Ciro mostrava-se mui solícito em entreter os convidados com agradáveis conversações e exortações salutares. Houve um dia este diálogo, a que Ciro deu princípio desta maneira:
- Porventura julgais que nos são inferiores os homens que não foram educados como nós? Ou eles não diferirão de nós, quer nas assembléias, quer no campo de batalha?
- Qual poderá ser - respondeu Histaspes - seu comportamento no campo de batalha, ainda eu não posso dizer; nas assembléias confesso que são eles importunos. Não há muito tempo que Ciaxares enviou peças de carne e três ou mais porções tocaram a cada um de nós. O cozinheiro, fazendo a distribuição circularmente, principiou por mim a primeira roda; quando foi a segunda, eu lhe ordenei que principiasse pelo último e invertesse a ordem da distribuição. A este tempo um soldado, que estava no meio, disse gritando: - É injustiça nunca principiar pelos que estão no meio. - Eu, não querendo que houvesse motivo de queixa, chamei-o para junto de mim, e ele obedeceu com toda a formalidade militar. Chegou nossa vez, e como já os outros tinham tirado, só vinham as menores porções. Então ele, todo enfadado, disse consigo: - É coisa da fortuna ter eu vindo para este lugar. Eu disse-lhe: - Não vos aflijais; vai já começar a terceira roda, e tirareis a maior porção. Chega o cozinheiro, tiro eu primeiro, ele em segundo lugar, e seguindo-se o terceiro, pareceu o bocado deste maior que o seu; rejeitou o que tinha tirado para tirar outro: mas o cozinheiro pensando que ele não queria mais, continuou a distribuição antes que ele tirasse outro bocado. Ficou tão raivado com este caso, que, tendo já comido a porção que antes tomara, cheio de confusão e de cólera entornou o molho que ainda lhe restava. O logago, que estava próximo, presenciando isto, batia as palmas, e não se fartava de rir. Eu, que também não podia conter o riso, dissimulava tossindo. Ora, aqui tendes, Ciro, o procedimento de um dos nossos soldados.
Todos riram como era natural, ao ouvirem esta narração. Depois um taxiarca tomou a palavra e falou assim:
- Ó Ciro, parece que Histaspes deu com um homem importuno. Eu, depois que nos destes as necessárias instruções, e despedistes as companhias para nós as disciplinarmos segundo vossas mesmas instruções, principiei a exercitar uma coorte. Coloquei o logago em primeiro lugar, atrás dele um soldado mancebo, e depois os outros nos lugares que me pareceram convenientes. Eu postei-me à frente olhando para a coorte, e, quando julguei a propósito, mandei avançar. Então o soldado mancebo passa adiante do logago e marcha na vanguarda. - Que fazeis? disse-lhe eu. -Vou avançando, como mandastes. - Minha ordem era para todos avançarem e não somente vós. Então ele voltou-se para seus camaradas e disse: - Não ouvis dizer que marchem todos? - Todos passaram adiante do logago, e marchavam para o lugar que eu ocupava. O logago chama-os a seus postos, e eles clamam irritados: - A quem se há de obedecer? Um manda avançar, outro não consente. - Eu, que desde o princípio levara isto com paciência, tornei a formá-los, e disse que nenhum começasse a marchar sem ver marchar o que estava adiante, e que sua atenção toda devia estar em segui-lo. A este tempo veio ter comigo um mensageiro, que partia para a Pérsia, e me pedia uma carta, que eu escrevera para minha família. Eu, como o logago sabia onde ela estava, ordenei-lhe que fosse depressa buscá-la. Ele foi logo correndo; aquele soldado, de que há pouco falei, o seguiu com loriga e espada, toda a coorte o seguiu e veio com a carta. Tão estritamente minha coorte guarda vossas ordens. Os outros, como era natural, riram vendo vir a carta escoltada.
- Ó Júpiter e mais deuses - exclamou Ciro, - que camaradas nós temos, que tão reconhecedores são, que com uma pequena refeição se pode conciliar sua amizade, e tão obedientes alguns que executam as ordens antes que lhes sejam intimadas. E não sei que se possam desejar melhores soldados.
Ciro ria-se, e ao mesmo tempo elogiava assim os soldados. Um taxiarca, chamado Aglaitadas, homem de compleição austera, que acidentalmente se achava na barraca, fez esta pergunta:
- Pensais, Ciro, que é verdade o que dizem estes homens?
