O desaparecimento misterioso de Lutero excitara consternação em toda a Alemanha. Ouviam-se por toda parte indagações a respeito dele. Circulavam os mais disparatados rumores, e muitos criam que ele tivesse sido assassinado. Houve grande lamentação, não somente por seus amigos declarados, mas por milhares que não haviam abertamente assumido atitude pela Reforma. Muitos se comprometiam, sob juramento solene, a vingar-lhe a morte.
Os chefes romanistas viram com terror até que ponto haviam atingido os sentimentos contra eles. Conquanto a princípio jubilosos com a suposta morte de Lutero, logo desejaram ocultar-se à ira do povo. Seus inimigos não haviam sido tão perturbados com seus arrojadíssimos atos enquanto se achava entre eles, como o foram com o seu afastamento. Aqueles que em sua cólera haviam procurado destruir o ousado reformador, estavam cheios de temor agora que ele se tornara um cativo indefeso. “O único meio que resta de nos salvarmos”, disse um, “consiste em acendermos tochas e sairmos à procura de Lutero pelo mundo inteiro, a fim de reintegrá-lo à nação que por ele está chamando.” — D’Aubigné. O edito do imperador parecia tornar-se impotente. Os legados papais estavam cheios de indignação, ao ver que o edito se impunha muito menos à atenção do que a sorte de Lutero.
As notícias de que ele estava em segurança, embora prisioneiro, acalmavam os temores do povo, ao passo que ainda mais suscitavam o entusiasmo a seu favor. Seus escritos eram lidos [186] com maior avidez do que nunca dantes. Um número crescente de pessoas aderia à causa do heróico homem que, em tão terrível contenda, defendera a Palavra de Deus. A Reforma estava constantemente ganhando forças. Germinara por toda parte a semente que Lutero lançara. Sua ausência cumpriu uma obra que sua presença não teria conseguido realizar. Outros obreiros sentiram nova responsabilidade, agora que seu grande chefe fora removido. Com nova fé e fervor, avançaram para fazer tudo que estivesse em seu poder, a fim de que não fosse impedida a obra tão nobremente iniciada.
Mas Satanás não estava ocioso. Passou a tentar o que havia experimentado em todos os outros movimentos de reforma — enganar e destruir o povo apresentando-lhe uma contrafação em lugar da verdadeira obra. Assim como houve falsos cristos no primeiro século da igreja cristã, surgiram também falsos profetas no século XVI.
Alguns homens, profundamente impressionados com a agitação que ia pelo mundo religioso, imaginavam haver recebido revelações especiais do Céu, e pretendiam ter sido divinamente incumbidos de levar avante, até à finalização, a Reforma que, declaravam, apenas fora iniciada debilmente por Lutero. Na verdade, estavam desfazendo o mesmo trabalho que ele realizara. Rejeitavam o grande princípio que era o próprio fundamento da Reforma — que a Palavra de Deus é a todo-suficiente regra de fé e prática; e substituíram aquele guia infalível pela norma mutável, incerta, de seus próprios sentimentos e impressões. Por este ato de pôr de lado o grande indicador do erro e falsidade, fora aberto o caminho para Satanás governar os espíritos como melhor lhe aprouvesse.
Um desses profetas pretendia haver sido instruído pelo anjo Gabriel. Um estudante que se lhe unira, abandonara seus estudos declarando que fora pelo próprio Deus dotado de sabedoria para expor Sua Palavra. Outros que naturalmente eram propensos ao fanatismo, a eles se uniram. A ação destes entusiastas criou não pequeno excitamento. A pregação de Lutero [187] tinha levado o povo em toda parte a sentir a necessidade de reforma, e agora algumas pessoas realmente sinceras foram transviadas pelas pretensões dos novos profetas.
Os dirigentes do movimento seguiram para Wittenberg e instaram com Melâncton e seus cooperadores para que aceitassem suas pretensões. Disseram: “Nós somos enviados por Deus para instruir ao povo. Temos familiarmente entretido conversas com o Senhor; sabemos o que acontecerá; em uma palavra, somos apóstolos e profetas, e apelamos para o Dr. Lutero.” — D’Aubigné.