- Que necessidade têm eles de mentir?
- Para fazer rir, e por isso jactanciosos inventam contos desta ordem.
- Mais devagar, nada de aplicar-lhes a denominação de jactanciosos, denominação aplicável aos que se ufanam de mais ricos ou mais valentes do que são, e prometem fazer mais do que podem, e tudo isto com o fito do interesse. Aos que procuram divertir seus colegas sem interesse particular, sem dano de ninguém, por que se lhes não há de aplicar com mais justiça o epíteto de urbanos e facetos, do que o de jactanciosos?
Destarte Ciro defendia os que tinham com suas narrações divertido a assembléia. O que havia narrado a jocosa história da carta, apostrofou assim Aglaitadas:
- Sabendo vós que só queremos causar-vos júbilo, e não prejudicar-vos, assim mesmo nos tratais com tanta severidade; que vigorosos vitupérios não nos irrogaríeis, se tentássemos fazer-vos chorar, à maneira daqueles que de propósito fazem composições fúnebres em versos ou prosa para desafiar as lágrimas.
- Minhas vituperações são justas - disse Agitadas - e minha opinião é que quem provoca o riso aos amigos, comete uma ação mais criminosa do que o que lhes provoca as lágrimas. Se raciocinardes retamente, conhecereis que falo verdade. Não é sem fazer chorar seus filhos, que os pais lhes comunicam os ditames da prudência; não é sem fazer chorar seus discípulos, que os mestres lhes dão a útil instrução. As leis também fazem chorar os cidadãos, obrigando-os a ser justos. E poderíeis vós dizer que os que movem o riso fazem os homens vigorosos ou os fazem mais aptos para a administração particular ou pública?
- Vós, Aglaitadas, - disse então Histaspes - se quiserdes seguir meu conselho, com os inimigos tentareis de boa vontade fazer distribuição do choro, que julgais de tanto preço; e conosco que somos amigos repartireis com liberalidade o riso, que tanto desprezais. Hás de ter grande provisão dele em depósito, visto que o não consumis com os vossos amigos nem com vossos hóspedes. Portanto nenhum pretexto vale para no-lo não liberalizar.
- Vós quereis - disse Aglaitadas - tirar de mim matéria para vosso divertimento?
- Por Júpiter - respondeu o logago - isso era uma loucura. De vós mais fácil é tirar uma faísca de fogo, do que um ar de riso.
A este tempo todos os que conheciam o gênio de Aglaitadas riram, e o mesmo Aglaitadas não pôde deixar de sorrir.
- Injusto logago - disse então Ciro - corrompeis este homem tão sério, fazendo-o rir, sendo ele inimigo do riso.
Assim acabou esta cena. Então, Crisantas tomou a palavra e disse:
- Ó Ciro e vós todos que vos achais presentes, estou persuadido que nossos soldados não têm todos o mesmo valor; mas no caso de bom sucesso, todos hão de querer igual galardão. Ora, nada julgo mais injusto do que serem o forte e o fraco igualmente galardoados.
- Camaradas, a este respeito o melhor é ouvir o voto do exército; o qual decidirá, se, no caso de vitória, releva conferir a todos iguais galardões, ou serem estes segundo o valor de cada um.
- Mas para que haveis - disse Crisantas - de consultar o exército, e não prescrever logo como se há de fazer? Pois não tendes já instituído jogos e proposto prêmios?
- Aqui não se dá o mesmo caso - respondeu Ciro - o fruto desta expedição, obtido pelo trabalho dos soldados, será, segundo me parece, por eles considerado como coisa que lhes pertence. Enquanto a promoções posso fazê-las sem que eles me tachem de injusto, porque reconhecem em mim o direito de governá-los, atenta minha hierarquia.
- Pensais - disse Crisantas - que o exército reunido decide que as honras e dádivas sejam distribuídas segundo o mérito de cada um?
- Assim me parece - respondeu Ciro - não só porque da vossa parte haveis de aprovar a utilidade desta medida, mas também porque eles hão de envergonhar-se de se opor a que tenham maior galardão os soldados que tiverem feito mais relevantes serviços ao Estado. E penso que até os mais fracos hão de aplaudir esta medida em prol dos mais valorosos.
Era mormente por causa dos homotimos que Ciro queria fazer passar esta lei. Estava persuadido que eles se fariam mais valorosos se soubessem que a recompensa havia de emparelhar com seus atos de valor. E agora lhe parecia a ocasião de colher os votos, enquanto os homotimos estavam receosos de serem remunerados com os mesmos prêmios que a multidão. Todos, que estavam na barraca, eram de opinião que o objeto fosse submetido a discussão, e diziam que seria aprovado por todos que tinham consciência de seu valor. Então um taxiarca disse com certo ar de riso:
- Eu conheço um soldado raso que opinará pela desigualdade de distribuição.
Logo um perguntou quem era.
- É um camarada meu que sempre quer ter maior quinhão que os mais.
Logo outro perguntou:
- Também quer ter maior parte no trabalho?
- Isso não. Fui apanhado em mentira. Com toda a complacência ele concede que os outros tenham maior parte nos trabalhos.
Então Ciro recitou este discurso:
- Amigos, para ter um exército vigoroso e obediente, entendo que soldados tais como esse devem ser reformados; porque a generalidade dos soldados sendo tal que vão para onde os conduzem, homens virtuosos conduzi-los-ão à virtude, homens viciosos ao vício, os quais muitas vezes alcançam maior séqüito que os virtuosos. O vício, caminhando por uma estrada cheia de delícias, facilmente persuade a segui-lo; a virtude, indo por lugares escarpados, tem grande dificuldade em atrair os homens, especialmente quando outros os convidam para uma estrada de fácil trânsito, em tudo suave. Ora, os que são viciosos unicamente por covardia e indolência, eu os comparo aos zangãos, que prejudicam seus companheiros na repartição de víveres: mas os que além de serem indolentes reclamam com despejo maior recompensa, dão terrível exemplo a seus camaradas. E como muitas vezes estes homens viciosos ganham certa influência entre os outros, com todo o empenho é preciso bani-los do corpo do exército. Não cureis de preencher as companhias com cidadãos; de todas as nações alistai os mais robustos, que mais honra vos dêem; assim como fazeis a respeito dos cavalos, desprezando os do reino, e escolhendo os melhores. Quero provar com exemplos a utilidade desta doutrina. Como pode correr com velocidade um carro puxado por cavalos vagarosos? Como pode reinar a justiça em um exército, sendo injustos os soldados? Como é possível ser uma casa bem administrada, se forem maus os domésticos? Quão menor dano recebe, não os tendo, do que tendo domésticos injustos que a perturbam? Amigos, deveis saber que aproveita a expulsão dos soldados viciosos, não só por se ficar livre deles, mas os que ainda restarem com algum vício tratarão de expurgar-se; e os virtuosos, vendo os viciosos cobertos de opróbrio, continuarão a cultivar a virtude com muito maior ardor.
Ciro pôs termo ao seu discurso, que mereceu a aprovação de todo o auditório.
Ciro entrou de novo a gracejar. Tendo notado que um logago fizera sentar junto de si um homem de longas barbas e de mui feio semblante, chamou-o pelo seu nome e lhe disse:
- É por sua gentileza que vós, Sambaulas, à maneira dos gregos, trazeis em vossa companhia este mancebo, que se sentou ao vosso lado?
- É verdade, folgo muito com sua presença e convivência.
Ao ouvirem estas palavras todos olharam para o tal mancebo, e vendo sua extrema fealdade puseram-se a rir.
- Ó Sambaulas - disse um deles - que serviço vos prestou este homem para captar a vossa afeição?
- Eu vo-lo digo, camaradas. Â minha chamada, ou fosse de dia ou de noite, nunca este homem alegou o menor pretexto, e sempre a passos acelerados me obedecia. Intimadas minhas ordens, nunca vi que ele as executasse sem suar. Demais, com exemplos e não com palavras fez que os doze se conformassem com ele em obedecer com a mesma pontualidade.
- Oh, tendo ele tão grandes qualidades - disse um dos circunstantes - não o beijais, como se faz entre parentes?
- Não - acudiu o feio - ele não gosta de trabalhos penosos. Se ele me beijasse, isso faria as vezes de todos os exercícios.
Desta maneira se entretinham em assuntos sérios e jocosos. Finalmente feitas as terceiras libações, e invocados os deuses, dissolveu-se a assembléia e cada um se recolheu ao seu leito.