Os reformadores estavam surpresos e perplexos. Com semelhante elemento não haviam ainda deparado, e não sabiam o que fazer. Disse Melâncton: “Há efetivamente espírito extraordinário nestes homens; mas que espírito?
De um lado acautelemo-nos de entristecer o Espírito de Deus, e de outro, de sermos desgarrados pelo espírito de Satanás.” — D’Aubigné.
O fruto do novo ensino logo se tornou manifesto. O povo foi levado a negligenciar a Bíblia, ou lançá-la inteiramente à parte. Nas escolas estabeleceu-se confusão. Estudantes, repelindo toda restrição, abandonavam seus estudos e retiravam-se da universidade. Os homens que se julgavam competentes para reanimar e dirigir a obra da Reforma, conseguiram unicamente levá-la às bordas da ruína. Os representantes de Roma recuperaram então sua confiança, e exclamaram exultantemente: “Mais uma luta, e tudo será nosso.” — D’Aubigné.
Lutero, em Wartburgo, ouvindo o que ocorrera, disse com profundo pesar: “Sempre esperei que Satanás nos mandaria esta praga.” — D’Aubigné. Percebeu o verdadeiro caráter desses pretensos profetas, e viu o perigo que ameaçava a causa da verdade. A oposição do papa e do imperador não lhe tinha causado perplexidade e angústia tão grandes como as que experimentava agora. Dos professos amigos da Reforma haviam surgido seus piores inimigos. As mesmas verdades que lhe haviam [188] trazido tão grande alegria e consolação, estavam sendo empregadas para provocar contenda e criar confusão na igreja.
Na obra da Reforma, Lutero fora compelido à frente pelo Espírito de Deus, e levado além do que ele pessoalmente teria ido. Não se propusera assumir as posições que assumiu, nem efetuar mudanças tão radicais. Não fora senão o instrumento nas mãos do Poder infinito. Contudo, muitas vezes estremecia pelos resultados de seu trabalho. Dissera uma vez: “Se eu soubesse que minha doutrina tivesse prejudicado a um homem, um único homem, por humilde e obscuro que fosse — o que não pode ser, pois que é o próprio evangelho — eu preferiria morrer dez vezes a não retratar-me.” — D’Aubigné.
E então, Wittenberg mesmo, o próprio centro da Reforma, estava rapidamente a cair sob o poder do fanatismo e da anarquia. Esta terrível condição não resultara dos ensinos de Lutero; mas por toda a Alemanha seus inimigos o estavam acusando disso. Em amargura d’alma ele algumas vezes perguntou: “Poderá, então, ser esse o fim desta grande obra da Reforma?” — D’Aubigné. De novo, lutando com Deus em oração, encheu-se-lhe de paz a alma. “A obra não é minha, mas Tua”, disse ele; “não permitirás que ela se corrompa pela superstição ou fanatismo.” Mas o pensamento de permanecer por mais tempo afastado do conflito, numa crise tal, tornou-se-lhe insuportável. Resolveu voltar a Wittenberg.
Sem demora iniciou a perigosa viagem. Achava-se sob a condenação do império. Os inimigos tinham a liberdade de tirar-lhe a vida; aos amigos era vedado auxiliá-lo ou abrigá-lo. O governo imperial estava adotando as mais enérgicas medidas contra seus adeptos. Ele, porém, via que a obra do evangelho estava perigando, e em nome do Senhor saiu destemidamente para batalhar pela verdade.
Em carta ao eleitor, depois de declarar seu propósito de deixar Wartburgo, Lutero disse: “Seja Vossa Alteza cientificado de que vou a Wittenberg sob uma proteção muito mais elevada do que a de príncipes e eleitores. Não penso em solicitar o apoio de Vossa Alteza, e longe de desejar sua proteção, eu mesmo, [189] antes, o protegerei. Se eu soubesse que Vossa Alteza poderia ou quereria proteger-me, não iria de maneira nenhuma a Wittenberg. Não há espada que possa favorecer esta causa. Deus somente deve fazer tudo sem o auxílio ou cooperação do homem. Aquele que tem a maior fé, é o que é mais capaz de proteger.” — D’Aubigné.