Discussão concernente aos prêmios com que deviam ser recompensados os serviços
No dia seguinte, Ciro reuniu seus soldados e lhes falou assim:
- Amigos, está a chegar o dia da batalha, os adversários vêm-se aproximando. Se ficarmos vitoriosos, cairão em nosso poder as pessoas e os tesouros de nossos inimigos; se formos vencidos (também nos devemos lembrar disso) tudo que possuímos irá parar às mãos dos inimigos. Portanto é preciso saber que quando os combatentes estão persuadidos que não poderão obter o triunfo sem que cada um ponha de sua parte todos os esforços, o triunfo é infalível; porque, em tal caso, tudo que é necessário fazer-se tem pronta execução. Pelo contrário, se cada um dos soldados pensar que pode entregar-se ao descanso, porque os outros suprirão suas faltas, sabei que todos eles experimentarão todos os males reunidos. Os deuses têm estatuído que os que carecem de estímulos para agir com valor sejam mandados por outros. Portanto levante-se algum de vós e declare que meios julga mais favoráveis para animar os soldados à pratica de ações valorosas, se conferindo os prêmios aos que maiores perigos arrostarem, se premiando a todos sem distinção.
Levantou-se o homotimo Crisantas, homem de fraca estatura e pouca gentileza, mas de consumada prudência, e assim falou:
- Estou na persuasão, ó Ciro, de que discutis esta matéria, não porque pensais que os maus e bons devam ser igualmente recompensados, mas para experimentar se haverá alguém que sinta que sem praticar nenhuma ação meritória, deve ter parte nos bens obtidos pelo valor dos outros. Eu não tenho pés velozes nem mãos robustas; por isso, a ser julgado por minhas ações corpóreas, não poderei ser o primeiro, nem o segundo, e parece-me que nem o milésimo e talvez nem o décimo milésimo. Mas estou bem certo que, se os mais vagarosos se houverem com coragem, também eu terei a parte que por justiça me pertencer; porém, se os covardes nada fizerem, e agirem sem coragem os que têm forças e valor, receio ter quinhão diverso dos que a vitória costuma dar, e quinhão mais avultado do que eu quereria.
Acabado o discurso de Crisantas, levantou-se Feraulas, com cuja familiaridade Ciro se aprazia, apesar de sua baixa estirpe. Sua presença era grave e indicava grande coragem. Feraulas falou assim:
- Ó Ciro e mais persas, que presentes vos achais, agora penso eu que todos nós somos igualmente concitados a porfiar pelo prêmio, que há de adjudicar-se aos feitos de valor. O mesmo alimento é para todos, todos têm entrada nas mesmas assembléias, a todos são propostas as mesmas recompensas, a obrigação de obedecer aos superiores a todos é prescrita, e noto que Ciro condecora a pontual obediência. Mostrar denodo no campo da batalha não é caracter que convenha a um e a outro não, em todos é reputado do maior mérito. Agora se nos apresenta um modo de pelejar em que todos os homens são versados naturalmente, assim como também os animais têm cada um sua maneira de combater, ensinada pela natureza. Assim o boi fere com o chavelho, o cavalo com as patas, o cão com a boca, o javali com as presas. Todos eles sabem evitar os golpes, e isto sem ter freqüentado um só mestre. Por isso desde a infância eu sabia aparar os golpes de que era ameaçado, e na falta de outra coisa em que os aparasse, estendia os braços e impedia os golpes quanto me era possível. Ninguém me ensinava isto: pois até era castigado quando o fazia. Sendo eu ainda criança, onde quer que visse uma espada, lançava mão dela, sabia por onde a havia de segurar, ensinado só pela natureza, como vos digo. Esta e outras coisas fazia eu sem permissão de meus pais, mas compelido pela força do instinto. Se estava em lugar retirado, tudo a que eu podia chegar era vítima dos golpes de minha espada; e isto, além de me ser natural, como o andar e correr, era objeto de prazer. Ora, já que temos armas para cujo uso se requer mais ânimo que arte, por que não havemos de entrar com vontade em emulação com os homotimos? Os prêmios de valor são iguais, e todavia não é igual a fortuna que vamos expor ao perigo: eles expõem uma vida cheia de honras, que são o maior prazer do humano existir; nós só expomos uma vida obscura, cheia de trabalhos, dificílima de levar. O que em mim principalmente gera maior emulação, é que Ciro há de ser o juiz, Ciro que não julga com inveja, Ciro, atrevo-me a jurá-lo, que não estima menos os soldados valentes do que a si próprio, e que tem mais satisfação em repartir com eles seus bens do que em desfrutá-los ele próprio. Eu bem sei que os homotimos se ufanam de ter aprendido a suportar a fome, a sede, o frio; ignoram que também isso nos foi ensinado pela mais hábil mestra, qual é a necessidade. É verdade que eles também trazem armas; porém tem-se aplicado toda a indústria a serem mui leves. A nós, obrigados a andar e a correr com grande peso de armas, já estas nos parecem antes asas do que cargas. Enfim, declaro, Ciro, que hei-de exigir uma recompensa que esteja em harmonia com os serviços que prestar. A vós, companheiros, exorto-vos a entrar na lide com os homotimos, que estão empenhados em contender conosco.