Em segunda carta, escrita em caminho para Wittenberg, Lutero acrescentou: “Estou pronto para incorrer no desagrado de Vossa Alteza e na ira do mundo inteiro. Não são os habitantes de Wittenberg minhas ovelhas? Não as confiou Deus a mim? E não deveria eu, sendo necessário, expor-me à morte por sua causa? Demais, temo ver um terrível levante na Alemanha, pelo qual Deus punirá nossa nação.” — D’Aubigné.
Com grande cautela e humildade, se bem que com decisão e firmeza, entrou em seu trabalho. “Pela Palavra”, disse ele, “devemos vencer e destruir o que foi estabelecido pela violência. Não farei uso da força contra os supersticiosos e incrédulos.
Ninguém deve ser constrangido. A liberdade é a própria essência da fé.” — D’Aubigné.
Logo rumorejou em toda Wittenberg que Lutero voltara, e que deveria pregar. O povo congregou-se de todas as direções, e a igreja transbordou. Subindo ao púlpito, com grande sabedoria e mansidão, instruiu, exortou e reprovou. Abordando o procedimento de alguns que haviam recorrido a medidas violentas para abolir a missa, disse:
“A missa é coisa má; Deus Se opõe a ela; deve ser abolida; e eu gostaria que no mundo inteiro fosse substituída pela Ceia do evangelho. Mas que ninguém seja dela arrancado pela força. Devemos deixar o caso nas mãos de Deus. Sua Palavra deve agir, e não nós. E por que assim? perguntareis. Porque eu não retenho o coração dos homens em minhas mãos, como o oleiro retém o barro. Temos o direito de falar: não temos o direito de agir. Preguemos; o resto pertence a Deus. Devesse eu empregar a força e que ganharia? Momice, formalidade, arremedos, ordenanças humanas e hipocrisia.
Mas não haveria [190] sinceridade de coração, nem fé, nem caridade. Onde faltam estas três, falta tudo, e eu nada daria por semelhante resultado.
Deus faz mais por Sua Palavra só, do que vós e eu e o mundo inteiro por nossa força unida. Deus Se apodera do coração, e tomando o coração, tudo está ganho.
“Pregarei, discutirei, escreverei; mas não constrangerei a ninguém, pois a fé é ato voluntário. Vede o que fiz. Levantei-me contra o papa, seus partidários e as indulgências, mas sem violência nem tumulto. Apresentei a Palavra de Deus; preguei e escrevi — isto é tudo que fiz. E, no entanto, enquanto eu dormia,
a Palavra que eu pregara subverteu o papado, de maneira tal que nunca um príncipe ou imperador lhe vibrou semelhante golpe. E, contudo, nada fiz; a Palavra só, fez tudo. Se eu houvesse querido apelar para a força, a Alemanha inteira teria sido talvez inundada de sangue. Mas qual seria o resultado? Ruína e desolação tanto para o corpo como para a alma. Portanto, conservei-me quieto e deixei a Palavra sozinha correr através do mundo.” — D’Aubigné.
Dia após dia, durante uma semana inteira, Lutero continuou a pregar a ávidas multidões. A Palavra de Deus quebrou o encanto da excitação fanática. O poder do evangelho trouxe de novo para o caminho da verdade o povo transviado.
Lutero não tinha desejo de encontrar-se com os fanáticos, cujo proceder fora a causa de tão grande mal. Sabia que eram homens de juízo deficiente e de indisciplinadas paixões, os quais conquanto pretendessem ser especialmente iluminados pelo Céu, não suportariam a mínima contradição, ou mesmo a mais benévola reprovação ou conselho. Arrogando-se autoridade suprema, exigiam que cada um, sem qualquer questão, reconhecesse o que pretendiam. Mas, ao pedirem uma entrevista com ele, concedeu-lha; e com tanto êxito expôs as pretensões deles que os impostores de pronto partiram de Wittenberg.