Acabando Feraulas de falar, levantaram-se muitos para apoiar os discursos de ambos os oradores; e foi assentado que os galardões se conferissem segundo o mérito de cada um, e Ciro fosse juiz. Assim terminou este negócio.
Exercícios militares à imitação de batalhas campais
Passado algum tempo, Ciro convidou para uma ceia um taxiarca com toda a sua companhia. Tinha ele visto que este taxiarca dividira sua gente em dois grupos, e os postara em ordem de batalha um de cada lado. A toda a companhia deu lorigas e escudos: a um dos grupos forneceu canas grossas, a outros disse que apanhassem torrões e atirassem. Estando tudo pronto, deu sinal para começar a briga. Então os que despediam torrões, com eles iam acertar nas lorigas, escudos, coxas e pernas de seus antagonistas: mas ao aproximarem-se uns dos outros, o grupo armado de canas feria as coxas, as mãos, as pernas dos contrários, e também o dorso e as orelhas dos que se abaixavam para apanhar torrões: e por fim os iam perseguindo com grande hilaridade e dando fortes gargalhadas. Os soldados perseguidos por seu turno se armavam de canas e faziam o que lhes acabavam de fazer. Ciro folgava muito, notando a indústria do taxiarca, e a obediência dos soldados, advertindo que estes exercícios adestravam e divertiam os soldados, e também que ficavam vencedores os que vinham armados como os persas. Convidou-os para a ceia, e, vendo uns com as pernas outros com as mãos ligadas, perguntou o que lhes tinha acontecido. Responderam que tinham sido feridos com torrões. Tornou a perguntar se quando estavam perto ou longe de seus adversários. Responderam que quando estavam longe, e que ao aproximarem-se, tudo era divertimento. Os que tinham sido feridos com canas, clamavam que para eles não fora divertimento, e ao mesmo tempo mostravam as feridas, uns nas mãos, outros no pescoço, alguns no rosto. Então, como era natural, puseram-se a rir uns dos outros. No dia seguinte viu-se o campo cheio de soldados entregues ao mesmo exercício; e se entregaram todos a ele, sempre que não havia objeto mais sério em que cuidar.
Um dia viu que um taxiarca vinha da parte do rio para o jantar com sua companhia, toda formada em uma coluna, e, quando julgou a propósito, ordenou que a segunda, terceira e quarta coortes avançassem, e que cada um dos logagos dividisse em duas partes sua coorte, de modo que os decadarcas vinham a ficar na primeira linha. Ordenou depois que tornassem a dividir suas coortes, de maneira que também os pentadarcas vinham a ocupar a primeira linha. Chegando à porta da tenda, mandou que fossem entrando nesta ordem, a primeira coorte, a segunda, a terceira e quarta, e na mesma ordem os fez apresentar à mesa. Ciro, penhorado da paciência, disciplina e zelo do taxiarca, o convidou para a ceia com toda a sua companhia. Então outro taxiarca, que ali se achava, disse para Ciro:
- Não convidais também a minha companhia? Ela tem os mesmos exercícios antes da ceia, e acabada esta, o oficial da última coorte sai em primeiro lugar, de maneira que os soldados da retaguarda vão agora ocupando a vanguarda. Segue-se a segunda coorte, depois a terceira, depois a quarta. Destarte aprendem a fazer uma retirada em ordem. Quando saímos a passeio, se marchamos para o oriente, coloco-me eu à frente, e segue-me a primeira coorte, depois a segunda, terceira e quarta, as decúrias e quincúrias; se vamos para o ocidente, são os últimos soldados que marcham à frente. Apesar desta inversão, que me põe na retaguarda, todos me obedecem igualmente; e acostumam-se assim a marchar em todos os postos, com a mesma obediência.
- Ordenais sempre essas evoluções? - perguntou Ciro.
- Todas as vezes que vamos cear.
- Eu vos convido, pois, visto que exercitais os soldados antes e depois da ceia, de dia e de noite; com o exercício lhes aumentais as forças do corpo, com a disciplina as da alma. E tendo vós feito evoluções duplas, é também justo que tenhais um banquete duplo.
- Mas não há de ser no mesmo dia, só no caso que nos deis estômago duplo.
Tal fim teve esta reunião. No dia seguinte e no imediato, Ciro convidou esta companhia, como tinha prometido; e as outras, aspirando a igual honra, trataram de imitá-la.
Ciaxares e Ciro dão audiência aos embaixadores da Índia - Determina-se uma expedição contra a Armênia.
Um dia que Ciro passava revista às suas tropas, chegou um mensageiro de Ciaxares, que lhe dava notícias da vinda de uma embaixada da Índia, e lhe ordenava que voltasse quanto antes.
- Por ordem de Ciaxares - disse o mensageiro - trago-vos aqui um riquíssimo fato. Ele quer que vos apresenteis aos embaixadores luzidissimamente vestido, para que eles notem como vós lhes apareceis.
Ciro ordenou ao primeiro taxiarca que se postasse a frente, formando a companhia em uma só coluna, e colocando-se à direita. Depois mandou ao mesmo que intimasse esta ordem à segunda, e desta maneira fosse passando por todas elas. Assim se executou prontamente. Em pouco tempo o exército apresentava trezentos de frente, que era o número dos taxiarcas, e cem de fundo. Formado assim o exército, postou-se à frente e principiou a marchar aceleradamente. E advertido que pela rua que deitava para o palácio não cabiam trezentos homens de frente, mandou que as primeiras dez companhias o seguissem, atrás destas fossem as dez imediatas, e assim sucessivamente. Despediu dois ajudantes para a boca da rua, a fim de anunciar o que deviam fazer no caso que o ignorassem. Chega às portas de Ciaxares, e manda que o primeiro taxiarca forme sua companhia com doze de fundo, e coloque à frente os dodecarcas junto do palácio. Esta ordem passou às outras companhias e foi executada. Ciro entrou no palácio, e todo vestido à persa, apresentou-se a Ciaxares. Este, assim que o viu, folgou de sua prontidão, pelo contrário da simplicidade de seu vestuário e disse-lhe:
- Porventura quereis aparecer dessa maneira aos índios? Eu desejava que vos apresentásseis primorosamente vestido. Era honra para mim verem eles um sobrinho meu com toda a magnificência.
Ao que Ciro replicou:
- Porventura se me apresentasse vestido de púrpura, adornado de braceletes e colares, mas não prontamente, honrava-vos mais do que obedecendo-vos com tanta prontidão e com um exército tão numeroso e tão bem disciplinado, ornado eu e meus soldados com os enfeites do suor e da diligência?
Ciaxares, vendo a solidez destas reflexões, mandou entrar os índios. Estes disseram:
- Somos enviados pelo rei da Índia, que manda saber qual é a causa da guerra entre os medos e os assírios. Ouvida a vossa resposta, partiremos para a Assíria, para nos informarmos do mesmo. Também vimos encarregados de declarar a ambos que nosso soberano seguirá a parcialidade do ofendido.
- Nós - respondeu Ciaxares - não ofendemos o rei da Assíria. Ide, e ouvi o que ele diz.
Ciro perguntou se lhe era lícito fazer uma advertência, e com permissão de Ciaxares, falou assim:
- Dizei ao rei dos índios (no caso que mereça a aprovação de Ciaxares) que nós o elegemos para juiz de nossa contenda, se o assírio declarar que foi por nós ofendido.