O fanatismo foi sustado por algum tempo; mas alguns anos mais tarde irrompeu com maior violência e mais terríveis resultados. Disse Lutero, com relação aos dirigentes desse [191] movimento: “Para eles as Escrituras Sagradas não eram senão letra morta, e todos eles começaram a clamar: ‘O Espírito! o Espírito!’ Mas, certamente não seguirei para onde seu espírito os conduz. Deus me guarde, pela Sua misericórdia, de uma igreja em que não há senão santos. Desejo associar-me aos humildes, fracos, doentes, que conhecem e sentem seus pecados, e que, do fundo do coração, gemem e clamam continuamente a Deus, para obter dEle consolação e apoio.” — D’Aubigné.
Tomaz Münzer, o mais ativo dos fanáticos, era homem de considerável habilidade, que, corretamente dirigida, o teria capacitado a fazer o bem; mas ele não aprendera os rudimentos da verdadeira religião. “Possuía-o o desejo de reformar o mundo e esquecia-se, como o fazem todos os entusiastas, de que a reforma deveria começar consigo mesmo.” — D’Aubigné. Ambicionava obter posição e influência, e não estava disposto a ficar em segundo lugar, mesmo em relação a Lutero. Declarava que os reformadores, substituindo pela autoridade das Escrituras a do papa, estavam apenas estabelecendo uma forma diversa de papado. Ele próprio pretendia haver sido divinamente incumbido de introduzir a verdadeira reforma. “Aquele que possui este espírito”, disse Münzer, “possui a verdadeira fé, ainda que em sua vida nunca visse as Escrituras.” — D’Aubigné.
Os ensinadores fanáticos entregaram-se à direção das impressões, considerando todo pensamento e impulso como sendo a voz de Deus; conseqüentemente iam a grandes extremos. Alguns queimaram mesmo a Bíblia, exclamando: “A letra mata, mas o Espírito vivifica.” O ensino de Münzer apelava para o desejo humano do maravilhoso, enquanto satisfazia seu orgulho colocando virtualmente as idéias e opiniões dos homens acima da Palavra de Deus. Suas doutrinas eram recebidas por milhares. Logo denunciou toda a ordem no culto público, e declarou que obedecer aos príncipes era tentar servir simultaneamente a Deus e a Belial.
O espírito do povo, começando já a arremessar o jugo do papado, estava-se também tornando impaciente sob as restrições da autoridade civil. Os ensinos revolucionários de [192] Münzer, pretendendo sanção divina, levaram-nos a romper com todo domínio e dar rédeas a seus preconceitos e paixões. Seguiram-se as mais terríveis cenas de sedição e contenda, e os campos da Alemanha embeberam-se de sangue.
A agonia d’alma que, havia tanto tempo antes, Lutero experimentara em Erfurt, oprimia-o agora com redobrada força, vendo ele os resultados do fanatismo imputados à Reforma. Os príncipes romanistas declaravam — e muitos estavam prontos a dar crédito à declaração — que a rebelião era o fruto legítimo das doutrinas de Lutero. Conquanto esta acusação não tivesse o mínimo fundamento, não poderia senão causar grande angústia ao reformador. Que a causa da verdade fosse assim infelicitada, sendo emparelhada com o mais ignóbil fanatismo, parecia mais do que ele poderia suportar. Por outro lado, os chefes da revolta odiavam a Lutero porque ele não somente se opusera a suas doutrinas e negara ser de inspiração divina o que pretendiam, mas declarara-os rebeldes à autoridade civil. Em represália, denunciaram-no como vil pretensioso. Parecia haver acarretado sobre si a inimizade tanto de príncipes como do povo.
Os romanistas exultavam, esperando testemunhar a rápida queda da Reforma; e culpavam a Lutero até dos erros que ele tão zelosamente se esforçara por corrigir. A facção fanática, pretendendo falsamente haver sido tratada com grande injustiça, conseguiu ganhar as simpatias de um grupo numeroso de pessoas e, conforme se dá freqüentemente com os que tomam o lado do erro, vieram a ser considerados mártires. Assim, aqueles que estavam exercendo toda energia em oposição à Reforma, eram lamentados e louvados como vítimas de crueldade e opressão. Esta era obra de Satanás, movido pelo mesmo espírito de rebelião que manifestara primeiramente no Céu.
Satanás está constantemente procurando enganar os homens e levá-los a chamar ao pecado justiça, e à justiça pecado. Quão bem-sucedido tem sido seu trabalho! Quantas vezes a censura e a exprobração são lançadas sobre os fiéis servos de Deus porque se mantêm destemidos em defesa da verdade! Os [193] homens que não passam de agentes de Satanás, são louvados e lisonjeados, e mesmo considerados mártires, enquanto os que deveriam ser respeitados e apoiados pela sua fidelidade a Deus, são deixados sós, sob suspeita e desconfiança.
A santidade falsificada, a santificação espúria, ainda está a fazer sua obra de engano. Sob várias formas exibe o mesmo espírito dos dias de Lutero, desviando das Escrituras os espíritos, e levando os homens a seguir seus próprios sentimentos e impressões, em vez de prestar obediência à lei de Deus. Este é um dos expedientes mais bem-sucedidos de Satanás, para lançar opróbrio sobre a pureza e a verdade.
Corajosamente Lutero defendeu o evangelho dos ataques que vinham de todos os lados. A Palavra de Deus se demonstrou uma arma poderosa em todo conflito. Com essa Palavra guerreou contra a usurpada autoridade do papa e a filosofia racionalista dos escolásticos, enquanto se mantinha firme como uma rocha contra o fanatismo que procurava aliar-se à Reforma.
Cada um desses elementos oponentes estava, a seu modo, pondo de parte as Escrituras Sagradas e exaltando a sabedoria humana como a fonte da verdade e conhecimento religioso. O racionalismo deifica a razão e dela faz o critério para a religião. O romanismo, pretendendo para seu soberano pontífice uma inspiração que descende ininterruptamente dos apóstolos, e que é imutável em todos os tempos, dá ampla oportunidade para que toda espécie de extravagâncias e corrupção se ocultem sob a santidade da comissão apostólica. A inspiração pretendida por Münzer e seus companheiros, não procedia de uma fonte mais elevada do que as divagações da imaginação, e sua influência era subversiva a toda autoridade humana ou divina. O verdadeiro cristianismo recebe a Palavra de Deus como o grande tesouro de verdade inspirada, e como a prova de toda inspiração.
De volta de Wartburgo, Lutero completou sua tradução do Novo Testamento, que foi logo depois entregue ao povo da Alemanha em sua própria língua. Essa tradução foi recebida [194] com grande alegria por todos os que amavam a verdade, mas rejeitaram-na escarnecedoramente os que preferiam tradições e preceitos de homens.
Os padres estavam alarmados com a idéia de que o povo comum agora seria capaz de discutir com eles sobre os preceitos da Palavra de Deus, e de que sua própria ignorância seria assim exposta. As armas de seu raciocínio carnal eram impotentes contra a espada do Espírito. Roma convocou toda a sua autoridade para impedir a disseminação das Escrituras; mas nulos foram decretos, anátemas e torturas. Quanto mais ela condenava e proibia a Bíblia, maior era a ansiedade do povo por saber o que a mesma realmente ensinava. Todos os que sabiam ler estavam ávidos por estudar por si mesmos a Palavra de Deus. Levavam-na consigo, liam-na e reliam-na, e não podiam satisfazer-se antes que confiassem à memória grandes porções. Vendo o favor com que o Novo Testamento fora recebido, Lutero imediatamente começou a tradução do Antigo, publicando-o em partes, tão depressa as completava.
Os escritos de Lutero eram bem aceitos, nas cidades como nas aldeias. “O que Lutero e seus amigos compunham, outros faziam circular. Monges, convictos do caráter ilícito das obrigações monásticas, desejosos de trocar uma longa vida de indolência por outra de ativo esforço, mas demasiado ignorantes para proclamar a Palavra de Deus, viajavam pelas províncias, visitando aldeias e cabanas, onde vendiam os livros de Lutero e de seus amigos. Logo enxameavam pela Alemanha aqueles ousados colportores.” — D’Aubigné.