Acabada a audiência, ausentaram-se os embaixadores. Saíram os índios, e Ciro falou assim:
- Ciaxares, quando saí da pátria, não trouxe comigo muito dinheiro, e só me resta uma pequeníssima parte. Gastei-o com os soldados. Talvez o que digo vos espante, fornecendo vós seu sustento; mas notai que o consumi em honras e liberalidades com os soldados de merecimento somente. Estou persuadido que todos que quiserem ter bons companheiros em seus trabalhos, consegui-lo-ão melhor com exortações e benefícios do que obrigando e maltratando. Do mesmo modo, o general, para ter soldados animosos, há de captar sua afeição com bons modos e liberalidades. O general deve procurar que os soldados lhe sejam afetos, não invejem sua próspera fortuna nem o desamparem na adversa. Pensando assim, vejo que preciso de dinheiro; mas, neste caso, sendo tão grandes vossas despesas, não tem lugar recorrer só a vós. Consideremos nós ambos o objeto de maneira que vós não venhais a sentir a míngua de dinheiro; pois bem sei. que, estando providos vossos cofres, também não sentirei sua falta, especialmente sendo para fins que revertam em proveito vosso. Há pouco vos ouvi dizer que o rei da Armênia começou a tratar-vos com desprezo, quando teve notícia que os inimigos marchavam contra nós; que não enviou tropas nem pagou o tributo que devia.
- É verdade, mas eu não sei se é melhor partir contra ele e obrigá-lo a satisfazer o tributo, se deixá-lo por enquanto, para não dar lugar a que ele vá aliar-se com os outros inimigos.
- Seus territórios estão abertos?
- Não são muito fortificados. Há porém montanhas onde pode pôr-se em segurança a si e seus tesouros, salvo no caso de um apertado bloqueio, como outrora fizera meu pai.
- Se me quiserdes enviar com suficiente número de cavaleiros, cuido que com o socorro dos deuses hei-de conseguir que ele vos mande tropas e vos pague o tributo; e até espero que há de tornar-se mais nosso amigo do que agora é.
- Estou convencido que ele mais depressa há de ceder a vós do que a mim. Tenho ouvido dizer que alguns de seus filhos foram vossos companheiros na caça e por isso é provável que vão ter convosco; e ficando estes em vosso poder, as coisas correrão à medida de nossos desejos.
- Parece-vos que devemos ocultar este projeto?
- Sim, para os apanhar desprevenidos.
- Ouvi, pois, se quereis saber minha opinião. Muitas vezes tenho caçado nas fronteiras que separam vosso reino do da Armênia, e já tenho levado alguma cavalaria vossa.
- O mesmo podeis agora fazer sem produzir desconfiança aos inimigos; mas se levardes mais tropas do que costumais, infalivelmente suspeitarão.
- Mas que belo pretexto até para os nossos! Anunciar-se-á que eu projeto uma grande caçada, e publicamente pedirei parte de vossa cavalaria.
- Dizeis muito bem. Eu só vos darei um pequeno número de cavalos, declarando que tenciono ir aos castelos que demoram do lado da Assíria; e na verdade eu quero ir fortificá-los o mais que for possível. Mas quando partirdes com vossas tropas e tiverdes caçado dois dias, enviar-vos-ei suficiente número de cavalos e infantes, com que vós logo vos poreis em marcha. Eu, com as restantes forças, postar-me-ei perto, para me apresentar quando for preciso.
Logo Ciaxares reuniu sua cavalaria e infantaria, e mandou adiante para os castelos carros de víveres. Ciro fez sacrifícios pela boa jornada e mandou pedir a Ciaxares os cavaleiros mais jovens; mas não obstante a vontade de muitos, só um pequeno número lhe foi concedido.
Ciaxares e Ciro partem para a Armênia sob o pretexto de uma caçada
Já Ciaxares ia avançando para os mencionados castelos com suas forças de pé e de cavalo, quando Ciro, depois de sacrificar aos deuses pela felicidade da expedição da Armênia, partiu, como se fora uma caçada. Pouco tinha marchado quando uma lebre ia fugindo, e uma águia que ia voando com bom agouro, baixou sobre ela, arrebatou-a nos ares, e sobre um outeiro devorou a presa. Ciro folgou com este prodígio, adorou Júpiter, e disse para quem estava presente:
- A caçada será feliz, se Deus quiser.
Chegando às fronteiras, deu princípio à caçada, como costumava. O grosso da infantaria e cavalaria foi adiante bater a caça, enquanto que gente escolhida topava com os animais que iam fugindo, perseguia-os, e assim apanhava muitos javalis, veados, cabras monteses e asnos bravios. Desta última espécie de animais ainda hoje há muitos nestes lugares. Concluída a caçada, aproximaram-se das fronteiras da Armênia e cearam. No dia seguinte tornaram a caçar, chegando aos montes que desejavam, e cearam, terminada a caçada. Advertido que o exército de Ciaxares vinha chegando, lhe enviou um mensageiro, solicitando que ceassem na distância de duas parasangas. Pensava que assim surpreenderia o inimigo. Também pedia ao chefe viesse juntar-se com ele tanto que a ceia terminasse. Depois da ceia convocou os taxiarcas, e presentes que eles foram, lhes falou assim:
- Amigos, o rei da Armênia era antes aliado e tributário de Ciaxares; agora, como vê que os assírios nos fazem guerra, não quer fornecer tropas nem pagar o tributo. É ele que havemos de caçar, e eu vou dizer como devemos agir. Vós, Crisantas, depois de algum repouso, marchai com metade do exército persa, e ide ocupar as montanhas para onde dizem que o rei costuma fugir quando se vê em perigo. Dar-te-ei guias. Dizem que aquelas montanhas são mui silvosas, de maneira que não podem observar vossos movimentos. Todavia despedi adiante do exército alguns soldados velozes, que no trajo e número possam ser tidos por ladrões, os quais, se encontrarem alguns armênios, apanharão os que puderem, evitando assim que eles vão dar parte a seus compatriotas, e os que não puderem aprisionar, afugentá-los-ão aterrados, de sorte que, não podendo eles ver o grosso do exército, só tomarão medidas relativas a ladrões. Eis o papel que tendes de representar. Eu, apenas clarear o dia, pondo-me à frente de metade da infantaria e de toda a cavalaria, marcharei pela planície para o palácio do rei. Se se opuser, necessário é combater: se se retirar, é preciso persegui-lo; se fugir para as montanhas, pertence-vos não deixar escapar um só armênio. É uma verdadeira caçada; nós batemos o campo, vós armais as redes. Lembrai-vos que, antes de agitar a caça, é necessário impedir todas as passagens, e que os caçadores que as ocuparem devem estar escondidos para os animais não retrocederem.
- Crisantas, não façais agora o que algumas vezes fazíeis pela paixão que vos dominava pela caça. Muitas vezes passastes toda a noite sem pregar olho. É preciso dar algum repouso aos soldados, para que possam resistir ao sono. Vós também sem guias costumáveis andar divagando por cima das montanhas, e correr sobre os animais para onde quer que eles fugissem. Agora não entreis em lugar de difícil trânsito, ordenai a vossos guias que vos conduzam pelo caminho mais fácil, no caso que não haja outro muitíssimo mais curto. Para um exército o mais curto é o mais suave. Não corrais, como costumais, por cima dos montes, adotai marcha moderada. Também é bom que alguns soldados mais fortes e velozes algumas vezes façam alto; os quais, passado que for o exército, acelerem o passo e animem os outros a segui-los.
Acabado este discurso, Crisantas, ufano com a missão de que Ciro acabava de onerá-lo, recebeu os guias, deu as ordens necessárias aos que haviam de partir com ele e entregou-se ao repouso. E depois que dormiu algum tempo, marchou para as montanhas.
Ao alvorecer, Ciro enviou ao rei da Armênia um arauto com esta ordem:
- Ciro vos ordena que quanto antes lhe forneçais tropas, e vades pagar-lhe o tributo. Se vos perguntar onde eu estou, dizei-lhe a verdade, que nas fronteiras. Se vos perguntar se marcho pessoalmente, dizei-lhe também a verdade, que não sabeis. Se vos perguntar quais são nossas forças, dizei-lhe que mande convosco alguém para se informar.
Ciro houve por mais humano prevenir assim o rei da Armênia. E dispostas o melhor possível suas tropas para marchar e para combater, se necessário fosse, começou a marcha. Deu ordem aos soldados para que a ninguém maltratassem, e quando encontrassem algum armênio, lhes infundissem confiança, e os exortassem a vir ao seu acampamento vender comestíveis e bebidas. Ler mais...
0 Comentários
Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião dos administradores do blog Tifsa Brasil.
Se o seu comentário estiver de acordo com nossas diretrizes de postagem, ele aparecerá online após nossa revisão.