Ricos e pobres, doutos e ignorantes estudavam com profundo interesse esses escritos. À noite os professores das escolas da aldeia liam-nos em voz alta a pequenos grupos reunidos junto à lareira. Com cada esforço, algumas almas eram convencidas da verdade e, recebendo a Palavra com alegria, por seu turno contavam as boas novas a outros. [195]
Confirmou-se o que disse o cantor inspirado: “A exposição das Tuas palavras dá luz; dá entendimento aos símplices.” Salmo 119:130. O estudo das Escrituras estava operando poderosa mudança no espírito e coração do povo. O governo papal colocara sobre os seus súditos um jugo de ferro que os retinha em ignorância e degradação. Uma supersticiosa observância de formas fora escrupulosamente mantida; mas em todo o seu serviço, o coração e o intelecto haviam tido pequena parte. A pregação de Lutero, expondo as plenas verdades da Palavra de Deus, e depois a própria Palavra, posta nas mãos do povo comum, despertaram-lhes as capacidades adormecidas, não somente purificando e enobrecendo a natureza espiritual, mas comunicando nova força e vigor ao intelecto.
Podiam-se ver pessoas de todas as classes com a Bíblia nas mãos, defendendo as doutrinas da Reforma. Os romanistas que haviam deixado o estudo das Escrituras aos padres e monges, chamavam por eles agora para se apresentarem e refutarem os novos ensinos. Mas, ignorantes tanto a respeito das Escrituras como do poder de Deus, padres e frades eram totalmente derrotados pelos que haviam denunciado como indoutos e hereges. “Infelizmente”, disse um escritor católico, “Lutero persuadiu seus seguidores a não depositar fé em qualquer outro oráculo além das Escrituras Sagradas.” — D’Aubigné. Multidões se reuniam para ouvir a verdade advogada por homens de pouca instrução, e mesmo por eles discutida com ilustrados e eloqüentes teólogos. Patenteava-se a vergonhosa ignorância desses grandes homens, ao serem seus argumentos defrontados pelos singelos ensinos da Palavra de Deus. Operários, soldados, mulheres e mesmo crianças, estavam mais familiarizados com os ensinos da Bíblia do que o estavam os padres e ilustres doutores.
O contraste entre os discípulos do evangelho e os mantenedores da superstição romanista manifestava-se não menos nas classes eruditas do que entre o povo comum. “Opondo-se aos velhos defensores da hierarquia, que tinham negligenciado o [196] estudo de línguas e o cultivo da literatura
havia jovens de espírito lúcido, dedicados ao estudo, que investigavam as Escrituras e se familiarizavam com as obras-primas da antigüidade. Dotados de espírito altivo, alma elevada e intrépido coração, os moços logo adquiriram tal saber que durante longo período de tempo ninguém podia com eles competir.
Quando, pois, em qualquer assembléia, esses jovens defensores da Reforma enfrentavam os doutores do romanismo, atacavam-nos com tal facilidade e confiança que esses homens ignorantes hesitavam, ficavam embaraçados e caíam em merecido desprezo aos olhos de todos.” — D’Aubigné.
Vendo o clero romano suas congregações diminuírem, invocaram o auxílio dos magistrados e, por todos os meios ao seu alcance esforçaram-se por fazer seus ouvintes voltarem. Mas o povo encontrara nos novos ensinos aquilo que lhe supria as necessidades da alma, e afastou-se daqueles que por tanto tempo o tinham alimentado com as inúteis bolotas de ritos supersticiosos e tradições humanas.
Quando se acendeu a perseguição contra os ensinadores da verdade, deram atenção às palavras de Cristo: “Quando, pois, vos perseguirem nesta cidade, fugi para outra.” Mateus 10:23. A luz penetrou em toda parte. Os fugitivos encontraram algures uma porta hospitaleira que se lhes abria e, ali morando, pregavam a Cristo, algumas vezes na igreja ou, sendo-lhes negado esse privilégio, nas casas particulares ou ao ar livre. Qualquer lugar em que pudessem obter auditório, era-lhes um templo consagrado. A verdade, proclamada com tal energia e segurança, propagava-se com poder irresistível.
Em vão se invocavam tanto autoridades eclesiásticas como civis a fim de aniquilar a heresia. Em vão recorriam à prisão, tortura, fogo e espada. Milhares de crentes selaram a fé com seu sangue, e não obstante a obra prosseguia. A perseguição servia apenas para propagar a verdade; e o fanatismo que Satanás se esforçou por confundir com esta, teve como resultado tornar mais claro o contraste entre a obra de Satanás e a de Deus.
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